cantor Agnaldo Timóteo se estende no sofá do hotel Costa Atlântico, em São Luís e, antes que eu me apresente direito, dispara:
– Você por acaso conhece a minha obra?
Só alguém muito burro poderia responder o que respondi:
– Conheço.
– Você conhece uma ova!
Hoje é 9 de abril de 2021. Agnaldo morreu há seis dias. Há alguns dias, 5 de abril de 2021, foi a primeira vez que ouvi a entrevista que fiz com ele na noite de 28 de junho de 2018. Por algum motivo, a história que eu tinha pra contar de um dos meus cantores prediletos não fazia mais sentido e aquele arquivo de 23 minutos e 54 segundos tinha ficado enterrado no meu telefone.
– Eu já gravei 72 discos. Você conhece quantos? Você conhece uns 3, 4, 5!
Antes de sair de casa naquele dia, conferi 14 discos do cantor. Passei a semana relendo o que tinha sobre eles e não posso dizer que desconhecia a postura sempre agressiva que ele apresentava. A questão é que se Agnaldo, com aquela voz tamanha, me diz que eu não sei porra nenhuma da obra dele, ora, eu não sei porra nenhuma da obra dele.
Mas Agnaldo Timóteo is dead e acho que já posso levar de novo, com menos dor, o bogue no olho que ele me deu após descer do palco do Arraial dos Aposentados. Não entendo nada de Agnaldo Timóteo, mas entendo um bocado da minha relação com ele.
Ele que me perdoe.
Ou não. Problema dele.
Tá aqui minha vingança.
Um amigo editor tinha me encomendado um livro sobre brega. O tema da música cafona está no centro de muito do que escrevi e é difícil negar que, pra mim, o mundo é mais bonito pelo charme que a obra desses caras me evoca. No livro, eu pretendia escrever sobre uma série de discos de Timóteo que não saíam da minha cabeça, três bolachas de meados dos anos 1970 que foram posteriormente batizadas de “Trilogia da Noite”: Galeria do Amor (1974), Perdido na Noite (1975) e Eu, Pecador (1976). Se você lembra de Agnaldo como aquele cantor carola que sua avó gostava e cantava “mamãe, mamãe, mamãe”, vai ficar surpreso ao saber que esses três são claramente discos de qualhira.
Discos de qualhira assinados por um dos maiores cantores do brasil em meados dos anos 1970!
Se Caetano Veloso e Chico Buarque precisavam da fresta pra pincelar a homossexualidade em suas obras, Agnaldo posava de cara dura com um crucifixo no peito e um baque de orgulhar o Ralf Konig num disco que jogava nas FMs as noites livres da Galeria Alaska, reduto dos encontros de homossexuais na capital carioca. E não era um reduto secreto, de bacana, onde a noite esconde a bobagem que acontece, como diria Dolores Duran. Na Alaska transitavam michês, prostitutas e bichas em caça constante de clientes e sexo. Não tinha nada ali pra deixar muita dúvida de que era uma crônica do mundo gay. Não cabe no proibidão dos generais.
Paulo Cesar de Araújo já tinha me ensinado que não é porque um cantor era brega que a ditadura não ia atrás dele: Odair José, Waldick Soriano, entre outros, passaram pela tesoura do censor sem dó. Mas Agnaldo passou batido, sem tesouradas nas letras ou no black power que ostentava, sempre muito alinhado, no alinho de quem sabe que é melhor andar distinto pra esconder sua óbvia distinção étnica. No auge do sucesso, mantinha ótima relação com os milicos: “nunca tive problema com a censura. Era o regime militar. Nunca se meteram comigo, nunca os desrespeitei”, me falou na entrevista de 2018. Vamos ficar ligados aqui no que Timóteo chama de respeito. É importante.
“Nunca tive problema com a censura. Era o regime militar. Nunca se meteram comigo, nunca os desrespeitei.” Vamos ficar ligados aqui no que Timóteo chama de respeito. É importante.
Não só ficou limpo com os militares, como é um defensor do regime. Pra ele, nem houve ditadura. Como assim?
– Se tivesse ditadura, estavam todos mortos, como em Cuba. Em Cuba, o Fidel Castro matou todos os adversários dele, aqui no Brasil, não, estão todos vivos, mandando no governo. O que nós tivemos foi uma intervenção militar cobrada pela sociedade, como cobram hoje, mas não tem liderança militar. Não sei quanto pagaram pra cassar a Dilma, e você acha que não tem motivo pra entrar um militar e fuzilar um bocado desses filho da puta?!
– …
– Tamo gravando?
– Tamo gravando
– Ótimo!
Em 2018, negar ou elogiar a ditadura ainda não era tão modinha quanto é hoje. Agnaldo era um conservador avant la letre. Se não houve ditadura, não houve nada de extraordinário nos discos.
– Tu enxerga esses três discos como uma trilogia?
– Não! Eu não sou um poeta, eu não sou um compositor.
A fresta de Agnaldo era, como toda fresta, malandra. O cantor escolhia a dedo o repertório ou compunha suas letras com uma estratégia que ele chama de duplo sentido.
O que Agnaldo chama de duplo sentido não é a mesma coisa que o Genival Lacerda chamaria. Enquanto o cantor da “Severina Xique Xique” fazia qualquer coisa soar como sacanagem, Agnaldo curtia tudo no comum-de-dois, aquela classe gramatical que diz que um vocábulo ou mensagem vale pros dois gêneros. O amor de Agnaldo Timóteo era deliberadamente construído pra caber em toda sorte de relação, um amor sem elemento distintivo de gênero, sem eles ou elas, prêt-à porter a qualquer coração numa voz de machão poderosa.
Acontece que, independentemente do duplo sentido, a imagem de Timóteo é há muito associada à homossexualidade. Os discos com temática gay não são crônicas distantes, mas são lidos por um bocado de gente como a experiência gay do cantor, que sempre refratou fortemente qualquer tipo de comentário. O intrigante aí é que esse dado parecia só ser mesmo relevante pro próprio Agnaldo. Livros, matérias e outras fontes sobre a música brasileira tomam de barato que o cantor era homossexual e via de regra sua reação explosiva parecia a pauta, uma espécie de Pedro de Lara da viadagem. Perguntei sobre a trilogia ser uma crônica dos homossexuais e o cantor se eriçou:
– São discos comuns. Não tenho a menor ideia de qual era o comportamento dos gays em 1970, eu sei que hoje são muito audaciosos, são, às vezes, desrespeitosos, porque acham que todo mundo tem que concordar com seus excessos. Dois homens se amarem é uma coisa, mas se beijarem em praça pública é uma provocação!
– Mas tu não acha que é contraditório pra alguém que é importante por causa desses discos?
– Nesse disco tem alguma coisa dizendo que homem deve se beijar em praça pública?
– Não tem.
– Então, pronto! Aqui fala de um ambiente que era receptivo para os gays naquele tempo. Nessa música não tem nenhuma mensagem de agressão, de desrespeito, “na Galeria do Amor é assim, muita gente à procura de gente”, isso é o que acontece a cada minuto na vida de milhões de pessoas mundo a fora. Eu fiz esse disco achando que ia fazer sucesso, mas não aconteceu nada.
O que eu não saquei naquela época é que Agnaldo Timóteo opera numa lógica própria e nunca é contraditório. Consegue numa mesma frase dizer que Lula foi o melhor presidente do país e pedir que os militares fuzilem uma galera, consegue ser pró-gay e homofóbico com três consoantes de distância. Timóteo, como diria Manoel de Barros, não sai de si nem pra pescar.
Daí que eu tava procurando um ativismo histórico por liberdades civis e encontrei um defensor das liberdades individuais privadas, desde que se mantenha um espaço público “limpo”, um conservador. Agnaldo detesta a ideia da homossexualidade exposta. Quando perguntado sobre sua sexualidade em entrevistas, respondia coisas tipo “eu não sou heterossexual, nem homossexual, eu sou sexual”, ou “eu sou Agnaldo Timóteo”.
Numa entrevista polêmica ao Pasquim, em 1972, chamou Caetano Veloso de boneca, “agora vem com esse negócio de imitar viado e os caras dizem que ele é um gênio?” Em 2018, apesar de ter me dito que foi deselegante com Caetano no Pasquim, mandou essa: “O Chico Buarque uma vez falou que fez troca-troca, ele com um outro cantor da velha guarda que já morreu”.
“Eu não sou heterossexual, nem homossexual, eu sou sexual. Eu sou Agnaldo Timóteo”
– Imagine se Agnaldo Timóteo fala uma merda dessa? Imagina se eu falo que eu tenho um namorado, que puta que pariu, que merda!
Quando digo que Agnaldo não é contraditório é porque, hoje, acho que ele operava em dois eixos: a família tradicional, que está até o talo nessa ideia do machão brasileiro, e o valor atribuído a si mesmo como expoente de um troço que hoje em dia faz ainda menos sentido que o machão brasileiro, o cantor de vozeirão. E aí vai minha Teoria Geral de Agnaldo Timóteo. Todas as falas do cantor convergem pra esses pontos.
Ele mesmo adiantou isso na entrevista pro Pasquim, quando falou que não tinha orgulho de nada além de sua voz e sua conduta moral, daí o aparente homossexual homofóbico capaz de chamar as obras de Caetano Veloso e Chico Buarque de lixo. Mas deixa eu explicar melhor, começando pelo que me trouxe aqui.
– Eu sou um homem de família, fui criado no mais requintado modelo de família. Papai dizia nove horas em casa, nós chegávamos em casa nove horas.