escultor paulista José Resende é um artista fora da curva. Ele obteve a façanha, por exemplo, de apoiar sobre um dique à beira do Lago Guaíba, em Porto Alegre, duas vigas de ferro de 30 metros que se projetam para o vazio. Entrelaçadas, elas formam uma passarela que conduz a lugar nenhum. Intitulada “Olhos Atentos”, a obra foi doada à capital gaúcha pela Bienal do Mercosul de 2005 e, por conta da reurbanização do entorno do Guaíba, passou a fazer parte do dia a dia da cidade.
Mas o que o destaca entre seus pares não é só sua extensa e monumental produção. É o fato de aprovar que atirem pedras em suas obras — ou pelo menos nas que se encontram em espaços públicos. Não, não é maneira de dizer. Depois de instalar uma obra no Jardim das Esculturas, em frente ao Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Parque do Ibirapuera, descobriu que a diversão de muitas crianças é alvejá-la. Sem título, a escultura é formada por uma placa de aço corten recortada que se sustenta como uma parede. Quando atingida por algum objeto, emite um som curioso, o que explica o inocente vandalismo da criançada. “É um uso maravilhoso, uma aproximação bem-vinda com meu trabalho que não tinha previsto”, diz ele, que no ano passado inaugurou em São José do Barreiro, a 270 quilômetros de São Paulo, um instituto que leva seu nome e concentra sua produção. “Não basta colocar uma obra na rua para ela se tornar pública. A população precisa se apropriar dela”.
“Não basta colocar uma obra na rua para ela se tornar pública. A população precisa se apropriar dela”
José Resende, artista
Já o uso que deram para a escultura dele instalada na Praça da Sé, no centro paulistano, ele provavelmente não vê com bons olhos. Dá para resumi-la como um grande quadro negro sustentado por dois pilares — ou como uma enorme tarja preta. Criada em 1979, inicialmente virou lousa para manifestações espontâneas e pichações políticas, certamente previstas por Resende. Hoje esquecida, a obra faz as vezes de varal para moradores de rua e biombo para quem precisa responder aos chamados da natureza. A instalação faz parte do Jardim das Esculturas da Sé, plantado a pedido do prefeito Olavo Egydio Setubal. Um dos donos do Itaú, o banqueiro governou a cidade entre 1975 e 1979 e decidiu repaginar a praça depois que a estação do metrô embaixo dela ficou pronta. A obra de Resende ganhou a companhia de treze outras esculturas, idealizadas por Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Felícia Leirner e Sérgio Camargo, entre outros. O atual estado delas? Não muito diferente da de Resende.
No total, cerca de 380 obras de arte e monumentos em espaços públicos pertencem à prefeitura. O item mais antigo do conjunto, repleto de bustos em homenagem aos mais variados políticos e esquecidos, é o Obelisco da Memória, que fica numa das pontas da Rua 7 de Abril, no Largo da Memória. Chamado originalmente de Pirâmide do Piques, data de 1814.
Também faz parte do acervo, por exemplo, o Monumento à Independência, no Ipiranga, inaugurado no centenário do basta dado por Dom Pedro I em relação a Portugal. Vizinho ao Parque do Ibirapuera, o Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932, do qual a maioria dos paulistanos só conhece o obelisco de 72 metros de altura, e a estátua em homenagem a Giuseppe Verdi, que decora as escadarias que dão acesso à rua Líbero Badaró, são dois outros representantes célebres. Os mais conhecidos talvez sejam o Monumento às Bandeiras, a poucos metros do obelisco, e o indiscreto Borba Gato, em Santo Amaro, com seus treze metros e look do século XVII. Quatro anos atrás, um mês antes das eleições municipais, os dois amanheceram pichados com tinta colorida – capturados, os autores alegaram motivações ideológicas.
“Toda obra deixada ao ar livre será afetada pela chuva, pela areia trazida pelo vento, pelos fungos e outros fatores”, diz a arquiteta Isabel Ruas, com a experiência de quem coordenou a restauração do painel de Di Cavalcanti no Teatro Cultura Artística. “Não dá para instalar e não fazer nada depois”. Segundo ela, a conservação deve ser periódica, desde que supervisionada por especialistas. “Já vi mármore de monumento público sendo lavado com água sanitária, o que é inadmissível. Era só usar sabão neutro”. Outra sugestão da arquiteta, fundadora de uma oficina especializada no restauro de mosaicos: “Não adianta recuperar um monumento e deixar o entorno abandonado. Senão, a população não se apropria dele e não se engaja para impedir que o destruam”.
A conservação do acervo municipal a céu aberto – uns dirão ao deus-dará – está a cargo do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH). Instituído em 1975, ele é vinculado à Secretaria Municipal de Cultura (SMC), atualmente chefiada por Alexandre Youssef. Raquel Furtado Schenkman Contier é a mandachuva do DPH. É de atribuição do órgão permitir ou não a instalação de novas esculturas nas calçadas, praças e parques da cidades – inúmeros itens do acervo foram doados à prefeitura –, restaurar o que é preciso e definir critérios e normas de limpeza. Para ajudar nessas últimas tarefas, a prefeitura criou, em 1994, na gestão de Paulo Maluf, o programa “Adote uma obra”, cujas normas foram redefinidas pelo atual prefeito, Bruno Covas, três anos atrás. A iniciativa, similar ao “Adote uma praça”, almeja convencer empresas da iniciativa privada a custear o restauro em troca de uma singela plaquinha com o registro da colaboração e a permissão para divulgar produtos nos tapumes montados durante o restauro. Graças ao programa, foram retirados do abandono, por exemplo, a réplica do avião 14 Bis, estacionada na praça Campo de Bagatelle, a escultura de Tomie Ohtake em homenagem aos 80 Anos de imigração japonesa, que rouba a cena na Avenida 23 de maio, e o Monumento às Bandeiras. Somente em 2008, o grupo Votorantim deu vida nova a trinta monumentos.
Se muitos dos contemplados pelo programa voltaram ao abandono é porque cada convênio firmado dura no máximo três anos, um período desproporcional ao descaso de parte considerável da população e à idade avançada de muitos monumentos. Hoje, só dois estão protegidos pelo “Adote uma obra” e, nos últimos cinco anos, só outros três ganharam padrinhos. “O problema é que as empresas só querem se engajar com as obras situadas em regiões de grande visibilidade, como o Ibirapuera”, diz Alice Américo, coordenadora do núcleo de monumentos e obras artísticas do DPH. “Nas localizadas em regiões afastadas, ninguém quer investir”.
“Não adianta recuperar um monumento e deixar o entorno abandonado. Senão, a população não se apropria dele e não se engaja para impedir que o destruam”
Isabel Ruas, arquiteta
Tome-se de exemplo o caso do Ubirajara. Falamos da escultura de bronze e granito instalada numa ponta do Largo Ubirajara, no bairro do Belém. Talhada pelo escultor Francisco Leopoldo e Silva (1879-1948), foi amealhada pela prefeitura em 1926 e afixada originalmente numa esquina da Avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio. Em razão da ampliação da avenida, nos anos 1970, foi transferida para o atual endereço. Representa a vitória do índio Jaguarê, depois conhecido como Ubirajara, contra Pojucã, no livro clássico de José de Alencar. É de imaginar que Ubirajara, ou melhor, sua estátua, foi deixada à própria sorte. Recuperada pela prefeitura em 2008 depois de anos de negligência, não demorou a precisar de novo restauro. Em agosto de 2018, a Secretaria de Cultura publicou um edital de chamamento para empresas interessadas em custear a nova recuperação. A contrapartida oferecida, nas palavras do documento: “Durante as obras de restauro o proponente poderá instalar 4 placas indicativas, uma em cada face do tapume, e posteriormente caso haja o interesse em adotar o monumento, durante este período o proponente poderá instalar uma placa com informações relativas à cooperação (sic)”. Tentador, não?
Na falta de interessados em assumir a missão, a Secretaria de Cultura arcou ela mesma com os custos. Em novembro de 2018, contratou, sem licitação, a companhia Julio Moraes Conservação e Restauro, que embolsou R$ 147.500 pela empreitada. Uma manutenção constante não sairia mais em conta? Se agora a obra está a salvo das intempéries, do descaso da população e da falta da atenção dos órgãos competentes só o futuro dirá. Da próxima vez, quem vai salvar Ubirajara?