uando você tem um comércio, dizem que o cliente tem sempre razão. No negócio da gastronomia, é direito de quem está pagando ter uma cerveja bem gelada em sua mesa, uma batatinha frita crocante, uma carne no ponto correto. Mas, e quando o dono do bar não concorda com a posição política de quem está pagando a conta? Foi esse o dilema que o carioca Omar Monteiro Junior enfrentou durante o processo que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Eram meados de 2015 quando Omar começou a ouvir nas mesas do seu boteco, o Bar do Omar, conversas sobre a péssima administração da presidente, os crimes cometidos pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a necessidade de tirá-los do poder. Nascido e criado no Morro do Pinto, na zona portuária do Rio de Janeiro, ele havia melhorado de vida durante os governos petistas. Foi bolsista, fez duas universidades, o primeiro de sua família a ter diploma superior, ao mesmo tempo em que seu pai conseguiu um dinheirinho para abrir seu negócio.
Contrariando a lógica da boa vizinhança, Omar deu um passa-fora nos detratores. Declarou o bar como reduto da esquerda, jogando para o alto a solidez de um negócio que ia bem. O impeachment de Dilma veio um ano depois e, em vez de voltar atrás, intensificou sua campanha contra a direita.
Hoje, as redes sociais do Bar do Omar não mostram fotos de cerveja gelada, um torresmo bem carnudo ou gente bonita dando risada. No lugar disso, comentários políticos ácidos em torno de figuras como Jair Bolsonaro, Sergio Moro, Paulo Guedes e as convulsões sociais enfrentadas pela população. E sua clientela? Vai bem, obrigado, misturando notórios como Marcelo Freixo e José Dirceu e militantes anônimos prontos para realizar la revolución. Elástica conversou com ele sobre botecagem, política e organização social.
Como é sua história com o Bar do Omar?
O bar começou com meu pai, há 20 anos. Era um bar em uma ruazinha próxima daqui. Quando passou a primeira década, construímos esse ponto onde estamos hoje. Era bem pequeno, voltado para a comunidade mesmo. Depois disso, o bar foi crescendo devagarzinho, vinha um ou outro cliente de fora, e decidimos investir em comida de boteco. Mesmo assim, nunca foi um bar gigante. Quando começou o golpe, o impeachment da Dilma, os ataques à nossa democracia, decidimos nos posicionar politicamente. Assumi as redes sociais, trabalho que até hoje faço sozinho, escancaramos nosso posicionamento firme, e aí o Bar do Omar que conhecemos hoje começou a tomar corpo.
Seu pai já era da militância?
Não, as inspirações políticas vieram mais da minha mãe. Ela foi da Juventude Comunista, filiada ao PDT, tinha afinidades com o [Leonel] Brizola. Depois que ele morreu, minha mãe deu uma desencantada, mas a família toda se manteve de esquerda.
Antes de escancarar a posição política, o bar já tinha um público de esquerda?
Não. Quando começamos a nos posicionar, metade da galera foi embora, mané! Ficamos vazios por um tempão. Naquela época, não eram comuns os lugares de esquerda aqui no Rio. Na verdade, o bar era muito frequentado por uma gente de direita, uma galera antipetista.
Você se incomodava com o público mais conservador?
Quando começamos a nos posicionar, essa galera rapidamente parou de frequentar. Foi aí que vimos que havia esse público, sacou? De repente, acabou a galera reaça.
Você está na zona portuária do Rio, onde tem muitos operários, e bem perto da Fábrica Bhering, um reduto de artistas. Foi fácil trazer o público mais progressista?
Não. Demorou muito tempo. A galera que continuou frequentando era a mesma que já vinha. A situação ficou muito difícil, apertou financeiramente. Foi aí que comecei a fazer várias rodas de samba. Isso que começou a movimentar mais o bar, mas a formação de público foi muito gradual. Hoje, até acho engraçado, porque virou moda ter um bar de esquerda. O povo acha que é só abrir as portas pra fazer sucesso. Mas, para nós, demorou uns dois anos.
Nas redes sociais, o fenômeno do Bar do Omar é mais novo do que isso…
A parada começou a explodir mesmo em meados de 2019, quando postamos uma nota falando do Sergio Moro e ela viralizou. Daí pra frente, viramos isso: o Bar do Omar, um fenômeno. Hoje em dia, ganhamos cerca de mil seguidores por semana no Instagram.
Você estudou comunicação? Onde aprendeu a fazer isso tão bem?
Não, sou de exatas. Minha primeira faculdade foi de tecnologia da informação e, depois, fiz administração. A minha forma de expressão é nata, nasci com isso. Sempre gostei de escrever, mas também sempre fui muito inseguro, porque achava que, para fazer uma boa comunicação, tinha que ter uma formação acadêmica. Porra nenhuma!
Sua mãe, militante, é de humanas?
Não. Eu sou o primeiro formado da família. Sou nascido e criado aqui onde moro, no Morro do Pinto. Minha mãe é da Ilha do Governador, o pai dela era retirante vindo de Campina Grande. Eles moravam em uma favela lá na Ilha. A galera até se espanta quando descobre que eu moro no meu bar. Existe um preconceito de uma parte do público, que vem aqui e acha que é jogada de marketing. É uma viagem, pensam que sou playboy. Só quando chegam aqui e veem que sou preto que percebem que o bagulho é quente mesmo.
Pensam que é um bar da esquerda caviar?
Teve um cliente que chegou aqui pensando que o bar era tocado por um cara tipo o Gregório Duvivier. É mole? [Risos]
Quando você viu a galera indo embora, não te deu medo de ter feito a coisa errada?
Medo sempre dá. Mas esse posicionamento não foi uma escolha, mano. Foi moral. Assistimos o governo que ajudou a gente em vários aspectos, que me ensinou a ter uma profissão, que me deu uma faculdade, ser atacado e ninguém dar a cara para defender… Hoje tá fácil se posicionar, mas, quando decidi fazer isso, a esquerda estava marginalizada. Recebi muitos xingamentos, ofensas, ameaças. Não foi fácil. Ninguém botava a cara para defender o Lula, a Dilma e o PT. Mas decidi ir até o final e a família abraçou também. A gente veio do nada, conseguiu uma coisinha com o bar, devagarinho com as rodas de samba fomos sobrevivendo. A nossa vida sempre foi difícil financeiramente, então um cliente a mais, um a menos, foda-se. Estávamos fazendo algo pela sociedade.
Você foi bolsista? Teve ProUni?
Fui bolsista quando fiz Tecnologia da Informação. Depois, consegui um emprego, um salário melhor. Comecei a faculdade de Administração com bolsa, mas logo pedi a suspensão do benefício. Fiz a segunda faculdade sem bolsa.
Interessante você dizer isso. Quebra um pouco aquela história dos beneficiados com programas sociais que gostam de viver com suas bolsas…
Vou te falar: é o tipo de pensamento insuportável de se ouvir, mas muito fácil de se quebrar. Você acha mesmo que alguém tem filho para ganhar 80 reais por mês do Bolsa Família? É uma falta de caráter coletiva achar que um pobre vai ter filho para ganhar esse dinheiro por mês. Tomar no cu, né?
“A covardia é, historicamente, uma questão da sociedade brasileira. Quero ver ser fascista na frente de uma AK-47 na mão de um menino no morro. Aí não tem fascismo. Isso é só covardia, oportunismo, uma vida de merda que faz a pessoa destilar ódio.”
Você teme pelo que está acontecendo hoje com essa escalada de agressões verbais dessa milícia virtual, isso sem contar a milícia que está aí nas ruas do Rio?
Sobre milícias eu não falo. Mas sobre essa questão de medo… o medo sempre esteve presente na vida de quem mora na favela. As pessoas falam sobre essa onda fascista, mas não consigo sentir esse medo que a esquerda classe média sente, porque sempre convivi com o medo, com arbitrariedades policiais, com alguns fatores que me fazem perceber que nunca vivi em uma democracia. Quando você mora no morro e um carro do BOPE passa às 4h da manhã, ninguém precisa de um mandato para olhar seu celular. Ele vai olhar e acabou. Hoje, há uma divulgação da amplitude do medo porque ele atinge certas camadas da sociedade que antes não eram atingidas. Mas, na vida do favelado, o medo está presente pelo menos em 80% de todo o tempo.
Mas não houve uma escalada dos agentes do medo? Hoje, pode ser seu vizinho, alguém na igreja. Deixaram de ser só os policiais…
Não. Aí que tá a parada. Aqui no morro tem uma galera que é bolsonarista, até uma maioria. Só que, na favela, existe um respeito que está acima da política. Tem um monte de bolsominion que me conhece desde criança e conversa comigo, me respeita da mesma maneira. Agora, tem uma questão que é a seguinte. Copacabana é o berço do reacionarismo carioca. Durante a Copa, em 2018, o choque ideológico ainda estava muito forte. Coloquei uma camiseta “Lula Livre” vermelha e passei em um monte de bares com uma porrada de coroas com as camisas verde e amarelas. Ninguém falou nada. Sou preto, forte, grande. Esse tipo de fascismo que é tangível não incide sobre certos grupos da sociedade. É mais sobre vulneráveis: gays, trans, mulheres. É um fascismo covarde, não tem nada a ver com a Itália, com os Camisas Marrons. É um fascismo com fatiamento social. Esses playboys da Barra da Tijuca não vão chegar no morro dando uma de fascistas, tá ligado? Não vão tirar onda de um negão na rua. A covardia é, historicamente, uma questão da sociedade brasileira. Quero ver ser fascista na frente de uma AK-47 na mão de um menino no morro. Aí não tem fascismo. Isso é só covardia, oportunismo, uma vida de merda que faz a pessoa destilar ódio.
Não é incomum você postar fotos junto do Lula e de outros caciques do PT. Seu posicionamento te deu uma entrada no partido, te fez um porta-voz?
Não me enxergo como um porta-voz nem vejo que tenho uma entrada no PT. Do partido para comigo, todos os dirigentes, senadores e deputados têm um grande apreço. O Lula, especificamente, tem um grande carinho e admiração por mim. Quando me vê, dá abraços, agradece pela coragem, determinação, força e luta. Sou filiado, mas não participo do partido. Não vou a reuniões e convenções, em nenhuma das executivas. Eu me vejo apenas como um amigo do partido. Muita gente pede que eu apresente o Lula, mas não tenho esse poder.
Como você vê a eleição municipal desse ano no Rio de Janeiro?
É um pouco complicada. Não sabemos qual vai ser o candidato do Bolsonaro. Pode ser que apoie o Crivella, pode ser que não. De qualquer jeito, a máquina está na mão deles. É muito difícil dar uma previsão, até porque a própria eleição do Witzel para governador foi uma surpresa. Ele tinha apenas 2% das intenções de voto e, do dia pra noite, apareceu no segundo turno e ganhou. Mas acredito em um segundo turno entre Eduardo Paes e Freixo, ou Eduardo Paes e Crivella. Construíram uma imagem negativa do Freixo para a população, que é muito difícil de quebrar. Gira em torno dos direitos humanos, um assunto muito mal colocado para a sociedade. Todo mundo acha que o Freixo defende bandido, que ele é covarde, que não dialoga com algumas partes da sociedade. É bizarro. Acho muito difícil ele ganhar, o Rio é muito reacionário. E pelo fato de sofrermos muito com a violência, a eleição dele fica ainda mais distante.
Mas o Freixo sobe um degrau a cada eleição que passa…
Ele já foi para o segundo turno em 2016, mas é foda, porque sempre volta esse papo de que ele defende bandido. Eu vejo que tem muita coisa errada na abordagem da própria esquerda, da militância em geral, em relação a certos temas – e a segurança pública é um deles. A galera que levanta esse discurso de que a Polícia Militar tem que acabar não fala isso de uma forma clara, para o povo entender. E aí, qual a percepção que o morro tem? Que essa galera da esquerda festiva quer que acabe com a PM para que possa fumar maconha tranquilamente. Ninguém fala sobre a desmilitarização da polícia. O cara que é roubado no trem de madrugada enquanto está vindo para o centro da cidade para trabalhar fica puto com esse discurso. Quando falamos sobre a desmilitarização, é para melhorar também as condições de serviço de um policial. Porque você vai preso quando não respeita uma regra, é uma estrutura hierarquizada. Quando caiu aquele helicóptero na Cidade de Deus [em novembro de 2016], o piloto avisou que a aeronave não estava pronta para voar, e o comandante mandou subir do mesmo jeito. Foda, né? É esse tipo de assunto que deveria ser abordado, não simplesmente falar que a polícia tem que acabar.
“Eu vejo que tem muita coisa errada na abordagem da própria esquerda, da militância em geral, em relação a certos temas – e a segurança pública é um deles.”
É por isso que a esquerda vem perdendo espaço nas classes mais baixas hoje?
Parte da militância perdeu a capacidade didática. Acha que todo mundo tem que ouvir o que ela fala e entender todos os conceitos sociais e históricos que embasam o pensamento, sem reconhecer que esse conhecimento é um privilégio. Além disso, o debate político não é escolar, e sim social. Você não aprende política na escola, e sim no seu meio. Se você não tem amigos politizados, não vai aprender sobre o assunto nunca. Política é conversa, debate, a reunião de uma porrada de pessoas de lugares e condições sociais diferentes. Então, a esquerda deixou de conversar com a massa. Tornou-se um espaço paternalista e positivista pra caralho, achando que sabe o que é melhor para o pobre. Só que a percepção do pobre sobre essas pessoas é que elas são brancas e bem de vida, simplesmente. O Lula ainda é a única liderança nordestina, que veio da pobreza, que foi operário. Quem mais é assim? O Haddad e o Freixo são professores, a Manuela D’Ávila veio de diretório acadêmico de faculdade… Você não vê um operário, um líder comunitário. Acabou a representatividade na esquerda. Por acaso você tem algum amigo que é professor universitário? Com certeza, eu e meus amigos de infância não conhecemos nenhum. Mas, conhecemos uma porrada de militares. Em uma eleição, quem eles vão achar mais plausível? A militância tem que pensar no que o povo pensa, não no que é melhor para o povo.
Você não pensa em se candidatar?
Tá doido, vou nada! Meu sonho sempre foi ser político, mas hoje percebi que já sou um agente político dentro da sociedade. Porque o político transforma, e aos poucos estou transformando coisas ao meu redor. Não preciso de um caralhão de privilégios, salário de não sei quantos mil, motorista, verba de gabinete, assessor e coisas que te tiram uma visão de sociedade. A sociedade é dividida em classes: a trabalhadora, a dominante, a política. Pra mim, quando você entra para a política, perde o contato com a trabalhadora. Eu, como dono de bar, já esqueci certas coisas que tangem a vida do trabalhador. Moro embaixo do meu bar. Já não sei o que é pegar um transporte público para ir trabalhar. Não quero virar político para me desconectar do morro. Eu tô bem aqui. Observo o que está acontecendo, sinto, sirvo de exemplo. Não acho que minha notoriedade deve ser convertida para bens políticos.
E você vai aproveitar o período eleitoral para realizar debates ou outras ações políticas no bar?
Estamos construindo um espaço novo, mais amplo, duas vezes maior que a nossa varanda atual. Uma das ideias é fazer dele um espaço social. Não só voltado ao debate político, mas também fornecer educação financeira para jovens da comunidade, aulas de história e outros cursos coletivos. Para o debate político, pode ser que sim. Mas, o bar hoje já é um ativo político. O que precisamos é democratizar o debate, isso é fundamental. Pode ser com políticos, mas é melhor que eu fale. Porque é como eu te disse: os políticos já não possuem mais conexão com a sociedade como a pessoa que vive na comunidade. Esse pensamento positivista já deu. Chegou a hora de dizermos o que é melhor para nós. Tem que ser um espaço para criar novas lideranças.