m um momento em que as artes plásticas tornam-se mais diversas e vemos uma presença maior de mulheres, de negros, de indígenas e de corpos não-binários tendo suas produções melhores representadas, se aproxima o ponto de questionarmos quais lugares essas obras de fato ocupam.
Isso porque um corpo trans produzir uma obra de arte não tem a ver apenas com a representação identitária, assim como um negro não precisa falar sobre tradições afro-brasileiras, ou um indígena criar representações etnográficas. Em outras palavras, pode ser, mas não precisa ser. A necessidade configuraria um mesmo preconceito pelo qual todas essas ditas minorias sofrem, o encaixe delas em um lugar ilusório.
É nesse espírito que o artista pernambucano Carlos Mélo apresenta a exposição individual “Transes, Rituais e Substâncias” na Galeria Kogan Amaro, em São Paulo. Sua nova exposição quebra os paradigmas das representações do Nordeste brasileiro na arte, levanta questionamentos sobre eixos e umbigos, desaproxima a região desse status local e a encaixa em um Brasil cada vez mais unido por desfragmentação. Nós conversamos com Mélo, confira:
Boa parte das reflexões que você apresenta em “Transes, Rituais e Substâncias” tem a ver com a indústria têxtil, principalmente do jeans em Pernambuco, que produz uma poluição hídrica absurda e produtos totalmente descartáveis. O progresso nunca chega no Agreste, e quando chega vem acompanhado de destruição – assim como é na Amazônia e em outros biomas. Quando você fala sobre transes, acredita que estamos em um transe coletivo que nos impede de sair dessa esfera de retrocesso travestido de progresso?
Assim como na Amazônia, ou em qualquer lugar do mundo, se há destruição, não há progresso de fato. Se eu vivesse em outro lugar, estaria, sem dúvida, atravessado por questões outras que me movem, ativadas pelo meu trabalho. Mas é importante lembrar que, anterior à prática, vem as afecções. Moro em uma região onde a cor do rio depende das tendências de cartela cromática da moda, onde não existe mais agricultura por falta de políticas agrícolas, e não por questões climáticas ocasionadas por fenômenos naturais ou desígnios divinos. E isso me atravessa, me afeta, daí o meu lugar de fala. “Transes, rituais e substâncias” tem a ver com essa experiência no mundo, seja diante de uma TV, de um livro, de uma cena real do meu cotidiano. Esta exposição é tiro para todos os lados, literalmente, por trazer desenhos como novas escrituras, pinturas como peles e couros esticados num chassi, capacetes como cachos de cabeças, animais vivos sobre um corpo burocrático, totens cambaleantes.
“Moro em uma região onde a cor do rio depende das tendências de cartela cromática da moda, onde não existe mais agricultura por falta de políticas agrícolas, e não por questões climáticas ocasionadas por fenômenos naturais ou desígnios divinos. E isso me atravessa, me afeta, daí o meu lugar de fala”
Você realizou esculturas com capacetes de motoboys, um retrato desse Brasil de hoje que tem menos empregos, mais concentração de renda na mão de poucos, muitas pessoas caindo na informalidade das entregas para se sustentar. Como isso se contrapõe às indústrias que estão no Nordeste hoje, também parte do seu trabalho, e a essa construção quase ritualística dessa sociedade de poucos senhores e muitos trabalhadores, que é tão arraigada na formação do Brasil desde a colônia, e, como consequência, da própria região em si?
Talvez, entender se esse nordeste dito “de hoje” pressupõe um outro, um de antes? E essa é a grande questão quando a palavra vem antes do lugar: primeiro inventa, depois demarca, seja como for, pensando na separação econômica ou mesmo cultural. O Nordeste foi inventado em detrimento do poder político e econômico, e essa invenção nos rendeu um prejuízo cuja conta pagamos até hoje. Por mais que a arte contemporânea, de uma forma muito eficiente, já venha tratando desse assunto, ainda estamos distantes de entender que o eixo ainda concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo virou seta apontando pra cá. Uma espécie de ambiente peculiar, nada estranho, de deslocamento de signos.
O meu trabalho não pretende levantar questões sobre uma região específica do Brasil, ele em si já é fruto de um campo produtivo de arte onde as bordas são complexas, rarefeitas e diluídas. Sou um artista que atua no lugar do sensível, e nesse território a geografia é outra.
Sempre que a crítica vai debater a arte feita fora do eixo Rio/SP, o nome que é dado para a produção gira em torno de algo como “arte regional”. Você reflete o Nordeste através de um contexto urbano e afirma que o faz na tentativa de desmontar estereótipos. Mas, ao fazer isso, você não está entregando a região a um contexto “sudestino”?
Penso que a América Latina é o Nordeste do Ocidente. O regional na arte sul-americana também vem carregada de axiomas, pra que sejamos cada vez mais latinos, regionais, estranhos e divertidos. Os artistas que obedecem a essa espécie de roteiro são sempre amparados pelo sistema. Aqueles que desobedecem, fomentam um outro circuito cujas pautas estão todas aí. Outros criam novos campos simbólicos, como “orgulho de ser sudestino.”
Existe uma disputa narrativa entre Sudeste x Nordeste que está em nossa história desde a Revolução Industrial, que coloca o Nordeste como atrasado e o Sudeste como “locomotiva do país”. No entanto, as indústrias são fortes, a produção cultural é rica, as condições ecológicas e climáticas são favoráveis para o Nordeste. O que falta exatamente para que haja uma compreensão mais justa de um Brasil cujo umbigo não é o Sudeste?
Lembro da frase de uma artista veterana que dizia “vou cavar um buraco pra encontrar a raiz da arte brasileira”. Eu diria que seria mais fácil encontrar um umbigo. Depois da experiência de espelho perverso que vivemos com um governo fascista, novos corpos de guerra estão sendo criados, sobretudo os sem órgãos, e estamos nos tornando mais atentos. Desconfio de determinadas crenças, sobretudo a da existência de uma disputa “transregional”, este também é um daqueles boletos que não param de chegar.
“Lembro da frase de uma artista veterana que dizia ‘vou cavar um buraco pra encontrar a raiz da arte brasileira’. Eu diria que seria mais fácil encontrar um umbigo”
As eleições acontecem daqui há um ano e, nas últimas semanas, a campanha do ex-presidente Lula já começou a viajar pelo Nordeste, enquanto o próprio Bolsonaro não deixou de tentar montar seu curral eleitoral pela região desde 2018. Essa disputa política histórica na região é um ciclo maligno, no qual o Nordeste é sempre relegado a um status quase de “sub-região” que pode ser explorada com promessas, assistencialismos, mas nunca desenvolvida a um patamar de protagonismo verdadeiro?
Quando entendermos que o Nordeste que nos ensinaram através da geografia, literatura e outras artes não existe, entenderemos que é tudo Brasil. A indústria da seca é uma cicatriz. Em 1915, havia campos de concentração erguidos no Ceará, provando que temos uma longa história de opressão além das fronteiras geográficas e do tempo.