experimentação

Pensar dentro da caixa

Chefs apelam à criatividade para transformar o delivery de seus restaurantes e se adaptar a uma nova onda que dominou a nossa forma de comer em casa

por Rafael Tonon Atualizado em 13 jul 2020, 10h42 - Publicado em 10 jul 2020 09h55
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(Estúdio Lambada/Ilustração)

s refeições chegam em embalagens bonitas, como presentes comprados em uma loja de grife, com papel de seda e adesivos identificando cada um dos ingredientes. Também há potes de vidro com compotas diversas e sobremesas em lindas camadas prontas para meter a colher. Ou ainda fatias de embutidos artesanais meticulosamente embrulhados, uma cabeça de peixe pronta para fazer um caldo gelatinoso, uma garrafa do mais rústico leite de vaca cru, e um buquê de flores de coentro que serão usadas para a finalização do prato.

Em tempos em que a comida cada vez mais nos chega pela porta – em vez de nós é de termos que ir buscá-la –, já é possível comer alguns pratos na mesa da nossa sala (ou no sofá, vá lá) que só poderiam ser degustados nos salões dos restaurantes. Turbinado pela internet, o delivery 2.0 veio mudar as regras do jogo. E o “novo normal” é a gastronomia empacotada para viagem. 

Há muito que o modelo suplantou o velho disk pizza, é verdade; mas nunca, como agora, ele tentou abarcar tantos formatos diferentes, lançando mão da criatividade para fazer todos os conceitos caberem dentro da caixa. Na impossibilidade de oferecer hospitalidade em seus ambientes físicos (em nome do distanciamento social), os restaurantes – mesmo os de alta gastronomia, avessos à ideia de serem transportados – foram enquadrados para tentar servir novas experiências a partir do ambiente digital, de um mundo diante dos nossos dedos. 

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(Blue Hill/Reprodução)

Restaurantes como curadoria 

Mas novas necessidades e demandas logísticas levaram chefs a reinventar a caixa. Um deles, o renomado Dan Barber, do Blue Hill at Stone Barns, restaurante farm-to-table na região de Nova York, conta que o menu resourcED criado por ele para os tempos atuais foi concebido para dar vazão aos ingredientes cultivados ou criados em sua fazenda e que não podiam ser usados na cozinha, agora fechada. Chamado de “restaurante na caixa”, chega na casa das pessoas com itens como pães, muitos tipos de grãos e toda a sorte de vegetais. 

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Os clientes recebem os produtos direto da fazenda do chef (e de outros produtores próximos, que passaram a sofrer com o fechamento dos restaurantes) para cozinhar, numa “profunda conexão entre clientes, cozinheiros e a terra”, como afirma Barber em seu Instagram. Conexão até maior do que se teria no restaurante, já que os clientes podem receber todas as partes de um mesmo animal, de carnes maturadas a miúdos e linguiças feitas com sua carne, num aproveitamento total de sua carcaça, a remeter a origem do alimento, e o cuidado que o restaurante têm com ele. 

É uma maneira de tornar o conceito do Blue Hill ainda mais visível e contundente para seus clientes habituais, mais acostumados e verem seus ingredientes em pratos elaborados nas disputadas mesas (a um preço que beira os 300 dólares por refeição). Muitos restaurantes do mundo passaram a adotar formatos semelhantes, como prova de que deixaram de ser apenas lugares físicos e se tornaram conceitos mais abrangentes, que podem inclusive fazer “curadoria” de produtos com suas grifes. 

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(Lasai/Divulgação)
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Menu em casa 

O conceito não é totalmente novo, como comprovam as caixas de assinatura que viveram febre nos últimos anos, oferecendo de orgânicos a cafés, de garrafas de vinho a alimentos do mundo todo. Mas os restaurantes encontraram aí um filão, e com ele uma nova forma de se conectar aos clientes agora mais distantes. O Lasai, no Rio de Janeiro, passou a criar produtos de “empório” desde que o chef Rafa Costa e Silva decidiu fazer algumas compotas e doces para ajudar a Agroprata, associação de produtores rurais que viu toneladas de frutas, como caquis e bananas, apodrecerem pela falta de demanda. “Quisemos ajudar o nosso fornecedor a escoar, mesmo que minimamente, sua produção”, diz o chef.

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(Lasai/Divulgação)

A partir daí, criar alimentos que chegassem à casa das pessoas pareceu uma boa ideia, que virou uma marca própria: Lasai Empório. E de conservas e chás engarrafados, Rafa decidiu avançar com menus completos para duas pessoas que possam ser enviados em caixa com entrada, prato e sobremesa com todos os ingredientes necessários para finalizar a refeição semi-pronta em casa. “O menu que estamos oferecendo nas caixas é um menu muito parecido com o que abrimos o restaurante, mais curto, com pratos que já fizemos no Lasai e que não levam mais de 15 minutos de preparação”, conta ele. 

Rafa conta que sempre teve “um certo preconceito” com as refeições por delivery. “Mesmo simplificando, adaptando técnicas e preparos, a comida perde muito. Para seguir com nosso projeto, minha condição era que a comida não chegasse 100% pronta na casa das pessoas, mas que elas pudessem terminar em suas cozinhas. Os minutos finais de cocção são vitais para o bom preparo” pontua ele, que detalha que a criação da caixa levou três meses de desenvolvimento da equipe – e que deve seguir mesmo quando o restaurante reabrir.

“Mesmo simplificando, adaptando técnicas e preparos, a comida perde muito. Para seguir com nosso projeto, minha condição era que a comida não chegasse 100% pronta na casa das pessoas, mas que elas pudessem terminar em suas cozinhas. Os minutos finais de cocção são vitais para o bom preparo”

Rafael Costa e Silva, chef do Lasai
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Delivery ≠ salão 

O que muitos empresários do setor e chefs, como Rafa, tratam de ressaltar é que delivery deve ser uma experiência distinta daquela vivenciada em um salão – que nunca poderá ser repetida em outro ambiente. Para Ricardo Garrido, um dos sócios e fundadores do grupo Companhia Tradicional, que têm entre seus restaurantes a pizzaria Bráz, o bar Astor e a hamburgueria Lanchonete da Cidade, está cada vez mais claro que delivery não é reproduzir o que se serve na mesa de um restaurante. 

Mais do que nunca, temos que pensar no delivery como um outro negócio, e as medidas com que podemos potencializá-lo. Não precisamos emular o que fazemos no restaurante; a apresentação de um prato no salão é uma, no delivery, outra”, diz. A comida por entrega precisa criar a melhor experiência possível em casa, no trabalho ou num parque. Por isso, o empresário vê uma crescente tendência do finish at home, algo que suas marcas passaram também a buscar. Na Bráz, por exemplo, lançaram uma pizza pré-assada, que é fechada a vácuo e, depois, finalizada no forno do cliente “que pode se sentir um pizzaiolo por alguns minutos”. 

A ideia também permite uma democratização das receitas e uma possibilidade de mais gente provar as criações de um chef sem sequer precisar ir até o seu restaurante. E embaralha como nunca os conceitos de “comer em casa” e “comer fora”: até que medida ter o restaurante em casa, representado por seus pratos, não é também uma forma de, metaforicamente, ir até ele? Se eu tenho que preparar uma comida semi-pronta, ela é mais uma receita minha ou do chef? Nunca a linha da alimentação dentro e fora do lar ficou tão tênue.

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(The Residential/Divulgação)
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Alta (experiência de) gastronomia 

Em busca de uma experiência que pudesse levar as pessoas digitalmente a seus restaurantes preferidos (ou os restaurantes até as pessoas, como preferir), o empresário Gonçalo Castel-Branco, criador de conceitos de vivências gastronômicas inovadoras em Portugal, vislumbrou a possibilidade de juntar o novo comportamento do consumidor (agora confinado) e o apoio a chefs e produtores do país para criar o The Residential — que pode receber uma edição no Brasil em breve.

“Não temos ambição de levar o fine dining à casa, o que potencialmente afastaria a maior parte dos cozinheiros amadores (pela técnica necessária e instrumentos utilizados), mas sim de continuar uma conversa sobre comida de qualidade baseada em produto e história”

Gonçalo Castel-Branco, chef
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(The Residential/Divulgação)

Ele, que já pôs para andar um trem histórico pelo Douro com alguns dos melhores cozinheiros do país a servirem seus pratos pelos vagões ou um festival para mil pessoas em torno apenas do fogo, estabeleceu parcerias com chefs estrelados para criar caixas de refeições que são preparadas simultaneamente pelas pessoas em suas casas através de uma live. O jantar chega com todos os detalhes: queijo para petiscar enquanto se dedica ao fogão, vinho harmonizado, sobremesa e até um chá e um vinho do Porto de digestivo para o final.

“Não diria que é uma experiência de alta gastronomia, mas uma alta experiência de gastronomia”, diz. O programa reúne chefs de primeira linha, produtos de excelente qualidade, e uma experiência rica e interativa que possa resultar numa refeição memorável, como ele explica. “Não temos ambição de levar o fine dining à casa, o que potencialmente afastaria a maior parte dos cozinheiros amadores (pela técnica necessária e instrumentos utilizados), mas sim de continuar uma conversa sobre comida de qualidade baseada em produto e história”, acrescenta. 

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(Fechado Para Jantar/Divulgação)

Uma caixa, muitas possibilidades 

O desafio numa caixa é conseguir ajudar os chefs a pensarem em temas como escolher produtos que viajam bem, receitas que tenham técnicas interessantes mas não demasiado complexas e como desenhar um conteúdo ao vivo que seja rico e fluido. “Principalmente, como estabelecer um menu em que eles sintam a sua cozinha representada, mesmo sabendo que a maior parte do trabalho de execução está a ser feito por outra pessoa”, aponta. 

Na mais recente edição do Fechado Para Jantar, evento que desde o início, em 2012, leva entretenimento e gastronomia para lugares inusitados de São Paulo (e outras cidades), o chef Raphael Despirite e seu sócio, Fabio Gastaldi, tiveram que pensar em como adaptar o formato sempre surpreendente que criam nos mais diversos espaços (de terraços a lojas de móveis) em algo que pudesse ser encaixotado e, posteriormente, vivenciado em casa. 

O chef Raphael Despirite.
O chef Raphael Despirite. (Fechado Para Jantar/Divulgação)

Para o Dia dos Namorados, criaram também uma edição ao vivo que ocupou o Farol Santander, e que reuniu apresentação musical, receita compartilhada entre os casais (que receberam os kits em casa) e transmissão em tempo real. “A questão é pensar a caixa como uma ferramenta para levar a experiência que se quer oferecer, ela não é o produto em si”, ressalta Despirite. “É mais de uma forma de democratizar o conteúdo, de unir o digital e o físico, especialmente agora”. Em tempos que mais vale a busca de comodidade e de vivências tolhidas, abrir uma caixa assim pode ter quase o significado de abrir uma passagem secreta para uma mesa devidamente montada no melhor lugar do seu restaurante preferido. 

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