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Dira Paes: “Para defender o Brasil, é preciso conhecê-lo”

"Pureza", novo filme nacional, conta a história real de uma mulher que enfrentou fazendeiros em busca de seu filho e lutou contra o trabalho escravo

por Beatriz Lourenço Atualizado em 20 Maio 2022, 15h19 - Publicado em 18 Maio 2022 00h49
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(arte/Redação)

s histórias mais comuns que vemos no cinema são de heróis que enfrentam um grande inimigo numa batalha épica. No longa Pureza, de Renato Barbieri, o enredo também é esse. Mas não estamos falando de super-heróis com capas e poderes sobrenaturais, que viajam entre dimensões e lutam contra monstros. Estamos falando de Pureza Lopes Loyola, uma mulher que enfrentou fazendeiros poderosos para encontrar seu filho Abel – uma história real que virou filme. “Ela é fonte de inspiração, uma heroína que vive em carne e osso e está aqui para todo mundo ver”, afirma Dira Paes, que interpreta a protagonista, à Elástica.

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Com estreia marcada para 19 de maio, a narrativa tem início no interior do Maranhão, quando Abel decide ir trabalhar nos garimpos da Amazônia em busca de uma vida melhor. Mas após ficar meses sem receber notícias do filho, Pureza sai munida apenas de uma bolsa e a roupa do corpo em uma jornada incansável para descobrir seu paradeiro. Sem muitas informações, ela vai até uma fazenda do Pará para trabalhar como cozinheira e se depara com um cruel sistema de aliciamento, maus tratos, cárcere e até morte de trabalhadores rurais.

O serviço dos empregados, por sua vez, consistia em derrubar a mata nativa para transformar a área em pastagem para o gado. Quem chegava até lá eram migrantes entre 18 e 24 anos das regiões Norte e Nordeste com pouca formação. Quando percebe a gravidade da situação, a mãe aflita reúne toda coragem que tem para escapar e denunciar os fatos às autoridades federais. E tudo isso de fato aconteceu no início dos anos 1990.

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Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, Pureza entrou em contato com o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho no Maranhão, no Pará e em Brasília. Chegou até a escrever cartas para três presidentes da República: Fernando Collor, Itamar Franco (o único que lhe respondeu) e Fernando Henrique Cardoso. Sua luta culminou na criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, a primeira ação na história do Brasil destinada a combater o trabalho escravo em todo o território nacional. Já em 1997, ela recebeu em Londres o Prêmio Anti-Escravidão da Anti-Slavery International, a mais antiga organização de combate ao trabalho escravo em atividade no mundo. Hoje, Abel vive no município de Bacabal com a família.

Trazer essa história para as telonas foi um desafio e o resultado é uma mistura de documentário e ficção. Isso porque a trama traz no elenco cerca de 30 trabalhadores que já foram submetidos ao trabalho escravo. “Tivemos todo um processo de preparação para que eles pudessem atuar. Ao mesmo tempo, nossos atores profissionais também mergulharam nas gravações. Quando juntamos todos, foi muito emocionante”, revela o diretor. Em ano eleitoral, o lançamento se torna importante para refletirmos sobre o país que queremos e como ele tem sido conduzido nos últimos anos. Abaixo, você confere uma breve conversa com Dira Paes e Renato Barbieri.

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(Pureza/Reprodução)
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Essa é uma história que reflete a realidade de milhares de pessoas no Brasil. Ela evidencia a precarização do trabalho e a desigualdade social. Levá-la ao cinema é uma forma de luta contra esse sistema?
Dira Paes: Sem dúvida. Como artista, me sinto muito privilegiada em interpretar uma personagem tão potente. Precisamos mostrar essa realidade de maus tratos a pessoas muito necessitadas e que se sujeitam a situações precarizadas para poder ter seu alimento e a possibilidade de sobrevivência. O trabalho escravo contemporâneo é uma chaga internacional. O Brasil, um país imenso e com lugares tão longínquos que não têm uma atuação direta do Estado, é onde implode essa questão tão emergente, urgente e desumana. Nesse sentido, o filme faz uma junção entre a necessidade de um assunto e o entretenimento. 

Renato Barbieri: A gente fez esse filme para trazer à tona o que está invisível. Precisamos mostrar essa realidade para o público e sensibilizá-lo. Para muitos brasileiros, a escravidão acabou em 1888, mas não é bem assim. O Estado passou a reconhecer que ainda existe escravidão no Brasil em 1995 e nós precisamos fazer uma nova abolição.

“O trabalho escravo contemporâneo é uma chaga internacional. O Brasil, um país imenso e com lugares tão longínquos que não têm uma atuação direta do Estado, é onde implode essa questão tão emergente, urgente e desumana”

Dira Paes
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(Pureza/Divulgação)

O filme mostra como a política pode combater (ou não) os casos de trabalho escravo, tanto com investimento de orçamento quanto com ações diretas. Como vocês analisam o cenário eleitoral deste ano?
Dira Paes: Acho muito apropriado que esse filme chegue agora. Ele vai nos ajudar a pensar no Brasil que queremos. Para defender o Brasil, é preciso conhecê-lo! A gente cuida e defende o que a gente ama. Falamos muito disso nas lutas pelos direitos humanos. Precisamos nos incluir nessas realidades, e não vê-las do lado de fora. Da mesma maneira que mostramos o Pantanal hoje na novela, a gente vem mostrar com Pureza um outro pedaço do país – que precisa de muitos olhos e muitos braços para ser cuidado. Num ano de eleição, assistir ao filme vai trazer mais consciência política, social e humana em quem vai votar.

Renato Barbieri: O filme deveria ter sido lançado em 2020, mas a pandemia jogou para esse momento – que é perfeito. As pessoas estão discutindo o que queremos como nação, e como precisamos nos reconstruir. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo e nós temos que nos humanizar. E o que vai fazer isso são histórias reais, como a de Pureza. 

“As pessoas estão discutindo o que queremos como nação, e como precisamos nos reconstruir. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo e nós temos que nos humanizar. E o que vai fazer isso são histórias reais, como a de Pureza”

Renato Barbieri
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(Pureza/Reprodução)

Um panorama desumano

De acordo com a plataforma SmartLab, uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho, de 1995 a 2021, mais de 55 mil trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão. Somente no ano passado foram 1.937, superando o ano de 2020 (936 trabalhadores). O maior número de resgates ocorre em áreas rurais, que correspondem a quase 80% do total. As atividades recorrentes são a criação de bovinos (31%) e cana de açúcar (14%). Mas nos dois últimos anos a cafeicultura tem aumentado nas estatísticas. 

Segundo Fernanda Pinheiro, porta-voz da ONG Conectas Direitos Humanos, esse é um cenário que está cada vez pior. “A política de enfrentamento foi reconhecida internacionalmente e muito celebrada, mas nos últimos anos está marcada por retrocessos. Estamos sofrendo muitas ameaças e desmantelamento de órgãos importantes”, reflete. 

Mais de 55 mil trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão entre 1995 e 2021. Somente no ano passado foram 1.937

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Para explicar melhor, é possível dividir o panorama em dois: prevenção e repressão. A primeira parte dá conta do que é preciso ser feito para que a população não viva em um cenário de vulnerabilidade socioeconômica e, com isso, não seja aliciada ao trabalho escravo. “Hoje, o Brasil tem um índice de desemprego muito alto, a fome está muito grande e há quem esteja lutando apenas por sua sobrevivência. Também sofremos reformas muito grandes nos direitos trabalhistas e previdenciários que contribuíram para a precarização do trabalho.”

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A repressão, por sua vez, consiste na fiscalização para conseguir tirar os indivíduos dessa situação. As ações são responsabilidade do Ministério do Trabalho, que vem sofrendo cortes orçamentários e falta de pessoal. “Para se ter uma ideia, em 2010 a gente tinha quase 3 mil fiscais e, hoje, temos cerca de 2 mil para cobrir o Brasil todo – e isso não é suficiente para alcançar todas as regiões do país, principalmente as mais remotas”, conta Fernanda. “O orçamento também é essencial para a inspeção, já que são necessários aparatos como carros preparados e proteção dos fiscais, que sofrem ameaças constantes”.

Em 2017, as operações foram paralisadas por falta de dinheiro, mas após pressões de ONGs e da sociedade civil, os problemas foram corrigidos. “Ainda assim, não há uma transparência do governo. Só sabemos que cada vez mais esse investimento está sendo reduzido”, explica a assessora. Qualquer pessoa pode (e deve) reportar uma notícia relacionada a violações de direitos humanos da qual seja vítima ou tenha conhecimento por meio do Disque 100. O serviço recebe, analisa e encaminha as informações aos órgãos responsáveis. Ele é gratuito e funciona 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

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(Pureza/Divulgação)
Pureza

Direção: Renato Barbieri
Duração: 101 minutos
Estreia dia 19 de maio nos cinemas

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