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Fora de foco

A falta de concentração, seja com as obrigações, seja nos momentos de lazer, virou motivo de angústia para muita gente no último ano

por Ana Carolina Pinheiro, de Claudia Atualizado em 27 ago 2021, 19h38 - Publicado em 24 ago 2021 23h25
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(Clube Lambada/Ilustração)

s olhos correm pelas páginas do livro de forma automática, porque a mente está em um lugar distante, puxando na memória se a conta do cartão realmente foi paga ou alerta ao barulho vindo da casa do vizinho. Quando você recupera a atenção no momento presente, não faz ideia do que se passa na trama do livro. A cena pode soar familiar para muitas pessoas, principalmente após mais de um ano sobrevivendo e vivendo em meio à pandemia e seus desdobramentos. Mesmo hábitos agradáveis, que preenchiam os momentos de abstração com autocuidado e prazer, viraram tarefas árduas para quem sentiu o foco se esvair sorrateiramente. Se até aquela série do coração não consegue mais prender a sua atenção, as responsabilidades nem se fala.

Sob estresse e com medo diante da proliferação do novo coronavírus, a concentração ficou condicionada e exige trabalho individual para ser resgatada. Segundo a psicóloga especialista em neurociência Myenne Mieko Ayres Tsutsumi, o primeiro passo é investigar quais mudanças ocorreram na rotina desde o começo do isolamento e como elas interferiram internamente. “Cada um deve analisar se a carga de trabalho aumentou, se passa mais tempo no computador. Outros fatores que podem influenciar no foco é a perda de entes queridos, dados difíceis da realidade e até mesmo a crise política do país, que reflete na economia e gera preocupações com o futuro”, explica a profissional sobre motivos que contribuem com o clima aéreo das ideias. Pode acontecer de seguirmos construindo um ciclo de expectativas sobre um contexto falho, que não existe mais, e aí há o risco de causar frustração. Mas tem como remediar. Veja como desvendar o funcionamento da mente e adote recursos para driblar a falta de concentração.

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“Cada um deve analisar se a carga de trabalho aumentou, se passa mais tempo no computador. Outros fatores que podem influenciar no foco é a perda de entes queridos, dados difíceis da realidade e até mesmo a crise política do país, que reflete na economia e gera preocupações com o futuro”

Myenne Mieko Ayres Tsutsumi, psicóloga
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(Elina Krima/Pexels)

Entenda a origem do problema

Faz uma década que Gaby Bueno, 45 anos, busca aperfeiçoar seu foco, visto por ela como a chave de transformação da sua vida. A naturopata e estudante de nutrição, de São José dos Campos, interior de São Paulo, encontrou a resposta numa alimentação mais saudável e rotina sem sedentarismo – duas batalhas difíceis em sua juventude. Porém, com a pandemia, o que parecia estabelecido, desmoronou. “Mesmo com a maturidade e o meu conhecimento profissional, que aplico às recomendações para os pacientes, perdi meu foco na vida pessoal. Com tantas preocupações, abri uma brecha na tentativa de sanar a ansiedade”, explica ela, que se vê numa luta de retomar a rotina regrada. Para Myenne, o comportamento de Gaby não é atípico, afinal, nosso padrão de hábitos é moldado durante toda a vida. “A forma como nos comportamos depende, em partes, do que nos foi ensinado no passado e, por outro lado, do que é útil para nós atualmente. Fatores externos, como a pandemia, estão ligados a essas tendências momentâneas”, aponta a neurocientista.

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“Mesmo com a maturidade e o meu conhecimento profissional, que aplico às recomendações para os pacientes, perdi meu foco na vida pessoal. Com tantas preocupações, abri uma brecha na tentativa de sanar a ansiedade”

Gaby Bueno

Não é porque um hábito foi praticado por muito tempo que ele nos acompanhará sempre. O cérebro pode deixá-lo de lado ao entender que a atividade não é mais prioridade. No caso de Gaby, ela reconhece que assumir maior responsabilidade financeira com a família – seu marido e o filho de 3 anos – falou mais alto do que os cuidados com a própria saúde. “Minhas estratégias mudaram com o aumento de pacientes, já que conduzo meu próprio negócio.” Contudo, agora que Gaby compreende melhor o cenário, é essencial passar para o cérebro a mensagem de que o combo de alimentação e esporte são importantes para a concentração e a satisfação pessoal dela. “Para manter o foco, antes de mais nada é preciso confrontar nossos medos e reconhecer que mudanças requerem disciplina e coragem”, explica Jodiano Rios, psicólogo de São Paulo. O caminho serve para outros hábitos perdidos, até mesmo a leitura e a prática de meditação.

Respeite seus limites, mesmo que eles sejam novos

É comum que criemos, mesmo que de forma inconsciente, um parâmetro do quanto “aguentamos” de uma atividade. Você sabe, por exemplo, que, normalmente, corre cinco quilômetros ou que precisa de, no mínimo, sete horas de sono para se sentir bem durante o dia. Só que esses padrões podem ter mudado durante a pandemia, já que nosso cérebro se reestruturou de alguma forma, como explicou Myenne. Tente se entender nesse novo momento e restabelecer novos limites. “O primeiro passo é nos conscientizarmos do que nos frustra de forma mais profunda. Isso é individual. Você deve se impor metas dentro desse reconhecimento, para não se direcionar para mais decepções”, explica Jodiano.

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(Elina Krima/Pexels)

Se você está tentando retomar o hábito da leitura, por exemplo, talvez seja mais eficaz estabelecer pequenos objetivos diários do que se propor ler dois livros por mês até o final do ano. Comece com cinco páginas por dia, aumente para dez quando sentir que está mais concentrada e assim por diante. “É essencial ter paciência e tolerância consigo mesmo até quando o resultado esperado não for conquistado”, explica o psicólogo. Ele explica ainda que, em tempos normais, estávamos acostumados a ter recompensas, por exemplo, íamos para a academia porque sabíamos que teríamos o jantar com as amigas ou o bar com os colegas do trabalho. “Podemos nos recompensar com algum mimo, mas, nesse momento, sabendo que a saúde deve estar em primeiro lugar”, completa.

Organize-se e siga o plano

O curso de graduação na área de nutrição de Gaby migrou para o online no início da pandemia. Desde então, ela descobriu que conteúdos em vídeo e áudio prendem melhor sua concentração do que a leitura de textos. Porém, entre um momento de estudo e outro, ela se viu passeando pelas infinitas redes sociais. A prática, que ela entendeu como uma fuga da pressão das aulas, se estendeu até para a hora das refeições. A saída foi deixar o celular com a tela virada para a mesa enquanto come ou estuda. Para Myenne, a técnica é uma boa ideia. “Identifique aquilo que distrai você e organize formas de evitar isso na rotina. Se a música impede a absorção do conteúdo de e-mails ou a produção de um relatório, ouça-a apenas nos momentos de intervalo. Se o celular é uma tentação, desligue as notificações”, exemplifica.

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“Identifique aquilo que distrai você e organize formas de evitar isso na rotina. Se a música impede a absorção do conteúdo de e-mails ou a produção de um relatório, ouça-a apenas nos momentos de intervalo. Se o celular é uma tentação, desligue as notificações”

Myenne Mieko Ayres Tsutsumi, psicóloga

“Além disso, procure organizar um espaço específico para trabalhar e outro para descansar. Estudar e trabalhar na cama pode interferir nas duas atividades. Ou você vai ficar sonolento durante o expediente, ou vai perder o sono à noite, pois ligou o local à produtividade durante o dia”, diz a especialista. Em casa, por menor que seja o seu espaço, crie cantinhos para tarefas específicas e demarque-os com objetos que facilitem a identificação do cérebro e tornem óbvio o que deve acontecer ali. Um espaço de meditação pode ter, por exemplo, um porta incenso; já uma poltrona com livros indica que ali você vai se concentrar na leitura; todo o equipamento do home office deve ser mantido em um lugar específico – na cama, nem pensar!

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(Elina Krima/Pexels)

Faça pausas

O ritmo de nossas vidas foi profundamente alterado. A gente sai bem menos de casa, mas está tudo mais acelerado internamente. Agora é hora de pisar no freio. Não dá para querer ocupar todos os minutos do dia com atividades e esperar que elas sejam produtivas. “Descansar é fundamental. Porém, essa palavra tem um significado diferente para cada um”, explica Myenne. “Você precisa entender o que faz sua cabeça desconectar e seu ombro relaxar.” Dá para experimentar coisas novas: que tal aprender trabalhos manuais? A visagista e maquiadora Camila Vanzo, 36 anos, encontrou uma nova atividade preferida na pandemia e após o nascimento da filha Liz, de 10 meses. “Quando quero respirar, corro para o banho. O silêncio me ajuda a organizar as ideias e dá a sensação de paz”, conta ela. Se você já passa muito tempo em frente às telas, evite assistir séries ou outras atividades que prolonguem a exposição à tecnologia. Nesse momento, seu objetivo não é estar 100% concentrado, mas permitir que a mente divague e descanse para, depois, poder voltar a focar numa atividade.

“Descansar é fundamental. Porém, essa palavra tem um significado diferente para cada um. Você precisa entender o que faz sua cabeça desconectar e seu ombro relaxar”

Myenne Mieko Ayres Tsutsumi, psicóloga

Procure ajuda, se precisar

Foi após um desabafo de uma amiga que Camila teve certeza de que não era a única a sofrer com perda de memória e concentração durante a pandemia. “Não consigo ler mais do que um capítulo de livro e já coloquei a roupa para lavar sem sabão. A minha impressão é de que o corpo não acompanha a mente, deixando pensamentos desorganizados”, revela ela, descrevendo apagões mentais, quando, assim como um computador travado, a cabeça parece não conseguir resgatar uma informação importante. A saída para recuperar o foco se deu com exercícios de mindfulness, técnica que trabalha a atenção plena, principalmente através do controle da respiração. Se esse sintoma for persistente, é importante recorrer à ajuda profissional para entender o que pode estar acontecendo – é possível que seja uma reação de fundo emocional.

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(Elina Krima/Pexels)

“Não consigo ler mais do que um capítulo de livro e já coloquei a roupa para lavar sem sabão. A minha impressão é de que o corpo não acompanha a mente, deixando pensamentos desorganizados”

Camila Vanzo

Outro comportamento que deve ser observado é o humor – a maquiadora relata crises de choro e irritabilidade. “A falta de concentração às vezes é percebida como procrastinação e a angústia pode vir do julgamento pessoal de se entender como incapaz de realizar seus objetivos”, explica Jodiano. A longo prazo, essa frustração pode levar à depressão, um transtorno que leva à apatia, desesperança e derruba de vez a produtividade. “É necessário quebrar esse círculo vicioso e isso só pode ser feito com o auxílio de um profissional da saúde mental”, conclui o psicólogo.

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