Centro de São Paulo, a maior capital do Brasil, é um retrato preciso de como a fome tem corroído o tecido da nossa sociedade atual. Dos mais de 24 mil moradores de rua da cidade (os dados são de 2019, por isso desatualizados), a maior parte deles está concentrada na área central, onde muitos sem-teto se aglomeram nas marquises das lojas, nas praças públicas e sob viadutos que compõem a distinta paisagem urbana paulistana. Enquanto a população da cidade aumentou 8% nos últimos dez anos, o número de moradores de rua aumentou 80%.
Desde o começo da pandemia, essa realidade tem se tornado mais severa. Com o fechamento dos comércios e, principalmente, dos restaurantes, esses “cidadãos, sim” têm mais dificuldade em conseguir alguma refeição durante o dia ou até algum tipo de sustento, já que, para muitas pessoas que vivem nas ruas, o lixo descartado por esses estabelecimentos representa também uma fonte de renda, um ganha-pão.
Com as medidas de imposição de quarentena na cidade, o distanciamento físico se mostrou ainda mais marcante diante deste cenário: trancados em suas casas, os paulistanos se tornaram ainda mais apartados dessa realidade. Nas ruas, a fome hoje ronca mais alto. Mas não a ponto de ser ouvida no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual de São Paulo, a cerca de 10 km do centro.
Foi ali que uma entrevista com a primeira-dama Bia Doria feita pela socialite Val Marchiori causou polêmica na semana passada e se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais. Bia, que preside o Conselho do Fundo Social de São Paulo, e está à frente do Fundo Social de Solidariedade com projetos como Alimento Solidário, disse que “não é correto você chegar lá na rua e dar marmita porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua”. Para Bia, “a rua é um atrativo” e talvez a fome seja uma escolha.
As reações às falas da primeira-dama vieram de todos os lados – até pelas já banalizadas notas de repúdio. Mas todas elas lembram uma questão fundamental: distribuir comida não é solidariedade, mas uma questão de civilidade, ainda mais em um momento como o que estamos vivendo. O mundo nunca enfrentou uma emergência de fome como essa, dizem especialistas. E o número de pessoas a sofrer com a fome aguda pode dobrar para 265 milhões até o final deste ano.
Grito de socorro
O alerta não vem só das ruas paulistanas. Na Colômbia, desde que a pandemia teve início, tornou-se comum ver panos vermelhos amarrados às janelas das casas nas periferias de cidades como Bogotá. Eles indicam que ali há gente passando fome. Toalhas, lençóis e camisetas são usadas para emitir o socorro. Na maior favela de Nairobi, no Quênia, pessoas desesperadas para comer provocaram uma debandada durante uma recente distribuição de farinha e óleo de cozinha, deixando dezenas de feridos e duas pessoas mortas.
Na Índia, milhares de trabalhadores fazem fila duas vezes por dia para pegar pão e legumes para manter a fome sob controle. Até mesmo em capitais europeias, o número de pessoas em filas de mantimentos e alimentos cresceu significativamente. Lockdowns e quarentenas comprometeram o mercado de trabalho, minaram as vagas formais, atrapalharam a produção agrícola e as rotas de suprimento e deixaram milhões de pessoas sem saber se terão dinheiro suficiente para comer.
“Quando saíamos para fazer nosso trabalho, percebíamos as pessoas comendo comida do lixo. Do lixo das casas, porque com os restaurantes fechados, não havia nem comida descartada por eles”
Patricia Parra Stein, da Cozinheiros do Bem
Dados do Banco Mundial indicam que, nos países em desenvolvimento, 70% dos empregos são informais e, em 30% deles, 4 em cada 10 trabalhadores cairiam para a zona de pobreza se parassem de trabalhar. Para muita gente, isolamento social não é uma possibilidade; para os que estão em situação de rua, ele se torna um isolamento ainda maior. A fim de tentar amparar essa faixa da população frente a ajudas emergenciais que parecem ser insuficientes, ONGs e voluntários se esforçam para levar comida a mais pessoas agora.
Patrícia Parra Stein é coordenadora da iniciativa social Cozinheiros do Bem, que serve cerca de 1,5 mil pratos por semana a moradores de rua de Porto Alegre, e conta que notou mudanças significativas desde o começo da pandemia. Com as pessoas fechadas em casa, não havia ninguém nas ruas, a cidade ficou deserta. “Quando saíamos para fazer nosso trabalho, percebíamos as pessoas comendo comida do lixo. Do lixo das casas, porque com os restaurantes fechados, não havia nem comida descartada por eles”, diz. “As pessoas estavam passando muita, muita fome”.
Além das marmitas, eles decidiram então incluir a entrega de alimentos e “kits de sobrevivência”, como diz, junto com as refeições. “Distribuímos água, massa de miojo, sardinha, fruta, bolacha. Algo que eles possam ter fácil nas mãos para se alimentar até a gente voltar pelo menos até o dia seguinte”, relata.
Mas o que mais chamou a atenção dela foi que, embora o foco do projeto tenha sempre sido os moradores de rua, como as pessoas não estavam trabalhando, eles precisaram começar a visitar também comunidades da cidade para ajudar. As senhoras que fazem faxina ou que estavam cuidam de idosos, por exemplo, ficaram sem trabalho. “As pessoas não querem gente de fora trazendo vírus para suas casas”, ela diz.
Nessas comunidades, muita gente começou a ficar sem alimento para as famílias. “Além de comida, passamos a distribuir alimentos e até gás, porque as pessoas não tinham como cozinhar para os seus, fazer aquela refeição gostosa”. Nesse sentido, Patrícia diz que um dos pressupostos do projeto é doar comida que seja a mesma que você comeria. “A gente cozinha no local, debaixo de viadutos, para mostrar esse carinho. Isso faz toda a diferença”.
Foi a principal ideia que o chef nepalês Tanka Sapkota levou em conta quando colocou um forno de pizza a percorrer literalmente as ruas de Lisboa e distribuir oito mil refeições a mais de 1.700 famílias. Sobre rodas, ele levou suas premiadas pizzas a cerca de 300 pessoas por dia em 24 bairros distintos. Com a ajuda da prefeitura, conseguiu levantar uma lista de pessoas em situação de necessidade – muitas delas inscritas nos programas do governo por conta da pandemia – e criar um cronograma de entregas.
“Não dá pra fecharmos os olhos ao que acontece em volta de nós. Vimos muitas famílias que, de um dia para o outro, começam a precisar de ajuda”
Tanka Sapkota, chef
As pizzas são as mesmas que serve na sua pizzaria Forno D’Oro, reconhecida pela exigente associação Vera Pizza Napoletana, uma espécie de sociedade secreta das pizzas autênticas. “Usamos os mesmos ingredientes, as mesmas formas de assar. Criamos o forno ambulante para poder servi-las quentes, exatamente como as servimos aos nossos clientes”, diz o chef, que chegou a Portugal em 1996. “Mais do que alimento, comida também é auto-estima”, garante.
Sapkota saiu do Nepal ainda jovem para fugir de um casamento arranjado, trabalhou em um restaurante italiano na Alemanha onde aprendeu de lavar louça a fazer massa e, em Lisboa, criou um pequeno grupo de restaurantes que se tornou um êxito na cidade. “Sinto que preciso retribuir tudo o que a vida me deu”, conta. A iniciativa conseguiu mobilizar mais de 500 voluntários e ele espera que possa inspirar mais pessoas. “Não dá pra fecharmos os olhos ao que acontece em volta de nós”, desabafa. “Vimos muitas famílias que, de um dia para o outro, começam a precisar de ajuda”.
Por aqui
De volta ao Centro de São Paulo, há diversos projetos a olhar com mais atenção para as pessoas de rua que parecem crescer a cada dia. A Rede Social do Centro congrega diversas ações de ajuda à população em situação de rua. De março a junho, foram mais 160 mil marmitas doadas, 31 toneladas de alimentos, 5 mil cestas e 11 mil kits de EPI (equipamentos de proteção individual). A Nosso Sonhos é uma das instituições parceiras que passou a atender esse público nas últimas semanas – ainda que o foco habitual de trabalho sejam crianças e adolescentes vulneráveis.
Com as atividades educacionais e recreativas encerradas, de aulas de percussão a balé, passaram a servir as refeições às crianças e suas famílias nas próprias comunidades, como a Favela do Moinho e Ocupações como a da Marcela e do Carioca, na região da Cracolândia. “Nosso desafio era entregar mil marmitas por dia. Mas chegamos a mais que o dobro disso tamanha era a demanda”, diz Gabriel Pietro, um dos coordenadores da Novos Sonhos.
“Nosso desafio era entregar mil marmitas por dia. Mas chegamos a mais que o dobro disso tamanha era a demanda”
Gabriel Prieto, coordenador da Novos Sonhos
Agora, a área de doações ultrapassou o Centro, chegando à Vila Prudente, Peri Alto, Coruja e Favela do Boqueirão. O que estava mais localizado na região central de São Paulo foi se alastrando pelas Zonas Leste, Norte e Sul como um surto para tentar oferecer o mínimo de ajuda para as pessoas que precisam agora, “mais do que nunca”, como ele diz, à medida que a pandemia leva mais gente à situação de necessidade.
Como Patrícia pontua, “é sempre muito tênue a linha que separa quem tá do lado de cá da fila de quem tá do lado de lá, recebendo”. “As pessoas julgam sem imaginar que a condição de uma pessoa pode mudar de repente em tempos como esse”, diz ela que, há dez anos trabalhando como voluntária, já viu muita gente conhecida precisar de ajuda. Nesses tempos de Covid-19, em que uma crise de saúde paira em torno de todos nós, entregar comida pode ser, mais do que evidentemente correto, a única forma de salvar muitas pessoas.