ntes de mergulhar na minha experiência com as Hijras, acho interessante explicar como nasceu em mim a vontade de conhecê-las e fotografá-las. Durante cinco anos, entre 2014 e 2019, iniciei um processo de olhar para as questões de gênero enquanto fotógrafe. Comecei fotografando mulheres em diferentes contextos, como mulheres no funk em São Paulo e as que moram no Irã, onde o uso do hijab é obrigatório, entre outros aspectos do ser feminino que podem ser apresentados, principalmente nas mídias tradicionais, como desfavorecidos por ocuparem espaços representados como majoritariamente masculinos.
Com o progresso das discussões em torno de identidade de gênero e o avanço da liberdade em falar e pensar sobre isso dentro do contexto LGBTQIA+, passei a pensar no meu lugar enquanto indivíduo, proveniente de um longo histórico pertencente à comunidade como mulher e lésbica em uma época que éramos limitados à sigla GLS. Agora com a possibilidade de desconstrução e construção em meio às novas identidades, pude entender a não binaridade, ainda que lésbica, como uma identidade mais plural, sem amarras, e que, sinceramente, me cai muito bem. 😉
Em meio a esse processo, compreendi que o entendimento só foi possível porque passamos a questionar esse assunto – e aí me veio a necessidade de pensar como o meio em que um indivíduo está inserido pode influenciar a compreensão acerca da identidade de gênero. Pensar sobre isso atrelado a diferentes contextos culturais, políticos e religiosos tornou-se uma inquietação. E como a fotografia é uma ferramenta que me permite experienciar histórias, mais uma vez foi o meio utilizado para olhar para isso através de uma perspectiva questionadora e pessoal.
Quando decidimos que este ensaio seria publicado aqui na Elástica, decidi que criaria uma atmosfera para selecionar as fotos que aqui estão. Era uma oportunidade de processar novamente toda essa vivência. Acendi um incenso, coloquei uma música de um CD que eu ganhei de um amigo nepalês e mergulhei no material. Foi uma noite de revisitar lugares que são importantes para mim e parte da construção do ser humano que sou hoje. Em seguida, abri a galeria do meu celular para revisitar fotos pessoais dessas viagens, e fui presenteade com uma linda memória do dia 5 de maio de 2019, data em que fotografei e filmei com meu celular diversas partes de Délhi durante os passeios que fiz nesse dia enquanto viajava por lá. Há exatamente dois anos, eu estava começando mais um mergulho no sul da Ásia, dessa vez em busca de semideusas (ou bruxas, como me ensinou Juily) para iniciar esse projeto.
A intenção de “voltar” para Índia e fazer um trabalho que fizesse sentido para mim foi o que me levou a Varanasi, cidade de grande importância religiosa para os hindus e local onde conheci Rupaa e Muskan, duas mulheres transexuais que nasceram e vivem na Índia. Rupaa e Muskan são parte de uma comunidade chamada de Hijras, mulheres trans que intercalam suas vidas entre prostituição e manifestações religiosas devido à presença de um terceiro sexo perante as crenças hindus.
“Rupaa e Muskan são parte de uma comunidade chamada de Hijras, mulheres trans que intercalam suas vidas entre prostituição e manifestações religiosas devido à presença de um terceiro sexo perante as crenças hindus”
Encontrá-las foi tão difícil quanto literalmente procurar por semideusas em meio a uma sociedade que as reconhece no quesito religioso, mas parece preferir desconhecer suas existências, já que são mulheres que vivem às margens, sem oportunidades de trabalho, de relacionamentos familiares e sociais. Fui para Índia sem contatos que me possibilitassem esse encontro, algo que normalmente busco antes de chegar ao local onde vou trabalhar – esse planejamento facilita o trabalho quando ele é feito durante uma viagem, já que estar fora do país reduz o prazo de desenvolvimento do projeto. A dificuldade de entrar em contato virtualmente com possíveis personagens me levou a confiar no acaso e esperar que o encontro se desse presencialmente no local, o que acabou se tornando um grande desafio. Toda vez que eu perguntava para algum indiano onde eu poderia encontrar uma Hijra, eles pediam para eu não falar esse nome, ou simplesmente saiam de perto envergonhados. E esse tipo de comportamento prevaleceu até meus últimos dias em Varanasi.