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Depois daquela viagem

Dan Agostini relembra seu encontro com duas hijras na Índia e fala sobre sua pesquisa imagética de gênero e não binaridade na fotografia

por Dan Agostini Atualizado em 13 Maio 2021, 11h03 - Publicado em 13 Maio 2021 00h04
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(Clube Lambada/Ilustração)

ntes de mergulhar na minha experiência com as Hijras, acho interessante explicar como nasceu em mim a vontade de conhecê-las e fotografá-las. Durante cinco anos, entre 2014 e 2019, iniciei um processo de olhar para as questões de gênero enquanto fotógrafe. Comecei fotografando mulheres em diferentes contextos, como mulheres no funk em São Paulo e as que moram no Irã, onde o uso do hijab é obrigatório, entre outros aspectos do ser feminino que podem ser apresentados, principalmente nas mídias tradicionais, como desfavorecidos por ocuparem espaços representados como majoritariamente masculinos.

Com o progresso das discussões em torno de identidade de gênero e o avanço da liberdade em falar e pensar sobre isso dentro do contexto LGBTQIA+, passei a pensar no meu lugar enquanto indivíduo, proveniente de um longo histórico pertencente à comunidade como mulher e lésbica em uma época que éramos limitados à sigla GLS. Agora com a possibilidade de desconstrução e construção em meio às novas identidades, pude entender a não binaridade, ainda que lésbica, como uma identidade mais plural, sem amarras, e que, sinceramente, me cai muito bem. 😉

Roupas femininas na área externa de uma casa na Índia. Em 2014, a Suprema Corte indiana reconheceu pessoas transexuais como um terceiro gênero. Desde então, as hijras passaram a ter acesso à educação e à participação em projetos sociais, entre outros direitos. A decisão ainda não traz mudanças significativas na vida de muitas mulheres trans que não possuem espaço no mercado de trabalho e precisam se prostituir para sobreviver
Roupas femininas na área externa de uma casa na Índia. Em 2014, a Suprema Corte indiana reconheceu pessoas transexuais como um terceiro gênero. Desde então, as hijras passaram a ter acesso à educação e à participação em projetos sociais, entre outros direitos. A decisão ainda não traz mudanças significativas na vida de muitas mulheres trans que não possuem espaço no mercado de trabalho e precisam se prostituir para sobreviver (Dan Agostini/Fotografia)

Em meio a esse processo, compreendi que o entendimento só foi possível porque passamos a questionar esse assunto – e aí me veio a necessidade de pensar como o meio em que um indivíduo está inserido pode influenciar a compreensão acerca da identidade de gênero. Pensar sobre isso atrelado a diferentes contextos culturais, políticos e religiosos tornou-se uma inquietação. E como a fotografia é uma ferramenta que me permite experienciar histórias, mais uma vez foi o meio utilizado para olhar para isso através de uma perspectiva questionadora e pessoal. 

Quando decidimos que este ensaio seria publicado aqui na Elástica, decidi que criaria uma atmosfera para selecionar as fotos que aqui estão. Era uma oportunidade de processar novamente toda essa vivência. Acendi um incenso, coloquei uma música de um CD que eu ganhei de um amigo nepalês e mergulhei no material. Foi uma noite de revisitar lugares que são importantes para mim e parte da construção do ser humano que sou hoje. Em seguida, abri a galeria do meu celular para revisitar fotos pessoais dessas viagens, e fui presenteade com uma linda memória do dia 5 de maio de 2019, data em que fotografei e filmei com meu celular diversas partes de Délhi durante os passeios que fiz nesse dia enquanto viajava por lá. Há exatamente dois anos, eu estava começando mais um mergulho no sul da Ásia, dessa vez em busca de semideusas (ou bruxas, como me ensinou Juily) para iniciar esse projeto. 

As flores são utilizadas em diversos rituais hindus – seja como adereço religioso na parte externa das casas (no topo) ou em oferendas no Rio Ganges
As flores são utilizadas em diversos rituais hindus – seja como adereço religioso na parte externa das casas (no topo) ou em oferendas no Rio Ganges (Dan Agostini/Fotografia)

A intenção de “voltar” para Índia e fazer um trabalho que fizesse sentido para mim foi o que me levou a Varanasi, cidade de grande importância religiosa para os hindus e local onde conheci Rupaa e Muskan, duas mulheres transexuais que nasceram e vivem na Índia. Rupaa e Muskan são parte de uma comunidade chamada de Hijras, mulheres trans que intercalam suas vidas entre prostituição e manifestações religiosas devido à presença de um terceiro sexo perante as crenças hindus. 


“Rupaa e Muskan são parte de uma comunidade chamada de Hijras, mulheres trans que intercalam suas vidas entre prostituição e manifestações religiosas devido à presença de um terceiro sexo perante as crenças hindus”

Encontrá-las foi tão difícil quanto literalmente procurar por semideusas em meio a uma sociedade que as reconhece no quesito religioso, mas parece preferir desconhecer suas existências, já que são mulheres que vivem às margens, sem oportunidades de trabalho, de relacionamentos familiares e sociais. Fui para Índia sem contatos que me possibilitassem esse encontro, algo que normalmente busco antes de chegar ao local onde vou trabalhar – esse planejamento facilita o trabalho quando ele é feito durante uma viagem, já que estar fora do país reduz o prazo de desenvolvimento do projeto. A dificuldade de entrar em contato virtualmente com possíveis personagens me levou a confiar no acaso e esperar que o encontro se desse presencialmente no local, o que acabou se tornando um grande desafio. Toda vez que eu perguntava para algum indiano onde eu poderia encontrar uma Hijra, eles pediam para eu não falar esse nome, ou simplesmente saiam de perto envergonhados. E esse tipo de comportamento prevaleceu até meus últimos dias em Varanasi. 

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Margem do rio Ganges, em Varanasi. O Ganges, assim como a cidade de Varanasi, é um lugar de extrema importância religiosa para os hindus
Margem do rio Ganges, em Varanasi. O Ganges, assim como a cidade de Varanasi, é um lugar de extrema importância religiosa para os hindus (Dan Agostini/Fotografia)

O encontro

Moon foi uma companhia em grande parte dos dias. Entre um cigarro e outro, conversávamos sobre as diferenças culturais entre Brasil e Índia enquanto o pôr do sol caía no Ganges, momento em que muitos hinduístas rezavam e agradeciam com seus corpos mergulhados no rio. Em algumas ocasiões, Moon me convidava para passear de barco, trabalho que o permitia manter financeiramente sua família e também aperfeiçoar seu inglês. Foi quando comentei com ele sobre a finalidade da minha viagem e minha frustração em não encontrar com nenhuma Hijra a poucos dias de voltar para o Brasil. Por acaso – e muita sorte Moon – não sentiu vergonha. Apenas me olhou com uma expressão de quem ri (e parece esperto ao mesmo tempo) e me contou sobre uma comunidade que vivia perto dali e, por coincidência, era do lado de onde um amigo dele morava.

Acima, Rupaa aguarda para subir em um barco no Rio Ganges, em Varanasi. Ela esconde o rosto com um lenço sempre que circula em áreas movimentadas da cidade. Abaixo, detalhes da roupa e adereços de Muskan, típicos da cultura indiana. As Hijras usam Sari como símbolo e afirmação de sua identidade feminina.
Acima, Rupaa aguarda para subir em um barco no Rio Ganges, em Varanasi. Ela esconde o rosto com um lenço sempre que circula em áreas movimentadas da cidade. Abaixo, detalhes da roupa e adereços de Muskan, típicos da cultura indiana. As Hijras usam Sari como símbolo e afirmação de sua identidade feminina. (Dan Agostini/Fotografia)

No dia seguinte, o amigo avisou a ele que elas poderiam passar em uma das estreitas vielas de Varanasi em sentido ao rio. Moon me levou até o local e sugeriu que eu tomasse um chai de um senhor que vendia na mesma rua, assim eu poderia passar o tempo enquanto esperava por elas, e me deixou lá, porque precisava voltar ao trabalho. Desconfortável com o calor – fui para Índia em pleno verão, quando os termômetros batem acima de 40º –, de pé e sem saber ao certo onde ficava meu hostel, esperei por elas o tempo de tomar lentamente 3 chais sem sucesso. No dia seguinte, ao meio dia, horário que muitos evitam sair de casa devido o calor, Moon me ligou da beira do rio excitado porque duas hijras passaram por ele e eu precisava correr pra lá. E foi assim que as encontrei pela primeira (e praticamente única) vez. 


“Rupaa posava para a foto de uma forma potente e inexplicável, a maneira que ela olhava e posicionava seu corpo para câmera era como se existisse a intenção de se deixar revelar. Do outro lado do rio, Rupaa dançou, pediu fotos com Muskan e comigo, e trocamos contatos”

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Depois daquela viagem

Rupaa e Muskan em um barco no rio Ganges, em Varanasi. Elas são amigas e vivem na mesma comunidade de Hijras. Muskan frequentemente acompanha Rupaa quando elas precisam sair de onde moram – é comum as hijras circularem pela cidade em grupos por questões culturais e por segurança.Rupaa parecia de fato uma deusa. Alta, com um saree branco com flores azuis, cabeça e rosto cobertos com um lenço vermelho que revelava apenas seu olhar, tentava o tempo todo se esquivar de qualquer aproximação. Moon fazia o meio de campo com informações sobre o meu trabalho ao mesmo tempo que as convencia a um passeio de barco por conta da casa. Quando eu perguntava o que elas estavam respondendo sobre disponibilizar um tempo para uma conversa, ele respondia nervoso que elas não podiam ser vistas ali. Então, descemos as escadas que dão acesso à beira do rio entre olhares e risadas dos homens que trabalhavam com Moon e partimos para a outra margem do Ganges, local completamente deserto, onde eventualmente algum indiano passeava de camelo. 

Minha conexão com Rupaa aconteceu no barco. Uma comunicação a partir expressões amigáveis e curiosas. Ali, senti que teria espaço para fazer umas fotos, e de fato nos sentimos muito à vontade com isso. Rupaa posava para a foto de uma forma potente e inexplicável, a maneira que ela olhava e posicionava seu corpo para câmera era como se existisse a intenção de se deixar revelar. Do outro lado do rio, Rupaa dançou, pediu fotos com Muskan e comigo, e trocamos contatos. Voltamos para a margem que dá acesso à cidade e decidi acompanhar elas caminhando até uma parte do trajeto. Nesse momento, Moon precisou ficar no barco, então foi um caminho de paradas para fotos, sorrisos e comunicação incompreensível, onde os olhares e risadas de homens com quem cruzávamos já não incomodavam mais. Foi só nessa hora que Rupaa deixou o rosto visível, enquanto andava deixando o lenço vermelho somente cobrir seus cabelos. Na noite do dia em que nos encontramos, Rupaa me ligou por chamada de vídeo, trocamos algumas expressões amigáveis novamente e desligamos. Enviei as fotos do dia, ela agradeceu em hindi e eu, usando o Google Translator, aproveitei para perguntar se poderíamos nos encontrar novamente, conversar e comer algo. 

Rupaa posa para retrato na frente de uma casa em Varanasi. Durante uma conversa, ela relaciona sua identidade de gênero a decisões divinas
Rupaa posa para retrato na frente de uma casa em Varanasi. Durante uma conversa, ela relaciona sua identidade de gênero a decisões divinas (Dan Agostini/Fotografia)


“No dia seguinte, almoçamos juntes. Soube que Rupaa e Muskan viviam na mesma comunidade com outras mulheres transexuais. Que Rupaa ama dançar e, através da dança, consegue sobreviver. Que Rupaa saiu da casa de seus pais quando era criança e que nunca precisou pensar sobre sua identidade de gênero porque nasceu assim por vontade divina. Sobre Muskan, soube apenas que era uma péssima dançarina”

No dia seguinte, almoçamos. Moon, Muskan, Rupaa e eu, em um restaurante perto da margem do Rio. Mesmo que um pouco inquietas com a situação de sentar em um local público para comer, a conversa traduzida por Moon permitiu que eu conhecesse um pouco sobre elas. Soube que Rupaa e Muskan viviam na mesma comunidade com outras mulheres transexuais. Que Rupaa ama dançar e, através da dança, consegue sobreviver recebendo pequenas quantias nas ocasiões em que abençoa pessoas presentes em eventos familiares e religiosos. Que Rupaa tem um namorado e tatuou o nome dele na mão – e, por mais que o ame, ele é muito agressivo. Que saiu da casa de seus pais quando era criança e que nunca precisou pensar sobre sua identidade de gênero porque nasceu assim por vontade divina. Sobre Muskan, soube apenas que era uma péssima dançarina.

Rupaa em uma área deserta na margem do rio Ganges, em Varanasi. Durante nossa conversa, ela fala alegremente sobre sua paixão pela tradicional dança indiana
Rupaa em uma área deserta na margem do rio Ganges, em Varanasi. Durante nossa conversa, ela fala alegremente sobre sua paixão pela tradicional dança indiana (Dan Agostini/Fotografia)

Passado mais um dia, perguntei a Moon se poderíamos ir de moto até o local onde elas moravam. Ele me explicou que o local era ponto de prostituição, que já esteve lá com seu amigo, e que poderia ser perigoso encontrar com o namorado da Rupaa, dando a entender que homens como ele controlam o trabalho e o local. Preferi não insistir e aceitei ir até a casa de Moon conhecer a mãe dele. No dia seguinte, meu voo sairia cedo para Délhi, e de lá para o Brasil. Dois anos se passaram e ainda mantenho contato com Moon e com Rupaa. Com Moon, é possível conversar sobre como está a pandemia e sua família, sobre minha vontade de reencontrá-lo e também Rupaa, e poder sentir novamente a força que emana do Ganges toda vez que o sol nasce e se põe. Com Rupaa, trocamos muitos emojis, desejamos good night. Ela envia vídeos e fotos quando eu pergunto em hindi, traduzido do Google, como ela está e sempre a mantenho atualizada sobre os lugares em que ela chegou. Agora, preciso enviar também esse link aqui.

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Muskan, Dan Agostini e Rupaa em Varanasi no dia em que se conheceram, em 2019
Muskan, Dan Agostini e Rupaa em Varanasi no dia em que se conheceram, em 2019 (Dan Agostini/Arquivo)
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Dan Agostini. Confira mais de seu trabalho aqui.

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