uando o endocrinologista listou os possíveis efeitos colaterais da testosterona, pensei que precisaria apenas de fé para a chegada das mudanças corporais. Hoje, após um ano e dez meses de hormonização, entendo que o processo demanda muito mais do que acreditar. É preciso abrir mão de muita coisa.
Eu tinha 20 anos quando incluí no meu processo de transição a ideia de me submeter a um tratamento hormonal. No início, meu sonho era ser visto pelas pessoas como um homem cisgênero, isto é, que se sente confortável com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Procurei pessoas parecidas comigo e foi no YouTube que encontrei, pela primeira vez, homens trans contando sobre suas experiências com a testosterona. Alguns recorriam ao acompanhamento por hospitais particulares, outros contavam sobre ambulatórios públicos direcionados para a população trans, mas a maioria relatava ter recorrido à hormonização por conta própria. A ideia de ter pelos no rosto, voz mais grave e um corpo com outro formato foi muito atrativa, mas eu sabia que, por ser hipertenso, a aplicação de testosterona sem prescrição médica poderia me causar complicações. Preferi, então, procurar o posto de saúde perto de casa.
“Eu estava feliz por ser o segundo na minha favela a conseguir um documento oficial com meu nome, mas toda vez que ia ao posto, eu era chamado pelo nome antigo”
Rahzel Alec da Silva
Tracei na cabeça um passo-a-passo: ir até o postinho, solicitar o nome social na carteirinha do SUS e, depois, o encaminhamento para o IEDE, que é um ambulatório estadual especializado no processo transexualizador na rede pública. Na minha cabeça era um plano simples, mas depois da primeira etapa tudo foi complicado. No Morro do Preventório, onde eu morava, que é uma favela de aproximadamente cinco mil habitantes na cidade de Niterói, os agentes de saúde ainda estavam se familiarizando com a inclusão do nome social no programa em que são realizados os cadastros dos usuários do SUS (a inclusão do nome social nos órgãos públicos foi decretada em 2016 no Decreto n° 8.727), daí o nome de registro veio em letras garrafais e o nome social meio escondido, em letras menores. Eu estava feliz por ser o segundo na minha favela a conseguir um documento oficial com meu nome, mas toda vez que ia ao posto, eu era chamado pelo nome antigo.
Quando fui solicitar o encaminhamento ao endocrinologista, os profissionais me disseram que o SisReg – sistema web no qual são agendadas consultas, exames e cirurgias – tem um longo tempo de espera e que, por isso, não sabiam quanto tempo levaria. Fui ao posto todos os dias depois da escola durante 2017 e a resposta era sempre a mesma: ainda não sabemos.
Em 2018, por conta da minha entrada na universidade, me mudei para a capital do Rio de Janeiro e resolvi recomeçar o processo em outro posto de saúde. Lá, descobri que em Niterói nunca haviam feito uma solicitação para mim.
Cleo Oliveira, assistente social e assistente de pesquisa clínica do INI/Fiocruz, diz que “esse encaminhamento às vezes não acontece por conta de uma estrutura burocrática que impede que a gente possa fazer um encaminhamento direto ou procurar diretamente os serviços. E isso está posto devido ao sucateamento da saúde no Brasil”.