m meados de março de 2020, as preocupações de Jefferson Alan com sua carreira artística só aumentavam. Embora as paredes das casas do Barro, bairro na periferia de Recife, carregassem seus grafites com símbolos do sertão nordestino como árvores secas e pássaros, o artista visual de 29 anos enfrentava dificuldades para continuar fazendo arte com o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus. “Busquei fazer algo novo com as referências mais próximas a mim, do meu infinito particular, da minha família e dos meus ancestrais. Aí surgiu a série Olhar Para Dentro“, disse, referindo-se ao novo projeto.
O Olhar Para Dentro é marcado pelo “brilho no olhar”, como ele mesmo diz, das pessoas retratadas nas telas com tintas ou lápis coloridos. Segundo o artista, a ideia não é apenas olhar para si mesmo, mas também para dentro das pessoas, com o coração, buscando a “alma e não só o que está aqui fora”. “Não consigo resumir, mas eu posso dizer que essa série será marcada pelo olhar forte, o olhar forte de luta, o brilho que cada obra carrega em seu olhar. Gosto muito de valorizar também o brilho da pele”, conta ele.
Embora a série tenha nascido apenas no ano passado, “desenhar o povo” já estava em seus planos há muito tempo. Mas foi o processo de isolamento que fez o artista explorar novos estilos. “Eu posso dizer que me senti ameaçado em perder minha vida [por causa da Covid-19] e não fazer tudo o que eu queria. Só durante a pandemia que eu tive coragem de apresentar ao público esses retratos”, revela.
“Não consigo resumir, mas eu posso dizer que essa série será marcada pelo olhar forte, o olhar forte de luta, o brilho que cada obra carrega em seu olhar. Gosto muito de valorizar também o brilho da pele”
Jeff é periférico, criado no Barro, artista visual e grafiteiro. Ao contrário do centro da cidade, que vem sofrendo com a especulação imobiliária e a construção de empreendimentos gigantes, o bairro em que ele nasceu ainda tem uma boa quantidade de casas datadas dos séculos XIX e XX. Foi lá que o artista passou os últimos 12 anos dedicando boa parte dos seus estudos para o grafite.
“No início, eu pintava pouco por não ter condições de comprar o material e não conhecer muito a cena do grafite. Em 2014, me joguei, fui aluno em uma oficina de grafite e de lá para cá eu passei a viver intensamente a arte e a viver de arte”.
“Arte é como se fosse uma consulta com um psicólogo”
Hoje, ele mantém há cinco anos o projeto de pintar a fachada de casas de famílias do bairro, que tem cerca de 30 mil habitantes, sendo que quase 90% dos moradores se autodeclaram negros.
“A arte representa a vida. Quando vou pintar em uma comunidade lá em Recife, as casas esquecidas pelo governo, eu converso com as pessoas, porque antes da pintura tem a conversa. É como se fosse uma consulta com um psicólogo, pois eu tento retratar na obra algo que devolva um sorriso para a família”, explica ele, que tem referências de grandes artistas nordestinos, como o xilógrafo pernambucano J. Borges.
“A arte representa a vida. Quando vou pintar em uma comunidade lá em Recife, as casas esquecidas pelo governo, eu converso com as pessoas, porque antes da pintura tem a conversa. É como se fosse uma consulta com um psicólogo”
Em sua nova fase, Jeff costuma retratar imagens de pessoas negras “vencendo na vida”, “portando coisas boas”, como jóias de ouro, e “conhecendo lugares incríveis”, que antes eram “dominados por pessoas brancas”. Mas o artista garante que não se trata de ostentação, mas de representatividade. Como o quadro Maria, soldado do morro III.
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A obra de 30 x 17 centímetros retrata uma mulher preta de Pernambuco vestindo um moletom com o capuz sobre a cabeça. O fundo preto destaca a cor da blusa rosa, que, por sua vez, faz o espectador fixar o olhar nos olhos verdes misteriosos e brilhantes desenhados com tinta aquarela. Segundo Jeff, a figura da obra é uma mulher que conheceu no município de Ilha de Itamaracá. Ela construiu a própria casa com garrafas pet.
Amarelo e azul
A obra em questão foge do estilo do artista por trazer as cores pretas e tons de rosa. Isso porque Jeff é daltônico – doença que reduz a capacidade de diferenciar cores. Segundo ele, por este motivo, as cores que mais lhe agradam são o amarelo e azul, como pode ser observado na obra intitulada Zeferina, que retrata o rosto de uma mulher negra em situação de rua no Recife. Em um fundo de tela amarelo vibrante, os olhos da mulher parecem saltar da tela.
“Tudo isso no processo de pintura é muito intuitivo, eu não estudei pintura, passei por algumas oficinas, mas nada profissional e até para escolher as cores por eu ser daltônico. Ou seja, tem cores que eu insiro no meu trabalho, mas que eu não consigo identificar. Mas eu sinto que, quando estou pintando, tem alguém comigo, é muito forte a presença e sinto alguém me guiando”, explica, referindo-se aos avós maternos, seu José Mendes e dona Luiza, cujo qual o artista não chegou a conhecer.
“Tudo isso no processo de pintura é muito intuitivo, eu não estudei pintura, passei por algumas oficinas, mas nada profissional e até para escolher as cores por eu ser daltônico. Ou seja, tem cores que eu insiro no meu trabalho, mas que eu não consigo identificar”
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Essas obras podem ser vistas no Instagram de Jeff, que conta com mais de 17 mil seguidores, sendo que a maior parte deles chegou junto com a nova fase de pinturas. Muitos artistas, como Jeff, utilizam a ferramenta para sobreviver.
Durante a pandemia, Facebook, Instagram e WhatsApp tiveram um crescimento de cerca de 40% no período, apontam dados divulgados pela Kantar no segundo semestre de 2020. Já a Squid, especializada em marketing de influência, também apontou números positivos para o período de isolamento social: em comparação com o mesmo período no ano passado, houve um aumento de 24% na taxa de engajamento e 27% no alcance efetivo da ferramenta de ‘stories’ do Instagram.
Foi assim que o artista pernambucano foi convidado para compor a exposição Múltiplos In-Comum, na Vila Madalena, em São Paulo. Jeff irá exibir a série Olhar Para Dentro a partir desta quinta-feira, 4 de março, até o dia 10 de abril. Ao lado de 13 artistas, o objetivo do evento na A7MA Galeria é mostrar a “harmonia das diferenças”. Por causa da nova fase do Plano São Paulo, que dita as diretrizes no combate à pandemia na capital paulista, a exposição pode ter alterações no acesso ou feito até mesmo de maneira online.
“Estou vivendo a minha melhor fase artística da minha carreira em meio a pandemia, uma coisa assim meio louca, em meio a tanto sofrimento e tanta dor, eu posso dizer que está sendo a melhor fase da minha carreira. Não só por questão financeira e de reconhecimento, mas está alcançando os meus sonhos e ajudando famílias, pois também faço troca das obras por cestas básicas que são doadas para pessoas em situação de vulnerabilidade social”, conta.
“Estou vivendo a minha melhor fase artística da minha carreira em meio a pandemia, uma coisa assim meio louca, em meio a tanto sofrimento e tanta dor, eu posso dizer que está sendo a melhor fase da minha carreira.
Jovem preto, feliz, fazendo dinheiro com arte
Jeff conta que se descobriu artista quando cursou arquitetura e urbanismo por ter contato com “pessoas ligadas a arte e afins”, embora desde criança tivesse a vida dividida entre ser jogador de futebol e passar horas observando pichações e grafites pelas ruas de Recife.
Mesmo tendo incentivos dos pais, uma manicure e um mecânico, vizinhos, colegas e professores, para ele, o processo de se descobrir artista foi “muito louco”. “Há alguns anos, por exemplo, eu trabalhava em uma empresa e demorava um mês para ganhar o que ganho em uma obra. Eu consegui entender que é possível viver do sonho de ser artista, enquanto o mundo todo diz que não, por ser preto, de periferia”, diz ele, que não chegou a terminar o curso na faculdade.
Quando perguntado sobre expor em galerias tradicionais, Jeff se diz muito feliz, mas afirma que não é seu objetivo principal. “É meio louco, a gente falando sobre grafite, sobre arte urbana, sobre o contato com a rua e íamos conversar dentro de uma galeria, de um cubículo. Mas a gente tem uma grande galeria que é a rua, não tem vitrine maior para um artista do que a rua”, avalia, enquanto responde as questões sentado em um banco na calçada em frente a galeria.
Mas, o artista não descarta a importância de ser representado por uma galeria e ter seu trabalho exibido para públicos diferentes. Isso porque, Jeff conta que viveu, há três anos, uma situação de racismo em uma galeria, sendo perseguido por um segurança durante uma exposição em um local famoso de arte em Recife. “Eu senti aquele olhar que machuca, como se falasse que ali não era um lugar para mim”, relembra. “Para a surpresa dele, eu vou ser um dos artistas representados pela galeria, só estou esperando assinar o contrato”.
Em uma publicação nas redes sociais, Jeff aparece sem camisa em uma imagem, segurando uma bisnaga de tinta e sorrindo. A legenda: “Jovem preto, lindo e feliz, fazendo dinheiro com arte”. Para ele, que recentemente tem se conectado com artistas como o rapper mineiro Djonga e o baiano Baco Exu do Blues, é importante estar em galerias, “ocupando estes espaços”, como ele mesmo diz. “Acredito que a nova geração vai mudar o espaço das artes. Não desmerecendo os artistas pretos que vieram antes da gente, mas estamos vindo com muita força e acho que vamos deixar um legado”.
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