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O mundo parou com a pandemia. Elas, não

Além de trabalharem com serviços essenciais, também são chefes de família; enquanto o mundo está em quarentena, essas mulheres continuam trabalhando

por Camila da Silva e Rayane Moura, da Énois 9 jul 2020 09h52
Cleonice Gonçalves, empregada doméstica de 63 anos, foi a primeira vítima fatal de covid-19 no Rio de Janeiro.
Cleonice Gonçalves, empregada doméstica de 63 anos, foi a primeira vítima fatal de covid-19 no Rio de Janeiro. (Pablito Aguiar/Ilustração)

A empregada doméstica Cleonice Gonçalves, de 63 anos, foi a primeira vítima fatal do novo coronavírus no estado do Rio de Janeiro, em março. Com diabetes e hipertensão, Cleonice teve contato com a patroa recém-chegada da Itália, que aguardava o resultado do exame de confirmação do vírus, mais tarde dado como positivo. 

Além de Cleonice, a não possibilidade de escolha de proteção ou trabalho é a realidade que mais de 6 milhões de diaristas e empregadas domésticas enfrentam no Brasil. Como Elisabete Belo dos Santos, 51, moradora da periferia de Santa Luzia em Taboão da Serra, São Paulo, que trabalha como cozinheira e diarista. Mesmo fazendo parte do grupo de risco por ter diabetes e hipertensão, ela se viu sem escolha de isolamento.

Precisar trabalhar para ser o apoio e o sustento das necessidades da família fazem essas mulheres arriscarem a vida para não perder o básico, como a comida e onde morar – são mais de 11 milhões de mães que são chefes de família no Brasil. Destas, 7 milhões são mulheres negras, que também são as que sofrem os maiores impactos: 63% delas vivem abaixo da linha da pobreza. 

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(arte/Redação)

Não faltar o pão na mesa da família é prioridade e se virar para conseguir sobreviver não foi uma realidade trazida com a pandemia. Elisabete, que mora com o filho de 16 anos, viu a situação ficar complicada, em fevereiro, quando uma enchente inundou toda sua casa, cena que se repete na região há mais de dez anos. Logo em seguida, veio a pandemia que dificultou ainda mais a recuperação financeira dela e de sua família, que precisa em média de dois salários mínimos para se manter e viu a renda cair mais da metade. 

“Tudo isso, ‘quebrou minhas pernas’. Fiquei uns quinze dias parada e, depois, minha patroa precisou que eu voltasse, aí eu limpo, faço comida. Eu vou para o trabalho, mas vou com medo de pegar alguma coisa e passar para meus filhos, netos. Eu também tenho diabete, pressão alta, mas o que eu vou fazer? Sou a mulher e o homem da casa”, conta. 

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Assim como ela, os sete irmãos e irmãs que moram no mesmo quintal continuam trabalhando. São mais de dez pessoas que moram no local, entre crianças, jovens e adultos. Os pequenos demandam mais cuidados e atenção, e essas mães se dividem em jornadas triplas para dar conta dessas necessidades. 

“Minha mãe trabalha desde os 6 anos de idade como doméstica e diarista, e a vi muitas vezes ir trabalhar doente. Mesmo falando sobre os riscos do Corona, ela não tem como faltar com risco de ser demitida”

Marcelo Rocha

Levando em consideração os riscos que essas domésticas estão expostas, seus filhos e filhas criaram o coletivo intitulado de “Pela Vida de Nossas Mães”. Além de um manifesto publicado no Facebook, o grupo criou um abaixo assinado online com a intenção de conseguir assinaturas suficientes para reivindicar que essas mulheres tenham dispensa remunerada e, assim, possam atender às medidas de distanciamento social e precaução estipuladas pelas autoridades, protegendo a si e às famílias.  

O coletivo também apresentou em sua página oficial depoimentos desses filhos e filhas, com o objetivo de fazer com que suas mães também tenham o direito de se manterem seguras sem passar por necessidades financeiras. Minha mãe trabalha desde os 6 anos de idade como doméstica e diarista, e a vi muitas vezes ir trabalhar doente para manter seus compromissos. Mesmo falando sobre os riscos do corona, ela não tem como faltar com risco de ser demitida. As domésticas estão correndo grandes riscos e também são uma grande possibilidade de contágio, principalmente nos transportes nas metrópoles”, conta Marcelo Rocha, de Mauá, região do ABC Paulista, em depoimento na página oficial do manifesto. 

Além disso, o grupo fez um mapeamento das mulheres que estão enfrentando dificuldades após serem dispensadas sem nenhuma remuneração e precisam de apoio para pagar as contas básicas. Com isso, o movimento #ApadrinheUmaDoméstica foi criado, e tem como propósito encontrar colaboradores que desejam ajudá-las. De acordo com a página oficial do Manifesto, um total de 58 pessoas já foram contempladas em vários estados do Brasil. Além disso, o abaixo assinado online já conta com cerca de 89.726 assinaturas. 

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Essenciais, mas não bem remunerados

Essas ações de apoio se fazem ainda mais necessárias em um contexto no qual 45% dos patrões mais ricos, pertencentes ao que se chama de “classe A”, dispensaram as empregadas domésticas sem pagamento durante a pandemia. Quando olhamos a “classe B”, foram 39% dos patrões com outros níveis de renda que fizeram o mesmo, segundo a pesquisa do Instituto Locomotiva. Mesmo com muito tempo de trabalho na casa e até sendo consideradas membro das famílias, a situação se reverteu durante essa pandemia. 

“Você acha que alguém vai pagar a gente estando em casa? Nem todo mundo pensa no que a gente precisa. Pra gente que é autônomo é assim, minha filha”, pontua Elisabete.

Trabalhadores informais, sem carteira assinada, já somam mais de 38 milhões de pessoas no Brasil, de acordo com a PNAD Contínua, de novembro de 2019. Entre as diaristas e empregadas domésticas, são 2,5 milhões de profissionais que estão desamparadas por leis trabalhistas e não possuem contratos legais, conforme pontua o coletivo, o que deixa essas trabalhadoras ainda mais vulneráveis às incertezas da pandemia. 

“Você acha que alguém vai pagar a gente estando em casa? Nem todo mundo pensa no que a gente precisa. Pra gente que é autônomo é assim, minha filha”

Elisabete dos Santos, cozinheira e diarista
Elisabete Belo dos Santos, 51 anos, e o filho. Ela, que trabalha como cozinheira e diarista, não teve o privilégio de ficar em casa nesta quarentena.
Elisabete Belo dos Santos, 51 anos, e o filho. Ela, que trabalha como cozinheira e diarista, não teve o privilégio de ficar em casa nesta quarentena. (Pablito Aguiar/Ilustração)
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Jani Cleide de Lima, 40, moradora de Pirituba, zona norte de São Paulo, faz parte desse grupo. Nesse momento, ela continua vendendo seus pastéis em frente à estação Vila Aurora da CPTM para conseguir a renda que mantém ela e os dois filhos, uma menina de 14 e um menino de sete anos

Ter o próprio negócio significava depender menos das exigências dos trabalhos formais, principalmente em relação a melhores condições de vida e melhores salários. Dos 24 milhões de profissionais autônomos, 80% trabalha na informalidade, segundo pesquisa do IBGE, o que dificulta o acesso aos direitos básicos. 

Jani, que já trabalhava aos 12 anos com vendas no comércio de forma autônoma, sente a oscilação da renda para a família. Com os filhos em casa, as despesas de alimentação e outras dívidas também aumentaram – roupas, remédio e internet para as crianças poderem continuar estudando vieram em um valor a mais nas contas do final do mês. “A gente vai se virando como pode, eu gosto de ter fartura na minha casa, na mesa dos meus filhos para eles comerem bem”, conta. 

Uma das principais dificuldades que essas mulheres enfrentam são as escolas estarem fechada por conta da pandemia do coronavírus. Com as aulas suspensas por tempo indeterminado, os filhos dessas mães ficam sem ter onde ficar enquanto elas trabalham. É o caso de Cícera Valéria da Silva, 34, moradora de Santo André, no ABC paulista, operadora de caixa em um supermercado atacadista na sua cidade. Mãe solo de João Lucas, 5, e de Maria Clara, 2, ela precisou contratar uma babá por período integral para conseguir manter o emprego. 

“Está sendo difícil, porque eu deixo eles com a babá o dia todo. Antes da pandemia, ela cuidava deles para mim apenas aos fim de semanas, porque eu também trabalho sábados, domingos e feriados. Agora, com tudo que está acontecendo, ela fica com eles todos os dias”, conta. Mas existe uma boa – e pouco comum – notícia no cenário de Cícera: o atacadista em que trabalha está pagando uma ajuda de custo para todas as mães durante o período de pandemia, com o objetivo de ajudá-las a pagar alguém que cuide de seus filhos enquanto estão trabalhando. 

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Por lidar diretamente com o público, Cícera precisa se proteger para não levar o vírus para os filhos. “No trabalho recebemos todos os EPI’s (equipamentos de proteção individual) necessários, chegamos e precisamos medir a temperatura antes de ir para frente de caixa. Quando estou voltando para casa, venho de máscara, saio do ônibus e passo álcool em gel”, explica. “A Maria Clara, que é mais bebê e não entende muito ainda, me vê chegando e já quer colo, quer beijar, quer abraçar e não posso, saio correndo para o banheiro e vou direto tomar banho,” conta Cícera.  

Cícera Valéria da Silva, 34 anos, é operadora de caixa em um supermercado – este, sim, um serviço essencial – e também continua saindo para trabalhar.
Cícera Valéria da Silva, 34 anos, é operadora de caixa em um supermercado – este, sim, um serviço essencial – e também continua saindo para trabalhar. (Pablito Aguiar/Ilustração)

Maria Clara também sente falta da mãe durante o período da manhã. Com a frota de ônibus reduzida, Cícera precisa sair mais cedo que o normal. “Os transportes estão demorando muito. Se eu preciso entrar às 8h no trabalho, saio de casa entre 6h e 6h30. E depende do dia da semana também… quando é sábado, domingo ou feriado, é bem mais difícil”, explica. 

O deslocamento de trabalhadoras como a Cícera é o mesmo percurso que o vírus está fazendo nesse momento. A doença vem percorrendo um caminho das cidades maiores para as menores, onde se espalha mais rápido e é mais letal. Nas periferias de São Paulo, mesmo com a subnotificação e a falta de testes, o risco de morte é cinco vezes maior que a média do Brasil.

Conexões e saídas

Pensando no sonho de mulheres e homens negros das periferias que querem ter seu próprio negócio e serem seus próprios chefes, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial criou um Programa de Mentoria que conecta profissionais que já atuam no ramo, estudantes ou também quem deseja começar seu negócio a lideranças empresariais de diversos ramos. A tutoria ocorre online e presencialmente. As inscrições para o processo seletivo ocorrem a cada três meses pelo site da Iniciativa. 

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Raphael Vicente, coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, explica um pouco mais de como funciona a mentoria. “O programa de mentoria começou de 2015 para 2016, ele é gratuito e não há nenhum custo. Nós reunimos executivos de todas as áreas, profissionais que trabalham nos mais variados setores das empresas, com larga experiência já no seu ramo, para então mentora essas mulheres negras, para dar uma possibilidade de acesso a esses profissionais, porque muitas vezes essas mulheres não teriam se não fosse esse espaço da mentoria. Então, é uma oportunidade muito interessante de conectar muitas vezes mundos totalmente distantes e diversos, principalmente pelo momento da carreira, momento do estudo, então é uma possibilidade muito interessante o trabalho da mentoria”, conta o coordenador. 

“A mentoria acontece online e presencialmente, vai muito do combinado entre o mentor e mentorado, tem umas regras que os dois precisam seguir pela periodicidade, mas em regra tem pelo menos dois encontros presenciais, e depois o próprio mentor e mentorado podem desenhar como vai ser essa dinâmica de encontros, tendo em vista que o nosso público em regra mora na periferia ou afastados dos grandes centros empresariais, então às vezes pode ficar difícil o encontro se fosse unicamente presencial. Abrimos turmas a cada 2 ou 3 meses mais ou menos, e as pessoas interessadas podem se inscrever para participar do projeto pelo nosso site”, explica Raphael. 

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