pós fazer um mapeamento dos edifícios que deseja deixar sua marca, Irene Avramelos, também conhecida como Eneri, sai de casa para pixar São Paulo. Quando chega ao local escolhido, geralmente por volta da meia noite, espera a rua ficar quase vazia para registrar as letras no concreto com uma lata de tinta spray. A tipografia desenvolvida é inspirada no estilo CORRÓ, que consiste em letras divididas ao meio e levemente inclinadas.
Com 24 anos de idade e quase 30 mil seguidores no Instagram, Irene faz parte da nova geração de pixadoras que têm como objetivo a retomada do espaço público e a quebra das barreiras de gênero na arte urbana. Suas ações significam o rompimento com o Estado ao contestar os limites da arte, além de funcionar como uma resposta ao machismo e à colonização da cultura nacional que, segundo ela, é pouco ensinada nas escolas e apreciada pela população do país. Esse resgate da identidade foi o motivo principal que fez com que o pixo entrasse em sua vida. “É um tipo de arte muito brasileiro e autêntico, precisamos valorizá-lo”, afirma. “Nosso pixo tem referências daqui mesmo, e não de fora, o que causa uma rejeição grande, assim como acontece com o funk e o samba até hoje. Isso se deve ao fato de sermos condicionados a estudar nossa história pelo ponto de vista de quem nos colonizou, o que contribui para uma falta de identidade cultural”, completa.
“Nosso pixo tem referências daqui mesmo, e não de fora, o que causa uma rejeição grande, assim como acontece com o funk e o samba até hoje. Isso se deve ao fato de sermos condicionados a estudar nossa história pelo ponto de vista de quem nos colonizou”
Irene Avramelos
Faz sete anos que Irene iniciou sua trajetória como pixadora: “Comecei com a tag por ser mais fácil de aprender e de realizar durante o dia. Por onde passava, deixava uma marcação e isso acabou virando parte da rotina. Fiquei estudando por um tempo as letras e, aos poucos, comprando os sprays”. Equilibrando-se em marquises e janelas, ela já atingiu o 12º andar de um prédio no bairro do Belém, o qual se orgulha de ter escalado. “Aprendi a subir em lugares baixos primeiro para entender como agir com meu corpo. Até que vi que o movimento que faço para subir no primeiro andar é o mesmo que preciso fazer para chegar ao último”. A modalidade que pratica, chamada de “escalada”, é a mais perigosa por não envolver nenhum tipo de equipamento de segurança. Apesar disso, a visibilidade e o aproveitamento do espaço são maiores. “São Paulo é referência em escalada para outros lugares do Brasil. É perigoso, mas eu consigo vivenciar a cidade de vários pontos de vista e ter outra percepção dos lugares que passo no cotidiano”, diz.
Ao mesmo tempo, seguir por esse caminho não foi uma escolha fácil, já que, para isso, Irene precisou desistir de um sonho: o curso de licenciatura em Artes Visuais. Essa decisão veio depois de uma série de processos judiciais somados à dificuldade financeira, que dificultou o pagamento das mensalidades durante a pandemia de Covid-19. “Eu queria dar aula de artes mas, após os processos que recebi, sei que não vai ser possível. Que escola me contrataria? Então acabei repensando e abri mão da faculdade. Se eu voltar, terei que escolher um bacharelado”, revela.
Os problemas judiciais aos que ela se refere são comuns para quem faz parte da comunidade pixadora já que, no Brasil, o ato é considerado vandalismo e se enquadra na Lei de Crime Ambiental, a qual estipula pena de detenção de três meses a um ano, bem como uma multa aos interventores. “Quando o João Doria assumiu o governo e instaurou a política da Cidade Limpa, o valor das multas aumentou muito. Enquadrar a gente nessa lei é contraditório porque crime ambiental, para mim, é o próprio governo que não proporciona saneamento básico para grande parte da população, além das empresas que desmatam e poluem a cidade”. A investigação que faz parte começou com a síndica de um prédio, que ficou descontente com os escritos nas paredes. Após prestar queixa e levar as imagens da câmera, Eneri foi reconhecida por ser uma das poucas mulheres que atuam na capital.
“Eu queria dar aula de artes mas, após os processos que recebi, sei que não vai ser possível. Que escola me contrataria? Então acabei repensando e abri mão da faculdade. Se eu voltar, terei que escolher um bacharelado”
Irene Avramelos
Outro obstáculo que a pixadora enfrenta por ser mulher é o machismo, que é agressivo com as mulheres que transgridem a lei. “Enfrentamos isso em todos os lugares. Para mim, um dos maiores desafios é ir nos rolês sozinha. Eu tomo os cuidados que qualquer mulher toma quando sai, como compartilhar a localização com alguém, coisa que eu sei que homens não precisam fazer”, revela. “Dentro do próprio grupo, o que acaba acontecendo é uma sexualização dos corpos por terem poucas de nós ocupando o espaço. Já na internet, às vezes recebo comentários como ‘que tal fazer uma escalada nua?’, o que é muito desagradável”.
Ainda que isso cause desconforto e angústia, a violência maior chega por parte de quem deveria proteger: a polícia. Segundo Irene, o confronto é imprevisível e o nível da abordagem depende de quem está conduzindo. “Alguns policiais deixaram de me bater e de me dar banho de tinta por eu ser mulher, mas também já aconteceram situações em que eu apanhei tanto quanto um homem”, declara. “Certa vez, meu companheiro e eu fomos pegos e um deles bateu em nós dois, um seguido do outro. Acho que ele estava praticando alguma luta, pois saímos com marcas nos mesmos lugares”. Ela conta, ainda, que, por vezes, o discurso desvia para o sentido de convites e caronas para casa. “Essa é uma situação muito assustadora, que me deixa acuada e com medo”.
Mesmo com as dificuldades, Avramelos acredita que o pixo transformou sua vida e trouxe o empoderamento feminino que tanto procurava. “Eu acreditava que, por ser mulher, não teria força para subir os andares como um homem. Mas, na verdade, essa é uma habilidade que exige apenas técnica e esforço. Qualquer mulher consegue aprender. No fim, é muito gratificante mostrar que eu consigo ser boa no que faço e incentivar outras mulheres”.
“Eu acreditava que, por ser mulher, não teria força para subir os andares como um homem. Mas, na verdade, essa é uma habilidade que exige apenas técnica e esforço. Qualquer mulher consegue aprender. No fim, é muito gratificante mostrar que eu consigo ser boa no que faço e incentivar outras mulheres”.
Irene Avramelos