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“Não basta ser mulher para nos representar”

A deputada federal Natália Bonavides avalia a participação feminina na política, a atuação do governo atual e seus dois mandatos

por Beatriz Lourenço Atualizado em 28 mar 2022, 18h42 - Publicado em 23 mar 2022 03h02
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(Clube Lambada/Ilustração)

atália Bonavides nunca teve o sonho de entrar para a política. Ingressou no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), se tornou mestre em direito constitucional e atuou como advogada popular. Porém, no meio do caminho, teve contato com lideranças sociais e acabou se filiando ao Partido dos Trabalhadores (PT).

Após reuniões com seus companheiros, se deu conta que aquele era um espaço hostil e pouco ocupado por mulheres. Foi aí que decidiu fazer algo para mudar: se candidatou. Em 2016, em Natal, foi eleita a vereadora mais votada da história do PT/RN e, em 2018, foi a segunda deputada federal mais votada, com 112.998 votos – sendo a única mulher escolhida no seu estado. “Quando contei para minha família que seria candidata, isso foi recebido com muito pesar por causa de todos os preconceitos que sofreria”, revela à Elástica. “Mas depois do choque inicial, houve um apoio incrível e uma participação muito importante.”

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As duas candidaturas ocorreram em momentos de muitas reviravoltas para o país. A primeira foi durante o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, momento em que o PT estava sendo atacado diariamente. “Lembro que, durante a campanha, eu e as companheiras sofremos mais ataques machistas e assédios do que ataques antipetistas”, diz. “Isso foi muito provocador e só ressaltou que uma candidatura petista, nordestina, feminista e de esquerda era essencial.”

A deputada conta que, quando Michel Temer assumiu a presidência, sentiu a conjuntura política nacional se agravando a cada dia – motivo pelo qual resiste e insiste nas pautas que acredita serem essenciais para o avanço de direitos dos trabalhadores e minorias. “O Congresso Nacional se tornou palco de destruição de direitos do povo, aprovando medidas que pioraram sua vivência, como a Reforma Trabalhista e o Teto dos Gastos”, conta. “O que queremos é defender o trabalhador. E isso significa estar junto com todas as suas nuances e características. Se as medidas atingem as mulheres, a população negra ou a população LGBTQIA+, essas questões também são prioridade do nosso mandato.”

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Por ocupar um lugar majoritariamente masculino, Natália já sofreu inúmeras violências. Algumas delas foram ataques de cunho machista com citação explícita ao homicídio proferidos pelo apresentador Ratinho. O motivo? Ela sugeriu um projeto para eliminar os termos “vos declaro marido e mulher” da lei no caso de casamentos homoafetivos. “Depois desse episódio, recebi muitas ameaças de morte. Sei que o que sofri não foi a primeira e nem vai ser a última vez”, conta. “Quem defende os direitos sociais têm passado por ataques desse tipo porque estamos nos colocando de forma antagônica a algo que o Governo Federal diz.” Abaixo, você pode conferir uma longa conversa com Natália Bonavides sobre inclusão, defesa de direitos humanos e política participativa.

Quando e como você se interessou por política?
Na época da universidade comecei a me envolver mais com temas políticos. E quando falo de política, é no seu sentido mais amplo – muito mais do que estar dentro das disputas eleitorais e institucionais. Participei do movimento estudantil, fui do Centro Acadêmico do Curso de Direito da UFRN, participei de experiências de educação popular inspiradas nas obras de Paulo Freire e me envolvi com organizações populares como MST, Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas e Movimento da População em Situação de Rua. A partir dessa vivência, minha atuação foi se intensificando de forma que, quando terminei meu curso, me tornei advogada popular.

Me filiei ao Partido dos Trabalhadores no começo de 2012 porque descobri que nas lutas com as quais me envolvia, as referências de luta eram do PT. No começo, não tinha intenção de ser candidata, nunca foi um sonho. Mas quando me aprofundei no debate sobre a participação das mulheres na política, decidi atuar ativamente para mudar o cenário. O partido ajudou porque ele não só tem cotas na direção, como também tem um projeto específico para o fomento de candidaturas femininas.

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(Natália Bonavides/Arquivo)

Como você percebe o cenário da participação de mulheres na política?
Não tenho nenhuma ilusão de que basta ser mulher para nos representar. Hoje existem parlamentares que defendem pautas conservadoras e neoliberais que, na verdade, atacam a nossa existência e pioram nossas vidas. Então não é isso que queremos quando falamos em ocupar esses espaços, mas sim pensamos em como inserir mulheres comprometidas com as pautas das trabalhadoras, das mães, das pretas, periféricas, de quem está à margem.

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Enquanto vereadora, presidi a Comissão de Direitos Humanos por um tempo e lá já iniciei essa experiência de ser parlamentar, jovem e mulher. Acho que todas, principalmente as de esquerda, quando são questionadas, devem trazer relatos muito parecidos de violência política, interrupção de fala, ataques, ameaças e fake news. Assim que fui eleita, passei a ser alvo desses problemas.

“Não tenho nenhuma ilusão de que basta ser mulher para nos representar. Hoje existem parlamentares que defendem pautas conservadoras e neoliberais que, na verdade, atacam a nossa existência e pioram nossas vidas”

Como você percebe a construção do seu mandato de deputada? Quais são as pautas que você acredita que devem ser prioridade?
Nos dois mandatos, temos a missão principal que é a defesa dos direitos da classe trabalhadora. Daí decorrem vários outros temas dos quais a gente participa porque defender o povo significa estar junto com todas as suas nuances e características. Por exemplo: se as medidas atingem de forma diferente as mulheres, a população negra ou a população LGBTQIA+, essas questões também são prioridade.

Às vezes nos habituamos a chamar esses setores sociais de minorias, mas sabemos que a classe trabalhadora é maioria e ela sofre outras opressões que, quando combinadas, tornam as condições de vida ainda mais difíceis. Sempre buscamos travar um diálogo com os setores para poder levar as pautas adiante. Sabemos que o parlamento brasileiro é burguês e os setores populares são sub-representados, por isso entendemos que a nossa tarefa é fazer uma política participativa que envolva os sujeitos atingidos.

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(Natália Bonavides/Arquivo)

Você é autora do projeto de lei que proíbe despejos durante a pandemia. Quando foi que a gente normalizou, como sociedade, a lidar de forma tão cruel e pragmática com a falta de moradia? E qual o caminho para começarmos a reverter esse processo?
Esse foi um dos projetos mais importantes que realizamos. É uma pauta nitidamente de classes porque vivíamos a situação surreal de que, no auge da pandemia, juízes, prefeitos e governadores estavam assinando ordens de despejo. Enquanto todos estavam em casa, essas pessoas não teriam para onde ir.

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Isso ilustra a forma como o capitalismo tenta naturalizar a barbárie. A fome é para ser considerada absurda, morrer esperando atendimento é absurdo, criança ter a educação negada é absurdo… Mas temos um sistema político-econômico que, para poder funcionar, tem que fazer as pessoas acharem que isso é natural – como se não houvesse outro caminho senão conviver com essa desigualdade. É isso que o capitalismo faz. Quando acontece esse tipo de coisa, não é que ele está dando errado, é que está funcionando.

Quando um mandato como o nosso ocupa esse espaço, entramos sabendo que ele não foi feito para nós. Isso porque quando o parlamento surgiu, só podia ser acessado por homens brancos e proprietários de terra – o que deixa marcas até hoje! Precisamos lembrar que, para conseguirmos vitórias, precisamos de pressão, organização e mobilização. Sem isso, a regra lá dentro é a derrota.

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Embora 64% da população do Rio Grande do Norte se autodeclare preta ou parda, os seus representantes na Câmara Federal são todos brancos. O que você, como mulher branca e segunda mais votada nas eleições tem feito para puxar mais pessoas pretas e pardas para o espaço da política?
Primeiro quero comentar esse dado porque há a questão racial e a de gênero — sou a única mulher eleita na bancada. Isso acontece em todo o Brasil, é só vermos a composição do próprio Congresso Nacional e como ela diz muito sobre os problemas do nosso sistema eleitoral.

Nesse caso, cabe a nós fazer da existência do mandato um instrumento de fortalecimento dessas lutas. Para além da própria composição de equipe, com pessoas que se identificam como negras, o que fazemos é uma vasta produção legislativa para sermos aliados nesta luta e termos o compromisso de combater o racismo. Há alguns projetos de lei encaminhados, como o que cria cotas na pós-graduação, o que destina vagas ociosas dos cursos de graduação para pessoas negras e o de cotas em vagas de estágio em locais públicos e privados.

Para além disso, buscamos apoiar iniciativas destinando recursos para fortalecer a articulação do Movimento Negro. Um outro exemplo, que ocorreu especificamente durante a pandemia, foi que a bancada do PT criou um projeto para obrigar o Governo Federal a registrar os casos de contaminação e mortes de Covid-19 por negros e negras. Houve uma inviabilização desses dados no início quando sabíamos que a doença não atingia todos de forma igualitária.

“A fome é para ser considerada absurda, morrer esperando atendimento é absurdo, criança ter a educação negada é absurdo… Mas temos um sistema político-econômico que, para poder funcionar, tem que fazer as pessoas acharem que isso é natural”

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Você sugeriu um projeto de lei que acaba com os termos “marido e mulher” nas celebrações de casamento. Gostaria que você comentasse sobre a importância dessa remoção para os casais homoafetivos.
Criamos vários projetos para a população LGBTQIA+. Há o de transcidadania, que propõe a ampliação de acesso ao mercado de trabalho para a população trans e o direito a mudança do nome civil ser gratuito. Nesse sentido, pensamos em criar esse projeto que trata do casamento. Ele é super simples, apenas altera um artigo do Código Civil, aquele que usa a expressão ‘vos declaro marido e mulher’.

Sabemos que o casamento igualitário não é reconhecido pelo Congresso Nacional até hoje, mas já foi reconhecido pelo STF há vários anos e é uma realidade. Hoje, os cartórios são obrigados a celebrar os casamentos homoafetivos. No entanto, o ‘marido e mulher’ segue na lei. Muita gente pode pensar ‘está lá na lei, mas na hora do casamento há o bom senso, isso é besteira e não representa uma violação’, mas não é bem assim. Recebemos inúmeros casos de discriminação. Há direito mais elementar do que ser chamado pelo que você é? Se até os objetos são chamados pelo nome, por que pessoas têm uma identidade negada num momento que a nossa sociedade diz que era para ser de alegria e celebração?

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(Natália Bonavides/Arquivo)

Esse projeto rendeu uma fala do apresentador Ratinho, que disse: “a gente tinha que eliminar esses loucos, não dá para pegar uma metralhadora?” Como você analisa essa reação? Ela é um reflexo da sociedade brasileira?
Tem acontecido uma coisa de forma recorrente no âmbito de debates que é, nessas pautas em que os setores conservadores da sociedade tentam desqualificar, eles têm criado mentiras. Se o projeto é sobre uma coisa, eles pensam ‘vamos dizer que é sobre outra que soe absurda para poder atacar esse debate e para os parlamentares ficarem como medo’.

Nesse caso, foi dito que o projeto era para proibir padres e pastores de dizer ‘marido e mulher’ ou que era para proibir que, na certidão de nascimento, incluíssem ‘pai e mãe’. Criticaram o projeto não pelo que ele era, mas por informações falsas. O apresentador Ratinho não só reverberou uma versão falsa, mas também trouxe uma carga enorme de machismo – disse que eu devia ir ‘lavar a cueca suja do meu marido’ e fez uma citação explícita ao homicídio.

Para além da violência simbólica, isso faz com que outras pessoas se sintam à vontade para praticar violações contra você. Depois desse episódio, recebi muitas ameaças de morte. Sei que essa violência não foi a primeira e tenho certeza que não vai ser a última e, muito menos, foi exclusividade para mim. Quem defende os direitos sociais têm sofrido ataques desse tipo porque estão se colocando de forma antagônica a algo que o Governo Federal diz. Sabemos que quem está hoje no poder são pessoas criminosas que se elegeram através de práticas de difamação, mentiras, fake news e seguem tendo isso como metodologia até hoje.

Você percebeu isso também como uma violência de gênero?
Com certeza! Um dos pilares da violência política de gênero é dizer que esse não é um espaço nosso, que a gente não deveria estar ali. Imagine, sou uma política mulher, jovem e nordestina, é óbvio que Ratinho iria dizer aquelas coisas. É uma forma de tentar expulsar mulheres desse espaço e é por isso que a gente tem que combater com muita veemência.

Não é apenas sobre como eu ou outras se sentiram no momento. Quando você faz esse tipo de coisa, é um recado para outras mulheres: ‘se você for querer ocupar esse lugar, isso é o que pode acontecer’. Não é à toa que, quando fui contar para a minha família que seria candidata, a notícia foi recebida com tanto pesar – depois do choque inicial, houve um apoio incrível e uma participação muito importante nas campanhas. Sempre comento esse tema explicando que essas atitudes são esperadas. Se eu não incomodasse esse tipo de gente, estaria fazendo alguma coisa errada. No entanto, achar que é esperado não significa naturalizar, mas combater.

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(Natália Bonavides/Arquivo)

Seu gabinete é majoritariamente feminino? Há alguma situação em que você tenha ficado mais confortável no Congresso por estar com mais mulheres em volta? De que forma um gabinete com mais mulheres muda sua rotina?
Sempre buscamos ter pelo menos metade de mulheres na composição, bem como uma participação muito expressiva de pessoas negras e LGBTQIA+. Queremos um perfil diverso, até porque a própria qualidade do trabalho depende de pessoas que tenham vivências múltiplas.

Trabalhar com mais mulheres faz sim diferença porque a probabilidade de passarmos por problemas em comum é muito maior. Um exemplo claro é: nós usamos um broche para identificar que somos parlamentares para ter acesso a ambientes restritos. Não conheço nenhum homem que foi barrado nesses ambientes como eu e outras colegas – inclusive aquelas mais velhas que já estão lá há um tempão. Certamente, a solidariedade das mulheres quando algo assim acontece é muito forte e muito importante. Ainda assim, esse tema da representatividade não tem um conteúdo vazio de que basta ser mulher para ser companheira. Não há uma solidariedade automática nas pautas, mesmo em temas em que o consenso deveria ser óbvio.

“Trabalhar com mais mulheres faz sim diferença porque a probabilidade de passarmos por problemas em comum é muito maior. Um exemplo claro é: nós usamos um broche para identificar que somos parlamentares para ter acesso a ambientes restritos. Não conheço nenhum homem que foi barrado nesses ambientes como eu e outras colegas — inclusive aquelas mais velhas que já estão lá há um tempão”

Como você percebe a atuação da ala conservadora no governo atual?
Queria fazer um comentário sobre como esse setor conservador se alia ao neoliberal e, juntos, convergem na defesa das piores coisas. Muita gente gosta de dividir o governo Bolsonaro em ala ideológica e ala econômica, mas não é assim que ele atua.

As pautas conservadoras com temas fanáticos estão sendo funcionais e ajudando na implementação da pauta neoliberal e vice versa. Há apenas uma ala: a canalha. Todos estão fazendo funcionar o mesmo projeto que é o de morte em todos os sentidos, seja nos cortes, no mau funcionamento das políticas públicas ou nas opressões. Percebemos todos os dias que é uma opção esvaziar esses serviços e destruir todas as camadas de proteção do povo.

Você participou da comissão que elaborou o relatório final do projeto para viabilizar o uso da cannabis medicinal no Brasil. Por que estamos tão atrasados nesta pauta?
Nosso país é racista. É um país que escolhe adotar políticas que resultam no extermínio da juventude negra – e o tema das drogas não tem como ser visto de forma diferente. Isso porque é muito funcional para a classe dominante ter uma forma de encarcerar a juventude negra e uma razão que justifique que o poder público possa entrar na periferia, não com serviços, mas com repressão e assassinato.

Quando falamos da cannabis medicinal, chegamos a um dos debates mais deturpados que temos. Estamos falando de uma substância que tem seu uso medicinal reconhecido, bem como estudos científicos que comprovam a eficácia em tratamentos complexos, como o combate ao câncer. Além disso, essa é uma substância que, no Brasil, já é acessível para quem tem dinheiro. Já existem medicamentos à base de cannabis que são autorizados pela Anvisa, mas são caríssimos – inacessíveis para a classe trabalhadora. Também já há a autorização de importação de medicamentos, que é outra situação extremamente cara. Isso deixa nítido como essa é uma questão pura de preconceito de classe, já que quem é da elite não precisa se preocupar. O mais chocante é que teve um parlamentar que comentou comigo que o pai dele já fazia o uso, mas que ele achava que iria votar contra o projeto porque senão iria ficar todo mundo querendo usar. Isso evidencia que o que está em debate não é se vamos viabilizar ou não, mas se a cannabis medicinal vai ser acessível para a classe trabalhadora.

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