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Pacaembu: passado e futuro em jogo

Os lances marcantes do estádio que se confunde com a história do futebol brasileiro — e a jogada da concessionária que o arrematou pelos próximos 35 anos

por Daniel Salles Atualizado em 11 jun 2020, 18h08 - Publicado em 1 jun 2020 08h00
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(Clube Lambada/Ilustração)

om a camisa do Santos, Pelé disputou 144 jogos no Pacaembu. Foram 77 vitórias, 36 empates e 31 derrotas. O primeiro dos 113 gols marcados no estádio paulistano foi em abril de 1957, contra o São Paulo, que perdeu por 3 a 1. O último, em abril de 1974, foi numa goleada de 4 a 0 contra o Palmeiras. Aos seis minutos do segundo tempo, o camisa 10 recebeu um passe do ponta-direita Fernandinho e correu para a grande área. Levantou a bola com um leve toque e chutou com suavidade no canto direito da trave.

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A inauguração do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, que os brasileiros conhecem informalmente como Pacaembu, aconteceu no dia 27 de julho de 1940, um sábado luminoso e abafado, e foi testemunhada por cerca de 50 mil pessoas — o governo ajudou baixando a tarifa do trem, com o qual a população mais se locomovia na época. Pouco depois das 15h30, o sistema de som anunciou a chegada do presidente Getúlio Vargas, do prefeito Prestes Maia e do interventor Adhemar de Barros.
A festa começou com um desfile de 15 mil representantes de entidades esportivas da capital, do interior, de outros estados e países e culminou com a soltura de milhares de pombos-correio. Em seguida, um corredor irrompeu com a bandeira nacional. Presente do Fluminense, foi trazida do Rio de Janeiro em uma corrida de revezamento. O gran finale coube ao corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que dançou ao som de “Les Sylphides”, de Chopin, e de “Danúbio Azul”, de Strauss.

Pacaembu: passado e futuro em jogo (Filipe Redondo/Fotografia)

Origens

O Pacaembu não é o pontapé inicial daquela rixa boba entre São Paulo e Rio de Janeiro. Mas tem a ver com ela. Em 1919, os cariocas ganharam o primeiro estádio do país, o do Fluminense. Para superá-los, os paulistanos, pelo menos aqueles com poder para isso, encasquetaram que tinham de ter o maior do Brasil – convém lembrar que o Maracanã foi inaugurado em 1950.

Quem doou o terreno de 50 mil metros quadrados no vale do Pacaembu, em 1926, foi a Companhia City. Com segundíssimas intenções, é claro. Então um descampado, o bairro havia sido urbanizado pela empresa e era preciso valorizá-lo. O projeto ficou a cargo do escritório do arquiteto Ramos de Azevedo, que, na época, tinha o nome de Severo & Villares e era responsável pelas principais obras da municipalidade, a exemplo do Theatro Municipal. Estava previsto para um terreno de 75 mil quadrados, no entanto, o que levou a prefeitura a comprar uma área anexa – a Companhia City também cedeu mais um pedaço. A construção foi orçada em 4.400 contos (para efeito de comparação, mil contos foi quanto o governo estadual destinou para combater a febre amarela, na mesma época). As obras começaram em 1936, no final do mandato de Fabio Prado, o 19º prefeito de São Paulo.

“O Novo Pacaembu traz os valores de uma cidade do século XXI, onde a convivência entre diversos públicos e interesses são bem-vindos”

Sol Camacho, arquiteta
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E assim foi até o ano passado, quando Bruno Covas, o 53º mandatário, repassou o estádio à iniciativa privada no ano passado. O motivo: em 2018, a arrecadação do Pacaembu foi de R$ 2,7 milhões e os gastos ultrapassaram os R$ 9 milhões, algo recorrente. Pelos próximos 35 anos, o complexo, que também dispõe de uma piscina olímpica, duas quadras de tênis e um ginásio poliesportivo, está nas mãos da concessionária que ganhou nome de Allegra Pacaembu, formada pela empresa de engenharia Progen e o fundo de investimentos Savona. O acordo prevê o pagamento de R$ 111 milhões à prefeitura e a concessionária se comprometeu a investir outros R$ 300 milhões no centro esportivo.

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(Filipe Redondo/Fotografia)
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(Filipe Redondo/Fotografia)

Para torná-lo mais rentável, anunciou-se a demolição do tobogã, a célebre arquibancada inaugurada na década de 1970 em substituição à histórica concha acústica. No lugar, será erguido um prédio de cinco andares e mais quatro subsolos. Dois pavimentos serão alugados para bares, restaurantes e escritórios e a meta é atrair companhias de co-working e empresas da economia criativa.

“Faremos 300 eventos anuais nos demais espaços, como casamentos, apresentações musicais, festas infantis e lançamentos de marcas”

Eduardo Barrella, CEO da Allegra Pacaembu
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O novo edifício é assinado pela arquiteta mexicana Sol Camacho, do escritório Raddar. O 3º piso deverá dispor de uma passarela para ligar as ruas Itápolis e Desembargador Paulo Passaláqua. No térreo, haverá um anfiteatro voltado para o gramado, que remete à concha acústica, e, no subsolo, um centro de convenções para até 2 mil pessoas. Espalhada em três andares, a garagem terá capacidade para 450 carros. “A intervenção tem a vocação de adequar e restaurar as instalações para um uso contemporâneo, reinterpretando seu legado histórico à serviço do público”, explica a arquiteta. “O Novo Pacaembu traz os valores de uma cidade do século XXI, onde a convivência entre diversos públicos e interesses são bem-vindos”. A capacidade do estádio, hoje para 40 mil pessoas, deverá cair para 26 mil, em prol do conforto e da segurança. O Museu do Futebol e a Praça Charles Miller ficaram de fora do negócio.

“Estamos prevendo quinze jogos de futebol profissional por ano”, afirmou Eduardo Barella, CEO da Allegra Pacaembu, à revista Veja São Paulo. “Faremos 300 eventos anuais nos demais espaços, como casamentos, apresentações musicais, festas infantis e lançamentos de marcas.” Contratado pela concessionária para registrar o complexo, o fotógrafo Filipe Redondo – que ilustra essa matéria – pretende reunir as imagens futuramente em um livro.

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(Filipe Redondo/Fotografia)

Placar

O novo Pacaembu está prometido para julho de 2022, quando o estádio terá completado 82 anos (atualmente, ele é a sede de um hospital de campanha para infectados da Covid-19). A partida de número um ocorreu em 28 de julho de 1940, no dia seguinte à inauguração. De um lado, o Palestra Itália. Do outro, o Coritiba. O jogo terminou em 6 a 2 para o Palestra, como então se chamava o Palmeiras. Era o Torneio Cidade de São Paulo, criado para homenagear a nova arena. O Corinthians jogou contra o Atlético Mineiro no mesmo dia e venceu por 4 a 2. Campeão paulista no ano anterior, o Timão chegou à final, disputada contra o alviverde. Mas levou a pior. Placar: 2 a 1.

O Pacaembu também foi palco de outra conquista suada para o Palestra, a do Campeonato Paulista de 1959. Foram necessárias três partidas extras em janeiro do ano seguinte, já que o Verdão e o Santos acabaram o torneio empatados. Só que foi em empate que terminaram os dois primeiros jogos extras. Com um gol de Pelé para o Santos aos catorze minutos, a terceira partida acabou em 2 a 1 para o Palestra. Dada sua longa duração, o torneio ganhou o apelido de supercampeonato.

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(Filipe Redondo/Fotografia)

Com o passar do tempo, o gramado se habitou a testemunhar lances históricos. Em novembro de 1948, numa partida contra o Juventus, o atacante são-paulino Leônidas da Silva deixou a torcida boquiaberta ao marcar um gol de bicicleta diante do goleiro Muniz. Placar: 8 a 0 para o tricolor. Em setembro de 1978, o Pacaembu serviu de palco para a estreia, numa partida contra o Paulista, de Biro-Biro com a camisa do Corinthians. Recifense, mirrado, com cabelos bicolores e enroladinhos, chamou a atenção de imediato. Chegou como meia, virou volante e passou a atuar nas pontas direita e esquerda. É até hoje um dos grandes ídolos da torcida corintiana.

A história do complexo também se embaralha com a dos Jogos Pan-Americanos, disputados pela primeira vez no Brasil em 1963. A edição daquele ano foi sediada em São Paulo e o Estádio Municipal abrigou as competições de atletismo, saltos ornamentais, natação e boxe. A arena também foi palco das cerimônias de abertura e de encerramento do evento.

Os atletas ficaram hospedados na recém-inaugurada Vila Pan-Americana, na Cidade Universitária – rebatizado de Crusp, o complexo segue de pé e serve de moradia para alunos da USP. Vinte e um países participaram da competição. Como na edição anterior, em Chicago, os Estados Unidos abocanharam a maioria das medalhas: 108 de ouro, 55 de pratas e 36 de bronze. Com 14 medalhas de ouro, 20 de prata e 27 de bronze, o Brasil ficou em segundo lugar.

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(Filipe Redonto/Fotografia)
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Som na caixa

Se a história do Pacaembu também teve trilha sonora, tudo começou com a concha acústica. Ela começou a surgir em novembro de 1968, quando o prefeito Faria Lima solicitou à Secretaria de Obras um projeto de ampliação do estádio, no qual cabiam 70 mil pessoas, parte delas em pé. Empossado prefeito em abril do ano seguinte, Paulo Maluf encomendou um novo plano e pôs em marcha a segunda grande reforma do estádio (a primeira, sem nenhuma mudança de fôlego, ocorreu em 1960).

Palco de apresentações artísticas, a concha acústica foi posta abaixo para dar lugar ao chamado tobogã, o que ajudou a ampliar a capacidade para 80 mil pessoas, futuramente reduzida pela metade, em prol do conforto e da segurança. A novidade sepultou de vez uma atividade econômica realizada num morro à esquerda da concha, não à toa apelidado de “pão duro”. Era onde dava para assistir aos jogos de longe, desde que se pagasse uns trocados para os administradores do pedaço.

Na noite do dia 9 de janeiro de 1988, a roqueira Tina Turner inaugurou a era dos grandes shows no Pacaembu. Mais de 100 mil pessoas foram conferir as duas apresentações da intérprete de “Private Dancer”. Depois, foi a vez do ex-beatle Paul McCartney, em 1993. “Estamox muito felixes de estar aqui em São Paulo”, ele declarou com seu sotaque carregado, para o delírio de 45 mil pessoas. Em seguida, vieram os Rolling Stones, em 1995, dentro do Hollywood Rock, e os metaleiros do AC/DC no ano seguinte.

A década de 2000 foi marcada pelos shows de Eric Clapton (2001), Red Hot Chili Peppers (2002), Roger Waters (2002), Iron Maiden (2003) e Pearl Jam (2005). Parou por quê? Indignada com o excesso de barulho noite adentro e o caos no trânsito provocado pelas apresentações, uma associação de moradores, a Viva Pacaembu, entrou na Justiça e conseguiu uma liminar para vetá-las. Contrária à desestatização do complexo, a agremiação fez o mesmo para tentar barrar a concessão, que prevê a volta dos shows. Não conseguiu. “Estamos em um bairro residencial, sinuoso, não há como ter um polo gerador de tráfego tão grande. O bairro não foi pensado para isso”, declarou Rodrigo Mauro, presidente da Associação Viva Pacaembu. Mesmo antes do início das obras a arena já provoca barulho.

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Fotos feitas antes do período de início da concessão

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