om o início da pandemia e o consequente desemprego, o estudante Marcelo* se viu sem qualquer possibilidade de pagar as contas de seu apartamento e teve de voltar a morar na residência do avô, no ABC paulista, onde divide o espaço com mais 10 familiares, entre irmãos, tios e primos. Retornar a esse lugar representou, também, a manifestação da violência que sentiu na pele, quando, aos 15 anos de idade, foi expulso de casa após descobrirem que ele é gay. As feridas do passado, que estavam em processo de cicatrização, se fizeram presentes mais uma vez, mas em isolamento social. “Estou dolorosamente me trancando de volta no armário”, relata.
O rapaz, que até a quarentena trabalhava na área de vendas, foi abandonado ainda na infância pelos pais. Cresceu com o avô e a tia em um ambiente religioso e completamente homofóbico. Ao ser obrigado a construir a vida sozinho na adolescência, Marcelo contou com a ajuda de amigos e do menino com quem estava namorado naquele período. Após anos, voltou a ter contato com a família, mas sem falar abertamente sobre sua orientação sexual e a vida pessoal.
Agora, a crise do novo coronavírus e o cotidiano ao lado de seus parentes trouxe à tona uma série de preconceitos e humilhações. “Um tio me proibiu de chegar perto ou brincar com seus filhos, por eu ser gay, e, quando contei o que havia acontecido para minha tia, a resposta foi que ela iria orar para esse ‘mal’ sair de meu corpo”, diz. No mesmo dia em que conversou com a Elástica, havia escutado no café da manhã que “a pior raça do mundo é a dos gays”. “Todos me olharam, esperando uma resposta, mas eu me calei. Eles sabem que tenho que me calar se eu quiser ter um lugar para ficar”, conta.
Segundo o estudante, a parte mais desgastante de estar isolado em casa com a família é ter que reprimir a maneira como ele se expressa e censurar qualquer assunto que envolva a comunidade LGBTQI+. Apesar de não ter apoio psicológico, Marcelo conta com uma rede de ajuda de seus irmãos e dos amigos mais próximos, mesmo à distância. “Assim como essa rede foi importante ao me assumir gay há alguns anos, nós precisamos ainda mais de auxílio em meio à pandemia”, reflete. “Atualmente, eu resisto em silêncio, mas também talvez essa seja uma forma de ter orgulho de quem sou. Eu vou me reconstruir.”
“Um tio me proibiu de chegar perto ou brincar com seus filhos, por eu ser gay, e, quando contei o que havia acontecido para minha tia, a resposta foi que ela iria orar para esse ‘mal’ sair de meu corpo”
Marcelo*
A história de Marcelo tem inúmeros pontos em comum com o que muitos LGBTQI+ vivem na quarentena ao lado de suas famílias. Uma pesquisa online realizada entre os dias 28 de abril e 15 de maio pelo coletivo #VoteLGBT, com a participação de pesquisadores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), consultou cerca de 10 mil pessoas em todos os estados e no Distrito Federal e reiterou que esse grupo apresenta os mais elevados índices de problemas de saúde mental e ausência de renda, se comparado ao restante da população. Além disso, 10% dos participantes do levantamento pontuaram que a maior dificuldade enfrentada é a tensão no convívio familiar durante a pandemia.
O psicólogo Hamilton Kida, criador da plataforma Rainbow Psicologia LGBT, explica que o momento de agora é bastante complexo, pois a dependência financeira da família também acarreta uma dependência emocional. “Quando a pessoa volta a depender dos parentes, ela se vê à mercê dessas relações. Isso acontece com qualquer um que tenha que viver com os pais novamente. Ao envolver a questão da sexualidade e do gênero, tudo isso se agrava por causa do preconceito e do julgamento. O que a gente precisa tentar buscar é o apoio de uma rede de fora desse círculo mais próximo, com amigos ou outros familiares”, conclui.
A Rainbow, fundada em 2018, é um coletivo de psicólogos comprometidos a atender o público LGBTQI+, sem qualquer julgamento ou preconceito. A ideia da plataforma é ser um campo seguro onde essa comunidade sabe que pode procurar ajuda. Mais de mil pessoas já foram atendidas por cerca de 120 profissionais cadastrados — e na pandemia o número só cresceu, com consultas online para o Brasil inteiro. Se você precisa de apoio ou conhece alguém que esteja nessa situação, vale procurar a Rainbow.