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A pauta é: sexo

Precisamos falar sobre a cartilha de saúde sexual da Casa 1, um manual consciente, informativo e que olha para o prazer sem moralismos

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 16 jun 2021, 12h22 - Publicado em 15 jun 2021 23h50
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(Clube Lambada/Ilustração)

or acaso você se lembra das aulas sobre saúde sexual que você teve na escola? Caso não, a gente te refresca a memória rapidinho: provavelmente, uma professora ou um professor ensinou a colocar uma camisinha usando uma banana e listaram um monte de coisas que você não deveria fazer entre quatro paredes. Também é bem provável que tenham falado apenas sobre sexo heteronormativo. Acertamos?

Fato é que falar sobre sexo, em qualquer idade, ainda é um grande tabu na nossa sociedade. Temos muito pouco diálogo sobre cuidados, métodos contraceptivos, ISTs e, principalmente, temos pouco espaço para falar abertamente sobre prazer. Foi para mudar esse cenário que a Casa 1, centro cultural e espaço de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade, criou o projeto “Precisamos falar sobre sexo” e, recentemente, lançou sua própria cartilha de saúde sexual, que mostra pessoas – e não bonecos de palitinho interagindo sexualmente de forma fria e pouco explicativa – em toda sua pluralidade de corpos, corpas, gêneros e orientações.

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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernando Enoch/Fotografia)

“A gente tem um processo histórico de falar sobre corpos e corpas LGBT+ muito complexo: por um lado, a sociedade em geral tenta desumanizar nossos corpos, evitando falar sobre. Por outro, corpos LGBT+ sempre foram e ainda são muito sexualizados e a sociedade em geral tende a ver questões de orientação afetiva sexual e identidade de gênero como algo ligado exclusivamente a sexo, o que fez com que parte da comunidade se tornasse também mais conservadora, evitando falar sobre sexo e buscando formas de representação de suas identidades e corpos mais ligadas aos padrões heterossexuais e cisgênero”, explica Iran Giusti, fundador da Casa 1 e criador da cartilha. 

Batemos um papo com Iran sobre o processo de criação da cartilha, a importância de mostrar uma diversidade de corpos e de falar abertamente sobre sexo, saúde e prazer – tudo junto, como sempre deveríamos ter feito.

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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernardo Enoch/Fotografia)
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Iran, você comentou, um pouco antes de conversarmos, que essa cartilha foi “um processo de convencimento de mundo pra galera entender” a importância de fazer a cartilha da forma que vocês fizeram. Por quê?
Desde o primeiro ano da Casa 1, em 2017, a gente fala sobre a necessidade de abordar saúde sexual de uma forma acessível, direta, possível mesmo. Sempre nos processos de parceria e de relação com outros serviços, a gente esbarrava com um certo conservadorismo. Além disso, a gente tem um processo histórico de falar sobre corpos e corpas LGBT+ muito complexo: por um lado, a sociedade em geral tenta desumanizar nossos corpos, evitando falar sobre. Por exemplo, veículos que tem como foco mulheres cis e em geral hétero já avançaram bastante e falam sobre prazer, orgasmo, usam termos como vagina, penetração e por aí vai, porém ignoraram relações que não são heteronormativas – ou, quando abordam, é sempre ilustrada com bonecos de palitinhos ou formas de representações entendidas como mais sutis e “respeitosas”. Por outro lado, corpos LGBT+ sempre foram e ainda são muito sexualizados e a sociedade em geral tende a ver questões de orientação afetiva sexual e identidade de gênero como algo ligado exclusivamente a sexo, o que fez com que parte da comunidade se tornasse também mais conservadora, evitando falar sobre sexo e buscando formas de representação de suas identidades e corpos mais ligadas aos padrões heterossexuais e cisgênero. 

Quanto tempo demorou para essa cartilha ser feita?
Foi um trabalho continuado, o resultado de uma programação de doze meses em 2019 que chamamos de “Precisamos Falar Sobre Sexo”, onde trazíamos, com o financiamento do Fundo Positivo, influenciadores e influenciadoras LGBT+ para mediar um papo com especialistas técnicos. Muita gente legal participou como a Samira Close, o coletivo Sapatour, Cle Colucci, Blessed Boy, Thiessita e, entre os especialistas, nomes como Jairo Bauer, Jaqueline Gomes de Jesus e Rico Vasconcellos. Com as perguntas que a gente levantava para o roteiro das conversas, mais dúvidas do público pelas redes sociais ou presencialmente e de quem participava das mesas, fomos desenvolvendo o texto da cartilha. Em seguida, fizemos o convite ao Fábio e ao Rodrigo, do projeto Chicos, e ao Bernardo Enoch para fotografar e montar o casting de modelos, composto de amigos e amigas. Por fim, tivemos a ilustração e a diagramação da Paola Rodrigues. 

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“Corpos e corpas LGBT+ sempre foram e ainda são muito sexualizados e a sociedade em geral tende a ver questões de orientação afetiva sexual e identidade de gênero como algo ligado exclusivamente a sexo, o que fez com que parte da comunidade se tornasse também mais conservadora”

Iran Giusti

Quando a cartilha ficou efetivamente pronta no começo de 2020 e a gente ia lançar, veio a pandemia. Achamos que não fazia sentido publicar, afinal, a principal arma que tínhamos para conter a disseminação da covid-19 era o isolamento social. Hoje, ainda que ainda estejamos em meio a uma pandemia e o isolamento e distanciamento social seja ainda essencial, achamos que o tema da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo era um bom motor para a publicação.

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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernardo Enoch/Fotografia)

No processo de criação da cartilha, tem alguma história curiosa ou algo que marcou vocês? Alguma situação que, por si só, foi transformadora?
Olha, acho que o primeiro ponto é que foi praticamente uma graduação, né? A gente teve acesso a muita informação e quebras de coisas que estavam muito solidificadas na gente. Mas um dos pontos mais marcantes pra mim foi o processo de chamar a camisinha interna de camisinha interna e não de camisinha feminina, como é conhecida e como inclusive vem escrito na embalagem. Também comecei a pensar do porque diabos a embalagem dela é sempre rosa? É tudo muito sexista, até na hora do prazer.

Por que, ao falar sobre saúde sexual, a gente ainda fala tanto sobre os “nãos” e tão pouco sobre os “sims”?
Essa pra mim é uma das principais perguntas. Daria pra ficar horas falando sobre a “moral” religiosa que rege a nossa sociedade, mas acho importante ressaltar que essa moralidade afeta inclusive as práticas médicas, e a escolha para falar sobre sexo é, em geral, falar tudo que não pode, tudo que é considerado ruim e não saudável. Mais do que nunca, isso é um erro gigantesco: o acesso à pornografia é praticamente ilimitado e muitos e muitas de nós acaba encontrando exatamente na pornografia suas referências para práticas sexuais, o que sabemos que não faz sentido nenhum, porque a pornografia é sobretudo uma encenação. Ela pode, sim, ser uma ferramenta para o exercício da sexualidade, mas de forma alguma uma referência ou fonte de informação.  

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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernardo Enoch/Fotografia)

Você acredita que essa abordagem mais explícita, com corpos e corpas mostrados explicitamente, vá gerar críticas?
Muita gente pode falar que não é sobre sexo e, sim, sobre saúde e, por isso, profissionais de saúde devem se ater às questões físicas e biológicas, mas isso tampouco faz sentido. Quando uma pessoa sente uma dor, exames são necessários, mas o profissional vai precisar saber o histórico da paciente, e se tiver que fazer um acompanhamento e um tratamento, vai ter que falar da forma mais acessível possível. Existe hoje toda uma indústria da “medicina humanizada”, que pra mim é uma piada. Profissionais de saúde se formam para trabalhar com pessoas, com humanos, dialogar com quem atende e ser respeitoso deve ser o básico, e não um extra. Mas é muito mais fácil você trabalhar da forma mais distante, e principalmente sobre a perspectiva do medo, do que dialogar e criar uma consciência do autocuidado

“A escolha para falar sobre sexo é, em geral, falar tudo que não pode, tudo que é considerado ruim e não saudável. Mais do que nunca, isso é um erro gigantesco: o acesso à pornografia é praticamente ilimitado e muitos e muitas de nós acaba encontrando exatamente na pornografia suas referências para práticas sexuais, o que sabemos que não faz sentido nenhum”

Iran Giusti
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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernardo Enoch/Fotografia)

Qual o impacto e a importância de usar pessoas de verdade, e não ilustrações? Como isso contribui para desmistificar o sexo e a saúde sexual?
Queimei a largada dessa aqui e respondi lá em cima né? [Risos] Usar pessoas reais é fundamental por vários motivos. Primeiro para chamar atenção e não termos vergonha de dizer isso: quando a gente quer e precisa falar de algo que consideramos importante, temos que ser estratégicos e sabíamos que usar fotos teria um apelo de público. Segundo, ter pessoas. Pessoas que não estão com o rosto escondido, como se tivessem cometendo um crime por mostrar seus corpos, ou então ilustrações que não condizem com a realidade, faz com que as pessoas se relacionem de forma mais efetiva com seus conteúdos. E, por fim, por motivos didáticos mesmo, você pode fazer uma ilustração genial, você pode fazer um texto impecável, mas, no fim das contas, uma imagem de algo real é muito mais fácil de se assimilar.

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(Rodrigo Ladeira, Fabio Lamounier e Bernardo Enoch/Fotografia)

E como podemos, então, quebrar o conservadorismo na hora de tocar em assuntos como sexo?
O pior é que não é nem por obrigação, mas muitas dessas cartilhas são produzidas por profissionais que acreditam que é a forma correta de se abordar saúde sexual. No meu caso, que criei o projeto do “Precisamos Falar Sobre Sexo” e também redigi a cartilha – com revisão de profissionais de saúde e especialistas técnicos, claro –, acredito que a melhor forma de falar sobre sexo é sem medo, sem vergonha e com prazer. Sexo pode e deve ser algo extremamente prazeroso e falar sobre também deve ser, e não estou falando nem sobre a perspectiva de falar sobre sexo de forma sexual, para ter prazer sexual, mas falar sobre sexo para se divertir, para descobrir mais sobre você, para dar risadas gostosas. Afinal, tem coisa mais gostosa do que sentar com amigos e amigas em um bar e falar sobre sexo? 

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Quer ver a cartilha da Casa 1 na íntegra? Tem aqui.

capa da cartilha de saúde sexual da casa um, desenhos de pessoas transando

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