á dois anos no veganismo e cinco no vegetarianismo, eu poderia fazer uma lista de perguntas e comentários que ouço toda vez que falo em algum lugar que sou vegana: “Mas o que você come?”. Ou “eu nunca conseguiria, amo carne”. E o tradicional “acho muito radicalismo”. Há também a questão que norteia essa reportagem: “é muito caro, coisa pra gente rica”.
Conversando com pessoas que encontrei pelo caminho nesses últimos anos, seja na vida real ou em grupos nas redes sociais, consigo entender o por quê desse último estigma. Se você digitar as palavras “veganismo”, “dieta vegana” e “comida vegana” no Google, entre as imagens que aparecem, predominam pessoas brancas, magras, cisgêneras e pratos coloridíssimos, cheios de ingredientes caros e inacessíveis para a grande maioria. Nas prateleiras dos supermercados, os produtos vendidos pelas grandes marcas custam, em média, R$ 20 – seja uma porção de 300g de coxinhas, quatro hambúrgueres de soja ou uma caixa de nuggets vegetal. Além disso, os restaurantes veganos estão concentrados, predominantemente, nas regiões centrais ou ricas das cidades, e a maioria das refeições para uma pessoa gira em torno de R$ 25.
Com a intenção de subverter essa lógica de que é preciso ser rico para ser vegano, e também sair do estereótipo de que as garotas-propagandas são Xuxa Meneghel e Luísa Mell – enquanto muita gente esquece, por exemplo, que Rincon Sapiência faz um trabalho incrível difundindo o vegetarianismo –, pessoas comuns se tornaram famosas nas redes sociais compartilhando seus pratos nada elaborados e discussões muitas vezes evitadas no meio da militância. Os irmãos Leonardo e Eduardo Luvizetto dos Santos, por exemplo, mantêm a página @veganoperiferico. A estudante de nutrição Caroline Soares foi praticamente pioneira ao criar, ainda no Facebook, o grupo Veganos Pobres Brasil, e depois migrar para o Instagram com a página @logoeuveganapobre_. Outras pessoas buscam, ainda, fazer a intersecção necessária do veganismo com outros movimentos sociais, para alcançar o fim das explorações dentro da sociedade. Com base nisso, Ellen Monielle (@eco.fada), Thalitta Xavier e Luciene Santos (@sapavegana) discutem o antirracismo, pauta deixada de lado dentro de um movimento que, muitas vezes, tem dificuldades em se confrontar com os próprios privilégios. “É ilusório achar que o veganismo por si só irá conseguir alcançar seus objetivos sem se articular com outros movimentos, como o movimento negro, feminista, indígena, LGBTQIA+, dentre outros”, afirma Ellen.
“É ilusório achar que o veganismo por si só irá conseguir alcançar seus objetivos sem se articular com outros movimentos, como o movimento negro, feminista, indígena, LGBTQIA+, dentre outros”
Ellen Monielle
Também conhecido como veganismo popular ou anticapitalista, o veganismo político foi um conceito idealizado em 1988 por Donald Watson e seus colegas da Vegan Society do Reino Unido. Naquela época, eles definiram o termo como “o modo de vida vegano que mantém firme o posicionamento ético contrário ao especismo, assim como às demais hierarquias morais, e promove engajamento político pela emancipação dos animais não humanos e, por tabela, de todos os seres humanos e do meio ambiente”. Essa definição, muito distante de uma dieta que busca um estilo de vida saudável, tem se perdido em meio à lógica mercadológica, que busca associar o movimento vegano a uma alimentação cara e produtos “low-carb” e sem glúten. “O que você acha na internet são representações muito diferentes do que é o veganismo na prática. Eu não me sentia representada, porque sou uma mulher da favela, de quebrada, e só via pessoas falando sobre o veganismo classe média porque é a realidade que elas vivem”, conta Caroline Soares.
Em muitas publicações, a estudante de nutrição satiriza esse status elitizado do movimento, como em uma receita na qual ensina a fazer homus, uma pasta feita com grão de bico. “Segura esta receita de homus que aprendi em uma das minhas viagens para o Caribe, então não adianta que os ingredientes não tem no Brasil, afinal para ser vegana tem que ser rica”, escreve. Apesar do deboche na fala ser evidente, é muito comum escutarmos ou lermos pessoas veganas indicando ingredientes que só são encontrados fora do Brasil, receitas que levam alimentos caríssimos ou produtos financeiramente inacessíveis para a maioria das pessoas. Em um grupo do Facebook que só tem brasileiros, por exemplo, uma integrante sugere um “camarão” vegano que encontrou na Alemanha. Em outra publicação, uma mulher divulga fotos de um prato que comeu em um foodtruck nos Estados Unidos. Há ainda recomendações em Portugal, Irlanda, Grécia, entre outros.
“O que você acha na internet são representações muito diferentes do que é o veganismo na prática. Eu não me sentia representada, porque sou uma mulher da favela, de quebrada, e só via pessoas falando sobre o veganismo classe média porque é a realidade que elas vivem”
Caroline Soares
Esse tipo de compartilhamento de informações, junto com a propagação do veganismo pela mídia com foco em pessoas brancas e privilegiadas, afasta as pessoas da periferia do movimento. “Falta representatividade, porque o exemplo educa muito, faz as pessoas pensarem. Ah, aquela pessoa que estudou comigo, na mesma escola pública, sempre teve dificuldades financeiras, hoje é vegana”, afirma Leonardo Luvizetto dos Santos.
Diferente de muitas pessoas, ele e o irmão Eduardo resolveram parar de comer carne antes de ter essa visão de que o movimento era caro. O que estimulou eles – primeiro Eduardo e depois Leonardo – foi a questão da exploração animal. “Só depois o Du se deparou com um movimento elitista, que estava inclusive sendo propagado em inglês, só com produtos industrializados”, conta Leonardo. “Quando eu também me tornei vegano, começamos a frequentar feiras e ver que isso estava muito fora da nossa realidade. Era um veganismo propagado por uma classe média através da sua existência enquanto ‘classe superior’. Pensamos: ou a gente abandona isso e fala que não faz parte da nossa realidade, ou enxergamos que a luta é pelos animais e criamos um outro movimento político, que critica esse movimento propagado pela classe média”, relata.
E foi aí que surgiu a página, que hoje tem mais de 344 mil seguidores. Lá, eles publicam fotos de refeições que desmistificam a frase de que é difícil encontrar alimentos veganos. A maioria dos pratos é composto por arroz, feijão, legumes e vegetais. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 2020, o arroz e o feijão foram, respectivamente, o segundo e o terceiro alimentos consumidos com mais frequência no país entre junho de 2017 e 2018. “Queremos mostrar o nosso dia a dia, como é barato ser vegano e que as pessoas estão propagando de forma elitista. Tem muito glamour, acham que é ser diferente, e temos que tornar o negócio popular para que os animais sejam libertos”, afirma Leonardo.
“Queremos mostrar o nosso dia a dia, como é barato ser vegano e que as pessoas estão propagando de forma elitista. Tem muito glamour, acham que é ser diferente, e temos que tornar o negócio popular para que os animais sejam libertos”
Leonardo Luvizetto dos Santos
Segundo ele, além da falta de representatividade, outros motivos afastam a periferia do veganismo, como associações da carne à masculinidade e ao bem-estar financeiro. “Toda a forma de intelectualidade que requer pensamento e senso crítico é culturalmente afastada da periferia. A periferia sofre uma alienação muito profunda das corporações, que dependem desse consumo alienado das pessoas pobres”, afirma. Um dos maiores exemplos, de acordo com ele, é o senso comum de que se “não há carne, não há comida”. “Eu realmente achava que abrir a geladeira e não ter um bife significava que eu não tinha comida. Hoje, me sinto extremamente rico comendo feijão, arroz e abobrinha. Isso é totalmente construído culturalmente”, completa. Caroline também enxerga esse pensamento ainda muito latente na quebrada, e conta que um dos principais motivos que a fez entrar na faculdade de nutrição foi justamente poder falar com propriedade que é, sim, possível sobreviver sem carne. “Isso virou um status. A pessoa está comendo um prato que tem arroz, feijão, salada e um pedaço pequeno de bife e tem coragem de perguntar o que você come. As pessoas não tem noção do que é um alimento, uma berinjela, uma ervilha”, afirma.