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O doutor da floresta

Descendente de americanos, o médico Erik Jenkins Simões vive para levar medicina para índios isolados no Brasil

por Laís Duarte 4 out 2020 22h58
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(Clube Lambada/Ilustração)

er a chuva na Amazônia é como virar a terra de cabeça de baixo. É como se um rio corresse nos céus, sobre outros rios. Lindo e impressionante, em iguais proporções. Trovões ecoam floresta adentro revelando seu repertório de sons. Uma dessas tempestades atingiu em cheio o território Zo´é , entre os rios Cuminapanema e Erepecuru, no noroeste do Pará, em 2003. Intensa, derrubou as temperaturas na terra indígena, a 300 metros de altitude. Kusi abrigou seus dois filhos, Apãn e Namihit, em uma pequena maloca de telhado de palha durante aquela noite fria e molhada. Não havia cobertores, nem agasalhos. Um estrondo despertou os três. Uma grande árvore foi derrubada na mata densa e levou ao chão tantas outras que a cercavam. Os troncos caíram sobre a maloca. Tiraram a vida de Apãn e feriram Kusi gravemente. Um afundamento no crânio poderia ser a causa da morte da indígena, que precisava ser levada para a cidade. Naquela noite de trovoada, outro som varreu os céus: o do avião de resgate.

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(Erik Jennings/Arquivo)

Deitada no fundo da aeronave, a paciente e o filho saíram pela primeira vez da floresta. Ele com 18 anos, ela, 36, e não falavam nenhuma palavra de português. Cresceram fluentes na língua materna, Zo´é, e no idioma da mãe natureza.  Zo’é é da família linguística tupi-guarani, e significa simplesmente “nós”. Ao pousar em Santarém, no oeste do Pará, ela foi vestida com uma bata. Ele ganhou calças e calçou sapatos, naquele que seria um dia de muitas primeiras vezes. 

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A cirurgia foi feita e Kusi foi salva. Em observação, ela passou uma noite na enfermaria gelada do hospital, mas o médico achou que o calor da aldeia pudesse ser benéfico no pós-operatório. Um dia depois de abrir a cabeça da paciente, a devolveu a floresta. Kusi se recuperou. O médico, Erik Jennings Simões, responsável pelo salvamento e pelo socorro aéreo, nunca mais foi o mesmo.

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(Erik Jennings/Arquivo)
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Filho da Amazônia

Erik é neurocirurgião formado pela Universidade Federal do Pará, piloto de aviões por praticidade e prazer. Fotógrafo, para registrar as belas paisagens só reservadas a quem vê a Amazônia de cima. E para acompanhar as imagens, enfileira as palavras com sensibilidade de poeta. Contatado por um amigo da Fundação Nacional do Índio que gritava por socorro, Erik não imaginou que aquele voo, aquele atendimento, mudaria o curso de seus dias para sempre. Ao devolver Kusi, sã e salva, ganhou a confiança dela e de uma aldeia inteira.

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(Erik Jennings/Arquivo)

Ele mesmo é um filho da Amazônia, mas de nome e ascendência importados.  O avô era americano, confederado, escravocrata, que perdeu a Guerra Civil no sul dos Estados Unidos e migrou para o norte do Brasil. Em Santarém, banhada pelo Tapajós, próxima à divisa entre Amazonas e Pará, ressignificou a própria existência e se casou com uma indígena. Desse casamento nasceu a mãe de Erik, costureira de ofício. Já o pai foi gerado da inusitada união de uma alemã e um português em plena guerra. “Há uma vantagem biológica em ser miscigenado. Quanto mais miscigenação, mais mistura, os genes ruins desaparecem. Socialmente também é vantajoso, porque você aprende mais”, explica. 

“Há uma vantagem biológica em ser miscigenado. Quanto mais miscigenação, mais mistura, os genes ruins desaparecem. Socialmente também é vantajoso, porque você aprende mais”

A vontade mesmo, nos sonhos mais infantis, era desbravar os céus. Até que, aos 4 anos, um acidente doméstico o trouxe uma feia queimadura, com risco grave, que o levou ao hospital. E os muitos dias ali, cercado de cuidados de médicos e enfermeiros, despertaram o desejo de cuidar dos outros. “Eu sentia que minha vida estava ameaçada e via a importância de ter alguém pra cuidar de mim. Já em casa, sem recursos, meu avô enrolava folhas de bananeira no meu corpo para a pele não queimar. Essas cenas foram se somando na minha cabeça e me levaram à medicina”, relembra.

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(Erik Jennings/Arquivo)

Na época da escolha profissional o pai eletricista não tinha como pagar o curso de piloto. Então, restou à Erik embarcar mesmo para Belém para se formar médico. O trabalho de conclusão de curso, por ironia, já soava como prenúncio de um futuro que estava por vir: a incidência da hepatite B no povo Paracanã. 

Depois de formado, fez residência em neurocirurgia na capital paulista e voltou logo para atender em Santarém. Entre uma operação e outra, com o próprio salário, fez o tão sonhado curso de pilotagem e descobriu que voar e operar são aptidões mais parecidas do que se imagina. Assim como o plano de voo, há um plano para cada cirurgia, há uma preparação. Tanto o médico quanto o piloto têm que começar o trabalho sabendo exatamente de onde partir, por onde passar, onde chegar. Permitiu-se comprar uma pequena aeronave e admirar de cima uma vastidão de terras e águas que a maioria dos brasileiros desconhece.

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(Erik Jennings/Arquivo)

Nas aldeias, Erik encontrou brasileiros que realmente conhecem, entendem e preservam a maior biodiversidade do planeta. Depois das visitas às comunidades passou a se sentir mais em casa lá do que na cidade. “Vi que estava em outro mundo. Não um mundo atrasado. O modo de vida indígena, sem a tecnologia da nossa sociedade, está muito à frente da nossa civilização. Eles são fantásticos. Todo dia aprendo com eles e, ao voltar pra cidade, levo muito tempo pra me adaptar de novo”, reflete.  

“O modo de vida indígena, sem a tecnologia da nossa sociedade, está muito à frente da nossa civilização. Todo dia aprendo com eles e, ao voltar pra cidade, levo muito tempo pra me adaptar de novo”

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Para começar, o médico aprendeu que indígenas não moram na floresta. Eles são a floresta. Duas vezes por mês, ele pega suas asas, voa até a aldeia Zo´é, que os indigenistas chamam de um povo de recente contato. Fica lá por três dias. Se precisar, volta quando há casos de urgência. Deixa em Santarém a mulher, fonoaudióloga, e os dois filhos, que já crescem conscientes da importância de se proteger aquele mar de rara beleza e de extrema riqueza. “Acho que a principal lição que aprendi com os índios é o cuidado com a família, com os filhos, a esposa. Na cultura Zo´é, o respeito à natureza é um fundamento. Ela determina a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas. E eles reconhecem, como sociedade, que a mulher tem importância e papel essenciais. As mulheres zo´é podem ter vários esposos. A poligamia é incentivada e valorizada. Eles entendem que a esposa ter mais maridos é melhor para a coletividade. Isso reflete o poder da mulher naquela sociedade”.

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(Erik Jennings/Arquivo)

A cada visita às aldeias, o médico foi suturando a própria vida às vidas dos pacientes. Para entender e ser entendido, estreitou laços aprendendo o idioma, assim como fizeram uma enfermeira e um técnico de plantão que ficam na base da Secretaria de Saúde Indígena local, a SESAI. O trabalho que começou como voluntário virou paixão para ele e referência para o mundo. A experiência pioneira de Erik e da equipe da Funai ecoou internacionalmente.

A pedido do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH), o médico contribuiu para a elaboração das Diretrizes de saúde para povos indígenas isolados e de baixo contato, em 2011, na Capital Federal. Publicado em 2012, o documento registra também contribuições de representantes da Venezuela, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru.

“As mulheres zo´é podem ter vários esposos. A poligamia é incentivada e valorizada. Eles entendem que a esposa ter mais maridos é melhor para a coletividade. Isso reflete o poder da mulher naquela sociedade”

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(Erik Jennings/Arquivo)
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Genocídio em curso

O jeito de examinar os povos da floresta, dentro da floresta, falando a língua da floresta, gerou mais saúde para os índios e aumentou a confiança deles no médico e nos enfermeiros. São eles os primeiros a atender a população, mais vulnerável e ameaçada agora pelo coronavírus. “A covid-19 leva as pessoas de mais idade. É danosa para a população indígena, pois mata quem detém o conhecimento, os referenciais éticos, da cultura e da sabedoria, que iriam guiar os mais jovens. Ela está levando as bibliotecas, o patrimônio para a sobrevivência desses povos. A perda de toda vida é cruel, mas, nas sociedades indígenas, a perda dos anciões tem consequências mais graves que para as outras. A difusão do conhecimento depende das figuras mais antigas”, resume Erik.

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(Erik Jennings/Arquivo)

A doença vem pela ilegalidade e pelo descaso do Estado. Garimpeiros e madeireiros ilegais ganham força, principalmente na Amazônia, trazendo com eles o vírus, deixando rastros de dor e morte. “Os indígenas vivem em um momento de extremo estresse e medo”, revela o neurocirurgião. Tanto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil entrou com uma ação na justiça pedindo que o governo aja contra a covid-19 entre indígenas e evite “extermínio de etnias”. Em julho, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Estado tome providências contra a pandemia entre a população indígena e que as comunidades tradicionais sejam incluídas no planejamento das ações pelo governo. Uma sala de situação foi criada para responder à pandemia, e entre as autoridades ouvidas estava o doutor Erik. 

“A covid-19 leva as pessoas de mais idade. É danosa para a população indígena, pois mata quem detém o conhecimento, os referenciais éticos, da cultura e da sabedoria, que iriam guiar os mais jovens”

Ficou combinado que barreiras sanitárias seriam estabelecidas para proteção das comunidades. Outra ideia foi a instalação das Unidades de Atenção Primária Indígena, UAPI, redários montados pelo próprio médico em parceria com os índios. Cada UAPI conta com cilindros de oxigênio, monitores de saturação sanguínea, as medicações básicas necessárias. “Precisamos fazer com que a população indígena não saia do território. Primeiro, porque não tem mais leito na cidade grande; segundo, porque em muitos casos não é preciso sair. E, terceiro, porque sair da floresta representa mais uma agressão à cultura, uma agressão étnica, um sofrimento familiar e social muito intenso”, diagnostica. Até agora, foram construídos nos territórios dos Xikrin, Asurini, Surui, além do povo Zo´é. “Essas estruturas evitaram que muita gente evoluísse para formas graves da doença. São importantes não só para tratamento com oxigênio, mas também para isolamento dos casos positivos, para que a doença não se espalhe”, explica ele. 

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(Erik Jennings/Arquivo)

No meio da floresta, o médico da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde faz de tudo um pouco. De atendimentos básicos a cirurgias de média e alta complexidades já foram realizadas no próprio território: retiradas de vesícula biliar, catarata, hérnia inguinal, biópsias. “Temos que levar saúde à floresta, e não tirar indígena da floresta. Precisamos estar lá com tecnologia e recursos humanos para atender no próprio território, fazer ações de saúde baseadas na comunidade, na cultura. Hospitais têm que estar disponíveis para casos mais graves. A estrela do sistema de saúde deve ser o atendimento básico, nas comunidades”, defende. Já nos partos ele não se mete. Assiste com total admiração ao ato instintivo do nascer. Acompanha o carinho das mulheres com a gestante, a atenção do parteiro, na cerimônia coletiva de chegada de uma nova vida. Só oferece apoio se for necessário. E sempre que for necessário o “dôtô”, como chamam os índios, pousa suas asas sobre as aldeias. No dia 7 de setembro, paramentado dos dedos do pé aos fios de cabelo, ele atendeu na floresta às vítimas da covid-19. E marcou nas redes sociais para não mais esquecer: “Dia de trabalhar por aqueles que perderam sua independência no dia 22 de abril de 1500”.

“Temos que levar saúde à floresta, e não tirar indígena da floresta. Precisamos estar lá com tecnologia e recursos humanos para atender no próprio território, fazer ações de saúde baseadas na comunidade”

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(Erik Jennings/Arquivo)

Registros amazônicos

Imagens e memórias criadas ali, entre as árvores, os rios e a gente amazônica, ele registrou na memória e nas páginas de dois livros: Paradô – Histórias vividas por um neurocirurgião da Amazônia e Olhando o Rio. As imagens da maior floresta tropical do mundo, do alto, emocionam, impressionam e entristecem. As palavras de Erik explicam o porquê: “As águas do Crepori eram límpidas, transparentes e cheias de vida. O garimpo ilegal tornou o rio em esgoto de lama que deságua no Tapajós. Toneladas de sedimentos com metais pesados são levados rio abaixo contaminando peixes, animais e pessoas. A morte do Crepori e a agonia do Tapajós são, acima de tudo, uma tragédia humana”, escreveu em Olhando o Rio.

A região Norte tem muita gente, muita área e poucos médicos. Enquanto no Sudeste são 2,81 por mil habitantes, no Norte do Brasil apenas 1,16. No estado do Pará, a proporção é ainda menor: 0,97 médicos para cada mil habitantes, segundo dados da pesquisa “Demografia Médica no Brasil“, de 2018, feita pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e pelo Conselho Federal de Medicina. Como as cidades são distantes, separadas por rios e mata densa, muitas comunidades não têm um médico para chamar de seu. E muitos médicos optam por trabalhar em grandes centros. O que para muitos é um desafio, para o doutor Erik trata-se de privilégio, superlativo como a Amazônia. “Na Amazônia, sou um médico completo por ter um par de asas e poder voar”, conclui.

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(Erik Jennings/Arquivo)
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