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Qual é a dificuldade de acertar um pronome?

Um texto-desabafo sobre transfobia, BBB, falta de noção e acolhimento

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 24 fev 2022, 23h47 - Publicado em 24 fev 2022 21h25
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u não acredito que o ano é 2022 e um texto como esse ainda precisa ser feito. Eu tenho dificuldade real de acreditar, mesmo morando no Brasil de Bolsonaro desde que essa tragédia foi eleita, que pessoas selecionadas para estarem no maior reality show do país, sejam incapazes de respeitar os pronomes de uma mulher travesti.

Sim, estamos falando de Linn da Quebrada no BBB. Estamos falando da travesti que foi desrespeitada diversas vezes desde que o programa começou, há pouco mais de um mês, e que vem sofrendo ataques transfóbicos dentro da casa mais vigiada do Brasil. Os algozes são seus colegas de elenco, que sequer percebem seus deslizes ao chamarem Lina de “ele” ou usarem adjetivos masculinos. Ou, em grau maior de atrocidade, quando diminuem sua existência ao não só usarem o gênero errado, mas ao desumanizá-la como pessoa digna de afeto. Afinal, Pedro Scooby disse para Lina que seu irmão “vai em tudo”, quando ela se referiu ao parente do brother como “cunhado”. Para bom entendedor, a transfobia nas entrelinhas já basta.

Na noite da última quarta-feira, quando os brothers curtiram a festa com tema Despedida de Solteiro, Lucas – então detentor da liderança – chamou Lina e Natália para dançar. “Vamos dançar vocês dois”, foi a frase usada pelo brother. Lina, irritada, questionou: “vocês dois?”. Aos que muito se preocupam com a língua portuguesa e a utilizam como desculpa para evitar linguagem neutra, informamos: flexiona-se o numeral “dois” em sua versão feminina, “duas”, ao se referir a duas mulheres. Lina é mulher e, a essa afirmação, não cabe qualquer tipo de dúvida.

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(Arte/Redação)

“Estamos no meio do programa, a Lina está cansada de ser tratada de maneira transfóbica. Com ou sem intenção, não diminui a gravidade das coisas”, escreveram as administradoras das redes sociais de Lina – equipe composta, inclusive, apenas por mulheres trans e travestis.

O que aconteceu na sequência, infelizmente, só contribuiu para que o show de horror transfóbico continuasse. Lina desabafou com Jessi sobre o ocorrido, que colocou panos quentes e alegou que Lucas teria feito aquilo “sem intenção” – como se diminuísse o sofrimento e a agressão de alguma forma. 

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Lucas contou para Eslovênia que, aí sim, terminou de piorar as coisas. Ao ouvir o que tinha ocorrido, a participante dançou enquanto falava “Eu vim para errar” do lado de fora da casa e, na sequência, foi falar com Lina, que já tinha dito que não era a hora de conversar sobre isso.  

Se o seu estômago também revira ao ver o vídeo acima, você não está sozinha. Incomoda muito ver alguém tentando banalizar a atitude transfóbica do namorado ou de outra pessoa qualquer, mas incomoda mais ainda ver esse desprezo pela dor do outro, esse não entendimento – que, a esse ponto, soa só como má vontade – que gera violência, essa atitude de “que bom poder errar, para depois acertar” que só quem goze de muitos privilégios pode ter. Ainda mais em um contexto em que parece incomodar mais a reação do público do que a reação da própria Lina, mostrando que, mais uma vez, não se importam com uma vida travesti.

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A repercussão ao longo da quinta-feira, dia que sucedeu a festa, foi grande nas redes sociais. “Tem travesti morrendo e vocês estão se preocupando com pronomes? Sim, pois se pessoas cis não sabem respeitar e compreender algo básico como um pronome e que está literalmente escrito na testa, quem dirá nos humanizar a ponto de que nossas mortes sejam evitadas?”, desabafou Alina Durso, criadora de conteúdo e também travesti, em seu Instagram. A gente aqui na Elástica passou o dia digerindo e, quando nos deparamos com a gravação que (relutantemente) vamos compartilhar abaixo, ficou claro que também precisávamos falar alguma coisa. 

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Sinceramente, não sei nem por onde começar. O que é pior: o deboche sobre a dor e a identidade de alguém ou referir-se a outro ser humano como “troço”? Ou será que a pior parte é que pessoas – no plural – se reúnam em um podcast para fazer isso e que, provavelmente, tenham uma audiência que vai corroborar, aplaudir e aprender com esses absurdos que estão sendo ditos?

Se alguém te disser que é mulher, que é homem, que é travesti ou uma pessoa não-binária, seu único papel é respeitar. Se alguém te disser que prefere ser chamado por um pronome masculino, feminino ou neutro, não existe outra opção a não ser usar esse pronome. Por que isso ainda é tão difícil de entender? As nossas expectativas e as nossas crenças sobre como viver a vida não devem ser aplicadas na existência das outras pessoas. 

A frase que (eu espero) você ouviu da sua mãe quando criança, que “a liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro” se aplica aqui. A Lina precisou matar o Júnior para viver, e cada vez que alguém erra um pronome em rede nacional, não estão apenas matando a Lina e revivendo o Júnior, mas estão validando que nenhuma travesti merece respeito ou, então existir. Já que escrever na testa e aparecer na Globo não é suficiente, a gente soma nessa torcida não só para que o programa tenha uma vencedora travesti pela primeira vez, mas para que mais gente se conscientize de que uma letra de diferença em um pronome muda tudo para muitas pessoas.

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