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50 tons de Resident Evil

Pesquisadores apontam como uma personagem do game de zumbis se tornou uma difusora de fetiches BDSM

por João Varella Atualizado em 17 fev 2022, 11h19 - Publicado em 16 fev 2022 22h51

O texto a seguir é voltado a audiências adultas.

Uma vampira de três metros de altura encheu as redes sociais de tesão em 2021. Personagem do game Resident Evil Village, Alcina Dimitrescu (ou Lady Dimitrescu) marcou a cultura do videogame, do sexo e do humor. O game espalhou a cultura BDSM, segundo um artigo científico publicado pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Essas quatro letras representam práticas sexuais de “bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo”. Em suma, é a mistura de tesão e dor – Elástica explica estes e outros fetiches aqui.

O porte de Dimitrescu toca na macrofilia, que por sua vez se encaixa com a letra D, dominação. Tendo em vista que é um movimento vinculado à franquia Resident Evil, o potencial é de impactar a cultura contemporânea.

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(Resident Evil/Capcom/Reprodução)
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O calibre

Resident Evil é propriedade da japonesa Capcom, uma das desenvolvedoras mais relevantes da história do videogame. É a dona de Street Fighter, série que fez uma ponta na disputa eleitoral brasileira. O pré-candidato Sergio Moro se equiparou ao monstruoso Blanka enquanto comparou seu adversário Luiz Inácio Lula da Silva a Zangief, um musculoso lutador seminu. Era o post mais curtido neste ano no Instagram do ex-ministro de Jair Bolsonaro até a publicação deste texto.

A série Resident Evil é maior que Street Fighter. Tem cinco posições entre os dez jogos mais vendidos do estúdio. Acumula 120 milhões de unidades comercializadas desde sua estreia, em 1996. Fora o faturamento vindo de sete adaptações aos cinemas.

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Resident Evil foi o oitavo jogo mais mencionado no Brasil no Twitter em 2021. Em 2020 não estava no top 10. O que mudou? Em 2021 saiu RE Village, o mais recente volume da série. No mundo, esse título vendeu 5,7 milhões de cópias em menos de nove meses, quebrando recordes da série. Foi o game de 2021 mais zerado, jogo do ano na Steam, do PlayStation 4, Dimitrescu foi eleita a personagem de 2021 pela Sony… RE Village é um título gigantesco com uma personagem idem.

“O BDSM em RE Village é sutil, os ganchos e torturas a Ethan são em geral sutis, algumas vezes mais explícitas. Em 50 tons de cinza é o tema central. Não são públicos que se cruzam”

José Loures, professor
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(Resident Evil/Capcom/Reprodução)

AAA com cara de B

Resident Evil é a marca de jogo de terror mais popular dos games. Para lidar com zumbis, o jogador tem armas de fogo, mas a munição é limitada. A escassez de recursos é um dos pilares da tensão do jogo. Ao mesmo tempo, as narrativas encontram espaço para bizarrices e um certo humor. É como se o cineasta Roger Corman, o rei dos filmes B, dirigisse certos segmentos do game.

Esse equilíbrio no “terrir” se mistura a um destemor em atualizar a marca. O primeiro Resident Evil trabalhava com câmera fixa. Já Resident Evil 4, de 2005, trouxe a câmera na altura dos ombros do protagonista, oferecendo mais liberdade para o jogador enquadrar o que quisesse. Resident Evil 7, de 2017, adotou a perspectiva em primeira pessoa. Apesar de ser o estilo de jogos de ação desenfreada, como Call of Duty e Doom Eternal, RE mantém um ritmo parcimonioso, em clima de suspense. Em RE 7 o jogador controla Ethan Winters, um homem em busca de Mia, sua namorada desaparecida.

Resident Evil: Village, também chamado de Resident Evil 8, continua a história de Winters. Desta vez, ele deve buscar sua filha, a bebê Rosemary – fãs de filmes de terror pegarão essa referência. Ela foi despedaçada em frascos, em uma vila europeia gótica. No caminho dele, quatro lordes e ladies, sendo Alcina Dimitrescu a mais gostosa famosa delas.

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Lady pop

Resident Evil: Village teve quatro clipes promocionais antes do lançamento do jogo. Somada, a audiência do primeiro, segundo e quarto trailers não chegam à metade do terceiro trailer. O que faz o número três ser especial? Ênfase em Lady Dimitrescu, claro:

“Ela será uma chefe muito difícil, porque lutar com uma mão é difícil”, diz o comentário mais popular do vídeo, com mais de 19 mil curtidas. Parece uma piadinha, kkkk, mas a gente já volta a falar disso.

O vídeo saiu junto de uma demonstração de cerca de meia hora. Batizada de Maiden, essa experiência digital terminava com o jogador sendo agarrado por Dimitrescu. Estava consolidado um fenômeno na internet.

“Ela será uma chefe muito difícil, porque lutar com uma mão é difícil”

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(Resident Evil/Capcom/Divulgação)

Tesão com olhar crítico

“O pessoal começou a falar de fetichização, mas não de maneira crítica”, diz o doutor em artes e professor José Loures. Essa foi a motivação dele e de outros dois colegas – Caio Túlio da Costa e Dayane Costa Oliveira da Silva – para pesquisar o fenômeno.

Boa parte do conteúdo não oficial ao redor de Dimitrescu foram de memes com gatilho humorístico vinculado ao BDSM. Como se o riso fosse uma chave para se abordar uma temática tabu.

Não foi a primeira vez que BDSM virou assunto popular. Antes de Village, o grande responsável por espalhar o fetiche foi o livro 50 tons de cinza, escrito por E. L. James. No Brasil, o livro chegou a vender 13 exemplares por minuto no começo dos anos 2010. O romance também se originou da dinâmica de apropriação da cultura popular, era uma fanfic. No rascunho inicial, Anastasia Stelle e Christian Grey eram Bella e Edward, os protagonistas da saga literária Crepúsculo, de Stephenie Meyer.

Para Loures, são abordagens diferentes. “O BDSM em RE Village é sutil, os ganchos e torturas a Ethan são em geral sutis, algumas vezes mais explícitas. Em 50 tons de cinza é o tema central. Não são públicos que se cruzam”, afirma. Como o jogador basicamente enxerga apenas as mãos do protagonista, é nessa região do corpo onde acontece boa parte das torturas ao longo do game.

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Sexo + games

Para o trio de pesquisadores, “o sexo e a sexualidade estão cada vez mais visíveis, mais complexos e com mais nuances nos games”. Em entrevista a Elástica, Loures aponta o avanço tecnológico como um dos fatores para esse crescimento. Hoje os personagens virtuais podem ser tão detalhados que confundem ficção e realidade.

Outro elemento é a mudança geracional, o contato cada vez mais presente com alta tecnologia nos primeiros anos de idade. “Os jovens estão experimentando uma nova forma de se relacionar com os outros, hoje é mais fácil pensar em webnamoro”.

A tese de doutorado de Loures, “Homo Sex Ludens”, recolheu 1.121 respostas a um questionário sobre sexo e games. Mais de um quarto dos jogadores afirmou já ter se masturbado pensando em algum elemento de um game. Lembra daquele comentário engraçadinho no YouTube? “Quanto mais jovens, maior o interesse sexual pelos personagens”, conta Loures.

Se o jogo não permite que o jogador tire a roupa de Dimitrescu, surge uma comunidade para suprir essa lacuna com desenho (a chamada fanart), vídeo, animação, cosplay. A regra 34, que estipula que “há uma versão pornô para tudo o que existe”, vigora. O material com a vampirona amealha audiência na casa dos milhões nos sites pornográficos.

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Ela não é a única. Uma versão pornô com a personagem de Final Fantasy VII Tifa Lockhart interrompeu uma reunião por Zoom do Senado da Itália. A exibição do conteúdo aconteceu instantes antes de Giorgio Parisi, vencedor do Prêmio Nobel de física no ano passado, tomar a palavra.


Virou meme do meme. Há quem veja nesse escândalo uma oportunidade para Tifa ocupar uma cadeira no Senado. Política à parte, de volta à Dimitrescu.

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(DNDXP/Reprodução)

A intenção era uma

“Esperávamos que Lady Dimitrescu fosse bem recebida pelos fãs, mas ficamos impressionados com o quão popular ela se tornou”, diz Tsuyoshi Kanda, produtor de RE Village, em entrevista por escrito à Elástica. O conceito central para guiar a criação da personagem foi “uma vampira fascinante, tão alta que precisa se agachar para passar por uma porta”.

Outras fontes de inspiração foram a serial killer húngara Elizabeth Báthory, conhecida como “condessa do sangue”. E também Hasshaku-sama, uma lenda japonesa que se disseminou na internet, dando conta de uma mulher alta, descalça, trajando vestido branco e chapéu de sol, vista em áreas rurais.

“Esperávamos que Lady Dimitrescu fosse bem recebida pelos fãs, mas ficamos impressionados com o quão popular ela se tornou”

Tsuyoshi Kanda, produtor de RE Village
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(DNDXP/Reprodução)

Fato é que a Capcom e suas distribuidoras, como a Warner no Brasil, passaram a explorar a imagem Dimitrescu para divulgar o game. Mais um sinal da importância de se discutir a sexualidade dentro dos games. “O apelo sexual com os jogos vai crescer, a tendência é isso ficar cada vez mais explícito e recorrente”, afirma Loures.

Como manda o ritmo dos hypes, o interesse por Lady Dimitrescu diminuiu. Ou melhor, foi soterrada por outras ondas de hype, Olimpíadas (com trilha de games na abertura), filme do Miranha, tutela de Britney Spears, série Arcane, Casimiro, delírios presidenciais, BBB e… bom, Tifa no senado italiano etc.

“Dimitrescu ressaltou que a comunidade BDSM existe, trouxe novos públicos, despertou interesse”, diz Loures, que ainda ressalta a importância de se entender esse mulherão. “Em breve surgirá outro fenômeno para mexer com a libido dentro de um jogo de videogame”, conclui.

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