entre tantos fenômenos sociais estranhos que acontecem no Brasil, um deles atinge em cheio profissionais das áreas “de humanas”, como jornalistas, antropólogos e professores: nós saímos da faculdade, nos cercamos de pessoas progressistas, e acreditamos que nosso mundo é um paraíso da desconstrução. Não somos racistas, lutamos por igualdade entre os sexos e pelo achatamento da pirâmide econômica do nosso país. E aí, quando o povo elege um bando de fascistoides, nós caímos na real.
Desde o início da pandemia, a crise que vivemos no Brasil se agrava cada vez mais. Com a política do “fique em casa”, ficou escancarado quem tem privilégios aqui na Pindorama, e quem continua a ser tratado como se a época dos navios negreiros fosse hoje. Em prol da nossa saúde e da economia, não fizemos lockdown. Pelo contrário, forçamos trabalhadores extremamente mal remunerados a continuar enchendo os vagões de trens e do metrô, esmagados nos ônibus apertados como sardinhas enlatadas.
Em lugares que tratam (um pouco mais) a sério os dados sobre a covid-19, como São Paulo, os indicadores mostram o óbvio: a cidade registra cotidianamente muito mais mortes em bairros das periferias do que no centro expandido. Se o vírus não faz distinção, a população se encarrega disso selecionando quem vai diariamente para o matadouro e quem tem a chance de ser poupado – e aí, se você for pra uma festa clandestina ou qualquer outro tipo de aglomeração, a irresponsabilidade é só sua, individual.
Ser branco no Brasil é viver emancipado, dono das próprias escolhas, alguém que nunca vai precisar enfrentar a meritocracia como ela deveria ser: uma política para todos. Eu tenho amigos que pensam assim – às vezes até inconscientemente – e acredito que você tenha também. Deles, ouço algumas coisas que ferem completamente meus princípios. “Cotas só aumentam a discriminação, as plataformas de delivery e transporte estão salvando desempregados, se fosse a esquerda estaríamos em lockdown completo há um ano.”
“A ideia de que toda a pessoa do grupo representa o grupo como um todo é um dos processos de racialização do outro, que é próprio da branquitude. O outro é um grupo, o outro é racializado, e nós somos indivíduos, cada um representado com humanidade”
A pior de todas as coisas que ouvi nos últimos tempos dizia respeito ao comportamento de Karol Conká e Lumena na edição desse ano do Big Brother Brasil: “São essas atitudes radicais dos negros que geram esse racismo da nossa sociedade”, uma conversa no WhatsApp que terminou com o branco liberal reproduzindo um trecho de um discurso eternizado de Martin Luther King, “I Have a Dream.”
“Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!”
Tenho certeza de que esse amigo não entendeu o discurso do doutor King, ou então se colocaria em seu lugar e refletiria sobre as palavras daquele que é considerado um dos maiores combatentes da luta antirracista nos Estados Unidos. Porque, com certeza, King não achava que o fim do racismo passa pela total submissão dos negros perante os brancos, o apagamento total de sua cultura e suas tradições.
Passou apenas um mês entre Lumena e as carreatas da morte promovidas por brancos malucos em um domingo no qual as mortes por covid-19 beirava a casa de 3 mil pessoas por dia – e que têm se repetido desde então. Como seus descendentes vikings (contém ironia), esses brancos brasileiros só não pegaram seus tacapes para irem ao protesto porque seus SUVs são armas muito mais mortíferas. Também não pegaram o chicote para açoitar a população de baixa renda, forçando-a a trabalhar, porque detêm uma ferramenta muito mais eficiente: os chefes de RH de suas empresas, sempre prontos a assinarem algumas demissões.
Do outro lado, os pobres – sua maioria de pretos e pardos – não têm quilombos para fugir e organizar uma luta contra os senhores desse país. Vivem matando um leão por dia para garantir sustento para suas famílias – alguns estão tão inebriados pela polarização nacional que até apoiam o descalabro, outros morrem em seus lares, vítimas de chacinas sem sentido.
Durante esses 11 meses em que Elástica está no ar, debatemos a fundo questões raciais das mais diversas. Mas, até agora, nunca havíamos olhado para a razão central desse problema: a branquitude e suas estruturas de poder. Para iniciar uma série de debates sobre o tema, conversei com a pós-doutora em psicologia e especialista em branquitude Lia Vainer Schucman, uma das vozes mais incisivas sobre o tema aqui no país. Autora dos livros Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo. Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo e Família Inter-Raciais. Tensões entre Cor e Amor, além de ensaísta profícua, Lia coloca na mesa temas espinhosos, que falam sobre psique coletiva, dominação e estruturas de poder no século 21. Confira: