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A ressocialização pelo cárcere é um mito

Conversamos com uma líder de associação de familiares e um defensor público para entender os desafios na preparação do preso para o retorno à sociedade

por Humberto Maruchel 29 mar 2022 02h01
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esde que Joana* começou a militar pelos direitos de pessoas presas, ela nunca sentiu que sua voz foi escutada pelas autoridades da Justiça. Sua luta começou em 2013. Os anos passaram, mas as denúncias permaneceram as mesmas: torturas físicas e psicológicas, abuso de autoridade, violação de direitos, alimentação precária, falta de água e de atendimento médico. “Essa parte de ressocialização a qual a prisão se propõe não existe”, afirma. 

De lá para cá, a população carcerária cresceu 70%. De 574 mil, em 2013, passou para 679 mil apenas em celas físicas. Quando a contagem envolve também aqueles em prisão domiciliar, o número sobe para 820 mil. Desses, 52% são negros.

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O país se mantém no pódio, em terceiro lugar, entre os que mais aprisionam, perdendo apenas para os Estados Unidos e a China. Do total abrigado nas cadeias brasileiras, 30% ainda tinham o processo correndo na Justiça em 2021. Ou seja, não haviam sido condenados. A prisão, para muitos, foi antecipada.

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O engajamento da ativista nasceu alguns dias após seu filho ter sido preso. Luís foi acusado e condenado a oito anos por tráfico de drogas, na cidade de São José dos Campos, São Paulo. Detalhe: um a cada três presos responde por crime relacionado à lei de drogas. Entre as mulheres, o índice chama atenção: seis em cada 10 estão presas por esse tipo penal. 

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(Arte/Redação)

Luís permaneceu no regime fechado até 2016. Estava a caminho da casa da ex-companheira para deixar seus filhos e acabou preso na volta para casa. Na primeira ida ao presídio, a matriarca estava pronta para dar uma dura no filho, mas logo seu propósito mudou com a cena que viu. “Eu sou uma mãe que se revoltou com esse sistema.”

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“Essa parte de ressocialização a qual a prisão se propõe não existe”

Joana*

No dia de visita, foi a última a entrar, pois não conhecia a regra da porta de cadeia que exigia uma tal senha solicitada por telefone, conta. Em seguida veio a revista vexatória, aquela em que mulheres, não importando a idade – seja uma menina de 5 anos ou uma senhora de 70 –, por exemplo, precisavam se despir e agachar três vezes em cima de um espelho e eram obrigadas a abrir a vagina e o ânus para que as agentes fizessem a revista. Essa prática era comum até 2014 em São Paulo, quando foi sancionada uma lei estadual proibindo esse tipo de vistoria. Hoje, são utilizados scanners corporais. Para o resto do Brasil, entretanto, não há uma regra geral, uma vez que o Supremo Tribunal Federal iniciou a discussão no ano passado, mas ainda não deliberou.

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(Humberto Maruchel/Fotografia)

Esquecidos pelo sistema

Joana entrou revoltada com o tratamento oferecido às mulheres. As filas em presídios masculinos são longuíssimas – nos femininos, é o oposto. No pátio, onde a visita acontecia, observou que alguns detentos permaneciam o tempo todo caminhando de um lado para o outro, não faziam nada mais além daquilo. A maioria era muito jovem e negra. Todos estavam com a cabeça raspada. “Pensei: eu estou num campo de concentração. Quem não recebia visita tinha que ficar caminhando, fizesse sol ou chuva, das oito horas da manhã até a hora que a gente saía de lá, às quatro da tarde. Eu comecei a conversar com todos eles: ‘Por que que você não recebe visita?’” A regra para aqueles que não têm visitas é permanecer em constante movimento. E não podem ficar nas celas, pois é lá que as visitas íntimas acontecem, afirma o defensor público do Estado de São Paulo Leonardo Biagioni

Naquele dia, Joana voltou chorando para casa. Na cela que o filho estava tinham 23 homens, apesar de ser um espaço para apenas oito. A maioria permanecia à toa, sem ter o que fazer.

Essa realidade pouco mudou. Do total encarcerado no país, 31% estavam envolvidos em atividades educacionais e apenas 14% estavam trabalhando. Quem estuda e trabalha ao mesmo tempo integra o raro 1%, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), referentes ao período de junho de 2021.

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(Arte/Redação)
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Em São Paulo, onde está um terço dos presos do país, Leonardo Biagioni, que é também coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, tem a complexa missão de visitar as unidades e averiguar se os direitos estão sendo respeitados. Em regra, o que ele tem observado são pessoas que permanecem em celas lotadas ao longo de 18 ou 19 horas por dia sem ter o que fazer. Mas mesmo se tivesse mais atividades educacionais lá dentro, manteria suas suspeitas sobre o suposto atributo da prisão. O defensor entende ser necessário ampliar a oferta de estudos e trabalho, mas acredita que, mesmo assim, não será possível alcançar um efeito ressocializador enquanto não houver mudanças estruturais dentro e fora da prisão. “Nas visitas que fazemos, percebemos como o sistema prisional serve como um depósito de pessoas. Ali, não são tratadas como seres humanos, mas como animais. Temos que encarar o espaço privativo de liberdade pelo que ele é: um espaço de vingança.”

“O sistema prisional serve como um depósito de pessoas. Ali, as pessoas não são tratadas como seres humanos, mas como animais. Temos que encarar o espaço privativo de liberdade pelo que ele é: um espaço de vingança”

Leonardo Biagioni

Para ele, ressocializar alguém significa devolver os direitos básicos para o convívio em sociedade. No entanto, não há como falar em devolução quando um direito nunca foi dado. “Falar em ressocialização é um paradoxo, especialmente falando daqueles que nunca tiveram os direitos fundamentais e sociais respeitados. A imensa maioria que está presa sequer alcançou níveis básicos de ensino”, conta. De fato: no país, 37% não concluiu o Ensino Fundamental antes de ser preso. Para ele, seria necessário ampliar o acesso a direitos básicos também no ambiente exterior. “Essa forma de ressocialização pelo cárcere é um mito.” 

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Durante a pandemia, houve uma mudança significativa na execução de atividades. O ensino regular passou a funcionar a partir do estudo individualizado por meio de apostilas e não mais por intermédio de professores, explica Leonardo. A remição da pena por leitura foi suspensa, assim como as visitas. Apenas as oficinas e o trabalho continuaram ocorrendo, mas muitas empresas deixaram de oferecer oportunidades.

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(Humberto Maruchel/Fotografia)

São Paulo possui uma oferta maior de cursos em relação à média nacional. De acordo com dados do Depen, 53% dos presos estavam envolvidos em atividades educacionais. Além da educação regular, que é oferecida pela Secretaria Estadual de Ensino, há outras modalidades promovidas pela FUNAP (Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso), que é responsável por avaliar e desenvolver programas sociais, como oficinas, cursos profissionalizantes e viabilizar oportunidades de trabalho, a partir de parcerias com o setor privado e também com municípios. As ocupações passam pela produção de máscaras, artesanatos, móveis etc. No entanto, a porcentagem de pessoas em atividades laborais dentro do sistema, em São Paulo, não passa de 13%.

O defensor Leonardo argumenta que há algumas iniciativas de educação que ajudam o preso a retornar menos estigmatizado para o seu território, mas que funcionam como redutores de danos. “Isso apenas ajuda a manter a pessoa ocupada ou, no máximo, permite que ela continue os estudos ou o trabalho que exercia fora do cárcere. Mas dificilmente poderá dar continuidade ao que aprendeu e exerceu lá dentro, pois não haverá trabalho.”

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Liberdade? Que liberdade?

Se dentro da prisão as oportunidades são escassas, fora a situação parece se repetir ou se agravar, pois, em liberdade, precisam lidar com o estigma, lembra Joana. “Eles não conseguem mais trabalhar, dependem de empresas parceiras que os acolham. Boa parte vai para construção social, vendem doces e salgados em semáforos. E outros acabam voltando para cadeia”, resume. 

A afirmação é correta, já que 42% das pessoas que tinham processos criminais, no Brasil, voltaram ao sistema prisional até dezembro de 2019, segundo informação do Conselho Nacional de Justiça. O estudo verificou que 93% dos reincidentes são homens e 80,3% não possuíam instrução ou tinham apenas o Ensino Fundamental. Os Estados Unidos, novamente, superam o resto do mundo: 68% voltaram a ser presos num período de três anos após a soltura, de acordo com dados do Bureau Justice of Statistics. 

A Noruega, por outro lado, tem o índice mais baixo: 20%, segundo informação do The Borgen Project. Isso porque o sistema todo no país foi reformulado. Além disso, muitos saem empregados do sistema, fator que faz muita diferença segundo a organização. Em 2019, a repórter Emma Jane Kirby, da BBC britânica, foi conhecer as facilidades. Ela relata que as prisões ganharam outra cara a partir da década de 90, um aspecto mais parecido a uma clínica de reabilitação, onde os direitos são protegidos. Perder a liberdade já é considerado uma punição suficiente.

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Nas cadeias, não há celas e todos permanecem em atividade durante todo o tempo. Sua saga começa em uma aula de yoga dentro do presídio. Muitas das atividades, como esportes, são praticadas junto aos agentes, pois esse tipo de relação mais próxima é vista como uma maneira de prepará-los para o convívio social. Lá, deixaram de concentrar-se na vingança e investiram na reabilitação, ela afirma. Um encontro inusitado: um dos entrevistados, Fredrik, condenado a 15 anos por assassinato, estava prestes a lançar um livro de culinária da prisão quando Emma o entrevistou. Na Noruega, não há mais prisão perpétua. Tampouco há no Brasil. O pressuposto, portanto, é que quem está ali, um dia irá sair. 

“[Depois de sair] Eles não conseguem mais trabalhar, dependem de empresas parceiras que os acolham. Boa parte vai para construção social, vendem doces e salgados em semáforos. E outros acabam voltando para cadeia”

Joana*

Para Joana, a ressocialização parece ser uma palavra perdida entre o cárcere e a liberdade: “É muito difícil alguém sair melhor dali.” Todas as terças e quintas-feiras, ela se reúne com familiares de presos. Desde o início da pandemia, os encontros ocorrem remotamente. Numa quinta-feira, no começo de fevereiro deste ano, ela entra na plataforma Google Meets e aguarda os outros convidados. 

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As discussões são diversas, e ela permanece ali durante horas para tirar dúvidas, coletar denúncias e também acolher diante de tantas incertezas. Reclamam das refeições, das burocracias das visitas, da necessidade de encaminhar os documentos toda vez que o preso é transferido de unidade, da proibição de enviar alguns tipos de livros (citam 50 Tons de Cinza num momento descontraído), do período de isolamento em solitária que pode ultrapassar o limite da lei, da falta de assistência aos internos, da distância e também da saudade.

Ali, são todas mulheres: esposas e mães. Isso é comum. Apenas um homem se manteve firme na luta coletiva, os outros debandaram. É Marcos. Sua esposa está presa há dois anos. Ele mesmo permaneceu pouco mais de dois anos confinado por assalto a uma residência. “Infelizmente, o objetivo da prisão é punir. O efeito ressocializador não existe. Não existe uma preparação do indivíduo para quando ele sair do cárcere”, reflete. Além da condenação, sua esposa recebeu uma multa penal de R$22 mil. Esse tipo de sanção é frequente em casos de tráfico de drogas ou em crimes contra o patrimônio, como roubo. Enquanto não for paga, o processo permanece aberto. Na prática, a pessoa permanece em dívida ativa com o Estado. Em função disso, não consegue regularizar o CPF, não pode ter uma conta em seu nome, se inscrever em programas sociais e nem mesmo votar. “Seus direitos permanecem violados mesmo fora da prisão”, argumenta Joana.

“Infelizmente, o objetivo da prisão é punir. O efeito ressocializador não existe. Não existe uma preparação do indivíduo para quando ele sair do cárcere”

Marcos
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Enquanto não parece ter muito o que fazer, familiares sentem que estão dando murro em ponta de faca, mas nem por isso esmorecem no compromisso. No encontro semanal, uma das mulheres comenta que há uma proposta de que o preso tem que ficar a menos de 100 km da família para facilitar o deslocamento e restringir os gastos das famílias com as viagens. Joana logo rebate: “Isso não é proposta, é lei! Isso faz parte da ressocialização.” No entanto, a viagem costuma levar entre 5 e 14 horas para muitas.

Um dos assuntos que surge parece deixar Joana mais abalada.  É sobre alimentação. “A última refeição deles está sendo às 16h da tarde e só voltam a comer no outro dia às 7h”, reclama uma das presentes. “Sempre foi assim”, devolve a líder do grupo. “Essa é uma pauta nossa desde que eu conheço a cadeia.”

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O outro lado

A Elástica procurou a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, questionando sobre como são destinados os recursos para atividades educativas dentro do sistema e também solicitando esclarecimentos a respeito das denúncias de maus tratos e negligência no cárcere. A resposta foi a seguinte:

“A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) informa que, em relação à educação nos presídios, em 2021 foram investidos R$ 20 milhões tanto pela SAP quanto pela Funap, órgão vinculado à Pasta. Desse valor, R$ 30,8 mil são recursos de outros parceiros, como universidades, que investem em educação para presos sem que eles precisem custear o curso. Em 2020, foram investidos R$ 15,9 milhões, com R$ 65,5 mil de parceiros e, em 2019, R$ 21,3 milhões, com R$ 163,5 mil de parceiros.

Há cerca de 30 mil presos trabalhando em todo o estado. A Pasta investe no fortalecimento da oferta de qualificação profissional por meio de programas como ‘Via Rápida Egresso’, ‘Bolsa Trabalho’, ‘Escola mais Bonita’, Padarias e as Jornadas da Cidadania e Empregabilidade. O trabalho dos reeducandos pode ocorrer no regime semiaberto, em que os contratados têm a possibilidade de se deslocar até o local de trabalho estipulado pela empresa ou órgão público contratante, e também no regime fechado, quando as empresas instalam suas oficinas de trabalho dentro das unidades prisionais para realização das atividades produtivas.

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A contratação da mão de obra dos reeducandos pode ser realizada por empresas privadas e por órgãos públicos. Além disso, o trabalho proporciona remissão de pena: a cada três dias trabalhados, um dia de pena é remido. Os presos podem ser contratados para desempenhar atividades como manufatura de produtos variados, atividades de zeladoria, produção de artigos artesanais, plantio e manutenção de mudas, serviços gerais e de manutenção predial, e montagem de equipamentos. 

Em todas as unidades, são servidas ao menos três refeições (café, almoço e jantar) diariamente. A alimentação é balanceada e segue um cardápio previamente estabelecido e elaborado por nutricionistas. A Secretaria esclarece que não há racionamento de água nas unidades. Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia. Os presos são orientados quanto ao uso consciente para evitar que haja desperdício.

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As unidades fornecem todo o material para higienização das celas e também os itens necessários para a realização de higiene pessoal, por meio de kit higiene (creme dental, escova dental, aparelho de barbear e papel higiênico), além de uniforme e outros itens de necessidade básica, sendo repostos sempre que acaba.

Para minimizar o problema da sobrepopulação prisional, desde o início desta gestão foram inaugurados 8 novos presídios, ampliando 6,6 mil vagas no sistema prisional, além de 5 novas unidades prisionais em construção para criar outras 4,1 mil vagas. Simultaneamente, foi observada redução de 13% da população carcerária no sistema paulista nos últimos dois anos. O Governo de São Paulo vem adotando medidas que vão além da ampliação da infraestrutura prisional, como o incentivo à adoção de penas alternativas ao encarceramento e parcerias com o Poder Judiciário para a realização de mutirões.  

A SAP preza pela garantia das condições de habitabilidade e salubridade de suas unidades e o tratamento dispensado aos custodiados no sistema penitenciário paulista é pautado pelo respeito à dignidade da pessoa humana. Há órgãos/entidades que, diariamente, realizam inspeções nos presídios paulistas e todas as denúncias recebidas são apuradas dentro dos critérios legais. Há ainda os canais próprios da Secretaria, como a Ouvidoria e Corregedoria, abertos para denúncias e que apuram as reclamações recebidas.”

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*Joana e Luís são nomes fictícios para resguardar a identidade das fontes

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