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Depois do grito, o desabafo

A jogadora de vôlei de praia Carol Solberg fala sobre polêmica que se envolveu quando protestou contra Bolsonaro, machismo e democracia no Brasil

por Artur Tavares Atualizado em 11 nov 2020, 13h56 - Publicado em 11 nov 2020 00h37
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(Clube Lambada/Ilustração)

uando havia uma ditadura militar no Brasil, jogadores da equipe masculina de futebol do Corinthians realizaram alguns dos protestos mais contundentes contra o regime em rede nacional. Eram os anos 1980 e o período ficou conhecido como Democracia Corinthiana. Desde então, foram raríssimas as manifestações públicas de atletas de quaisquer modalidades contra projetos autoritários de poder ou figuras políticas em geral.

Enquanto as finais da NBA, a abertura da NFL e as corridas da Fórmula 1 eram inflamadas por protestos contra a violência contra os negros e contra o racismo em geral, em setembro, aqui no Brasil tudo corria em suspensão – a mesma que tem tomado nossa sociedade desde 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, e que nem uma pandemia que já matou mais de 160 mil pessoas conseguiu mudar. Mas, após conquistar o terceiro lugar em uma etapa do Circuito Brasileiro de vôlei de praia, no dia 20 daquele mês, a atleta Carol Solberg, que joga em dupla com Talita Antunes, pegou o microfone e soltou a voz: “Fora, Bolsonaro!”

O grito não veio da boca de um megastar da bola, que move milhões de reais em marketing e conversa com outros milhões de brasileiros, mas repercutiu da mesma maneira. Embora já tivesse uma carreira de sucesso no vôlei de praia há muitos anos, Solberg era bastante desconhecida no país do futebol. Filha da ex-jogadora de vôlei de quadra Isabel Salgado, Carol já acumula medalhas na modalidade desde 2002, mas quase duas décadas de carreira profissional não fizeram tanto barulho quanto seu protesto.

O que veio a seguir marca uma das maiores vergonhas que órgãos públicos registraram esse ano – e não foram poucas. O Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) decidiu punir Carol Solberg por seu protesto, enquadrando-a em dois artigos do seu Código Brasileiro de Justiça Desportiva: o Artigo 191, que fala sobre “deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento de regulamento, geral ou especial, de competição”, e o Artigo 258, por “assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras deste Código à atitude antidesportiva”.

Ética desportiva que, diga-se de passagem, é jogada às favas cada vez que um boleiro aparece ostentando faixas para Jesus, que outros jogadores de vôlei violaram em 2018 quando declararam, também em quadra, apoio a Jair Bolsonaro, que atletas parecem ignorar cada vez que não pagam pensões alimentares para seus filhos, estupram garotas no exterior, matam a namorada em uma brutal formação de quadrilha. Os exemplos de má conduta são extensos, mas decidiram punir Carol Solberg por um “Fora, Bolsonaro!”.

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Após um breve período de silêncio enquanto aguardava a sentença do STJD – seu caso poderia render uma multa polpuda e perda de patrocínios, mas ficou apenas por uma advertência e uma censura prévia que a proíbe de se manifestar de maneira semelhante em quadra – Carol voltou a dar entrevistas nessa semana. Entre outros veículos, conversou conosco, falou sobre machismo, o governo Bolsonaro, sua carreira e o estado da democracia no Brasil. Você confere tudo a partir de agora:

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(Carol Solberg/Divulgação)

Para começar, gostaria que você nos contasse um pouco de sua trajetória no vôlei, algo que se confunde com sua vida inteira, né? Sua mãe foi uma grande jogadora e treinadora, você joga desde cedo…
O vôlei sempre esteve presente na minha vida, ia para os treinos da minha mãe e viajava muito com ela para os campeonatos. Minha mãe teve uma escolinha de vôlei de praia, e de vez em quando eu ia fazer umas aulas, mas só comecei a jogar mesmo com uns 11 anos. Via minha irmã Maria Clara se arrumando para treinar no Flamengo e pedi para minha mãe me levar também. Antes disso, fiz natação, ginástica olímpica e tentei tocar vários instrumentos, mas não levava jeito pra nenhum. Muito rápido, me apaixonei completamente e só queria saber de vôlei. Passava o dia inteiro no clube do Flamengo e pedia para treinar com as categorias acima da minha quando meu treino acabava.

Com 14 anos, fui convocada para Seleção Brasileira infanto-juvenil e fiquei três meses em Belo Horizonte treinando para o campeonato Sul-americano. Ali, percebi que não queria sair do Rio de Janeiro tão cedo e que não seria feliz jogando quadra. Minha irmã Maria Clara, que já jogava praia, topou dar uns passos atrás e começar a jogar comigo, que não sabia nada da modalidade. Minha mãe era nossa treinadora, e passamos um ano para conseguir entrar no ranking. Três anos depois disso, conseguimos ficar entre os melhores times do Brasil. Fui bicampeã mundial sub-21 e comecei a correr o circuito mundial bem cedo. Foram muitas histórias, e tive a sorte de poder viver tanta coisa no esporte ao lado da minha irmã e também do Pedro [seu irmão], que estava em quase em todos os campeonatos. Choramos, vibramos e demos muitas risadas juntos!

Engravidei do José em 2011 e, em 2013, fui vice-campeã do Circuito Mundial com a Maria. Em 2016, tive o Salvador e fui campeã do Circuito Brasileiro em 2018, quando fui eleita a melhor atleta da temporada. Fiquei em terceiro na classificação olímpica para Tóquio, e foi bem duro perder essa vaga, pois eu e Maria Eliza estamos indo muito bem e ficamos atrás por poucos pontos. Hoje em dia, jogo com a Talita.

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Falando sobre a modalidade, o Brasil sempre teve ótimos resultados no vôlei, seja na quadra, seja na praia. No país do futebol, como são os incentivos para quem deseja ser profissional no vôlei, se tornar um atleta de alto desempenho e viver do esporte?
A realidade do atleta brasileiro é bem dura. Muito cedo temos que decidir entre estudar ou nos dedicarmos totalmente ao esporte. Isso por si só já é bem difícil, pois os que não conseguem se destacar acabam também se prejudicando numa outra carreira, por terem aberto mão dos estudos. Um atleta jovem dificilmente vai ter algum tipo de patrocínio, então tem que acreditar muito no seu sonho e investir tudo que tiver para conseguir ir para os campeonatos e bancar uma estrutura mínima de treinamento. As premiações também não são suficientes para você pagar todas as contas e pagar bem sua equipe, então, sem patrocínio, fica praticamente inviável viver só do esporte.


“A realidade do atleta brasileiro é bem dura. Muito cedo temos que decidir entre estudar ou nos dedicarmos totalmente ao esporte. Isso por si só já é bem difícil, pois os que não conseguem se destacar acabam também se prejudicando numa outra carreira, por terem aberto mão dos estudos”

O vôlei brasileiro tem como um dos principais patrocinadores o Banco do Brasil, uma empresa estatal, e a CBV já teve um esquema histórico de corrupção, na gestão de Ary Graça Filho, desmantelado. Essa proximidade com o poder explica o que, além da óbvia interferência política no seu caso recente de protesto contra o Bolsonaro?
A parceria do vôlei com o Banco do Brasil é uma união de muito sucesso de marketing e resultado esportivo. Acho que corrupção infelizmente acontece em todos os lugares e cabe aos meios de fiscalização estarem atento para evitar e punir esse tipo de conduta. O esporte, as artes e outras atividades precisam muito de incentivo do Estado. O problema não é uma estatal patrocinar esse ou aquele esporte e sim que se fiscalize e que se cumpram as leis.

Além da punição que sofreu, você foi muito criticada pela manifestação que fez contra o presidente, mas dentro do próprio vôlei a ex-atleta Ana Paula Henkel se tornou uma porta-voz da extrema direita, enquanto jogadores da seleção masculina fizeram 17 com as mãos antes das eleições, em 2018 – isso sem contar as manifestações pró-Cristo de jogadores evangélicos de futebol e muitas outras. Porque seu caso se tornou tão emblemático, enquanto tantos outros passam em branco?
Vivemos uma total inversão de valores. Uma sociedade onde mulheres são estupradas, assassinadas, espancadas e esses crimes não são punidos como deveriam ser. Atitudes homofóbicas são motivos de piada, da mesma forma que se banaliza o racismo e a violência contra os pretos. Tenho certeza que esse grupo de pessoas que me criticaram são aqueles que acham que as mulheres devem continuar num papel de submissão e passividade A misoginia é uma das facetas mais horrorosas desse governo que chancela o que na verdade me envergonha hoje no Brasil. Ainda bem que existe o feminismo, mulheres unidas incomodam!


“Tenho certeza que esse grupo de pessoas que me criticaram são aqueles que acham que as mulheres devem continuar num papel de submissão e passividade A misoginia é uma das facetas mais horrorosas desse governo”

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(Carol Solberg/Divulgação)

A própria Ana Paula, em mais um de seus comentários pífios, te chamou de “marxista de Ipanema”. Você acha que as críticas subiram de tom também pelo fato de você ser mulher? Te pergunto isso à luz do caso do jogador de futebol e estuprador Robinho, que tem sido defendido por parte da sociedade mesmo com provas contundentes de seus crimes…
Penso que subiram de tom, sim, por ser uma mulher no centro dessa discussão. É uma vergonha, as coisas estão muito deturpadas nesse país. Vivemos em uma sociedade em que somos estupradas, desumanizadas e assassinadas simplesmente pelo fato de sermos mulheres. E esses homens seguem impunes por aí! Eu sou denunciada por me manifestar politicamente e um cara que é condenado por estupro é convidado a posar como ídolo no futebol. Para esse governo, ter uma mulher criticando, ainda mais essa mulher sendo do esporte, é inadmissível.

Por falar em “marxismo de Ipanema”, me conta um pouco da sua formação política. Você sempre teve opiniões bem formadas, ou a eleição do Bolsonaro despertou em você um momento de reflexão?
Sempre conversei sobre política em casa. Sem dúvida, a eleição de 2018 passou a nos obrigar a nos informarmos cada vez mais. Todo papo sempre acaba com a gente falando desse governo. Gostaria de saber muito mais sobre política. Acredito que todos nós temos que nos informar cada vez mais, só assim podemos nos proteger disso que está acontecendo e ter força e esperança para passarmos por esse momento.

Logo depois do seu “fora, Bolsonaro” na televisão, você disse em entrevista que era um grito que estava entalado na sua garganta já há algum tempo. O que é o Bolsonaro e esse governo pra você?
É um pesadelo. Esse governo representa tudo que sou contra. É muita tristeza e revolta ver o Brasil sendo destruído e dando tantos passos atrás na educação, esse desmonte da cultura, nosso meio ambiente sendo destruído, a saúde sendo tratada sem o menor respeito, politicas covardes com as minorias. São tantos absurdos todos os dias…

“Sou denunciada por me manifestar politicamente e um cara que é condenado por estupro é convidado a posar como ídolo no futebol. Para esse governo, ter uma mulher criticando, ainda mais sendo do esporte, é inadmissível”

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Você acha que esse pensamento retrógrado e extremista sempre esteve presente nas instâncias esportivas e a eleição do Bolsonaro só deixou tudo mais às claras, ou é um fato novo?
Acho que esse pensamento sempre existiu. Bolsonaro simplesmente deu o aval para esse tipo de posicionamento ser uma coisa natural. Acho que, antes dele, as pessoas tinham um pouco de constrangimento de demonstrar apoio a esse tipo de pensamento.

É possível mudar esse quadro, ter um pouco mais de esperança no futuro do esporte?
Acho que sim. Tudo sempre começa na educação. Seria interessante se tivéssemos projetos, que de fato, unissem educação e esporte de alto rendimento. Entender que a liberdade de expressão é um direito de todos, que o esporte não é só entretenimento e que todos temos responsabilidades com a vida de quem está do nosso lado. Acredito também que essas regras do século passado, que ainda estão aí, devem ser revistas. Dessa forma, esse clima de repressão e medo pode mudar.

Quem são os atletas que te inspiram hoje no esporte, pessoas que tem muito a dizer nesse momento tão difícil?
Megan Rapinoe, Lewis Hamilton, LeBron James e todos os que usam sua voz para se colocar diante tantos absurdos que estamos vivendo.

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No dia que o STJD te julgou, li um comentário na internet de que você deveria desafiar o sistema gritando “Lula livre” na próxima entrevista, já que isso não seria uma crítica a ninguém. Brincadeiras a parte, como você recebe essa decisão? Vai protestar fora das quadras e se silenciar dentro delas?
[Risos] Gostei da ideia! Quero poder me manifestar e falar sobre o que eu quiser. Isso é viver em uma democracia. Quanto a decisão do STJD, eu ainda estou recorrendo.

Para terminar, você acha que veremos uma retomada do protagonismo de esquerda em algum momento do futuro, ou o campo progressista ainda está bastante baqueado com tudo que aconteceu desde o impeachment da Dilma Rousseff?
Gostaria muito de ver a esquerda unida. Não vejo outro caminho. Esse é o lado que entendo menos na política. Diante de tudo que estamos vivendo, a minha vontade é ver a união dessas forças, para que elas consigam ir de encontro ao que eu e muitos brasileiros queremos: “Fora, Bolsonaro”.

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