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Apenas meninas

Documentário que acaba de chegar à HBO Max escancara a realidade do casamento infanto-juvenil – Brasil é o 4º país com mais casos deste fenômeno

por Alexandre Makhlouf 27 out 2021 23h08
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ara muitas pessoas, o dia do casamento é o grande sonho. Planos são feitos acompanhados de sorrisos e sonhos. Meninas pensam no vestido branco e na marcha nupcial tocando, na valsa com o futuro noivo e nas pessoas queridas rodeando o casal de amor. Mas, na prática, muitas dessas jovens que sonham com o casamento perfeito encontram outra realidade quando, ainda crianças, são obrigadas a se casar. Essa é a dura realidade abordada em Apenas Meninas, documentário com direção de Bianca Lenti, da Giros Filmes, que chega esta semana ao catálogo da HBO Max. Ao contar a história de sete jovens brasileiras, de diferentes regiões do país, que vivem em situação de extrema vulnerabilidade – social, econômica, emocional –, Bianca e uma equipe 100% feminina se debruçam sobre essa questão que o Estado praticamente ignora. 

Dizemos isso porque, ainda que o Código Civil brasileiro proíba o casamento de menores de 16 anos desde 2019 (sim, antes disso não era proibido e essa informação beira o absurdo), o Brasil ainda é o 4º país no ranking mundial dos casamentos infanto-juvenis. Se a posição alta no ranking não é suficiente para te convencer do tamanho do problema, aqui está outro dado: são 554 mil casamentos de meninas entre 10 e 17 anos no país todo ano – 65 mil são de meninas entre 10 e 14 anos. Ou seja: a cada 21 minutos, uma menina de 10 a 14 anos se torna mãe – e a maternidade nessa idade acaba sendo causa e consequência para aumentar esses números.

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(Arte/Redação)

“Apesar de a gente já ter viajado bastante pelo Brasil em produções e me deparar com casamento precoce, gravidez precoce, casos de abuso físico e psicológico, me surpreendeu perceber que, ao contrário do que muita gente imagina, esses casamentos não acontecem no Brasil profundo. Estão perto da gente, no perímetro urbano. Fiquei atraída pela ideia de desmistificar o conceito de que casamento infantil é sempre casamento arranjado, é sempre casamento que acontece por conta de um viés cultural ou religioso”, explica Bianca. A diretora, que começou a acompanhar a história das 7 personagens do documentário em 2016, filmou boa parte de Apenas Meninas em 2018 e, até hoje, mantém contato com elas, explica que o descaso da sociedade e do Estado em relação a essas garotas as faz pensar que a única solução para sair desse cenário é o casamento. “As pessoas não estão preocupadas com os sonhos, o desenvolvimento, os corpos e as vulnerabilidades das nossas meninas periféricas, sobretudo as pretas. Por isso, elas se agarram ao casamento como uma rota de fuga. Parece que elas buscam isso, mas no fundo é um pedido de socorro.

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(Apenas Meninas/Reprodução)

Quando as meninas percebem invariavelmente que o casamento não é a solução para sair de outros ciclos de violência, entram em cena as psicólogas e assistentes sociais, profissionais que têm seu trabalho fundamental destacado no documentário. Apenas Meninas não existiria, aliás, sem que essas profissionais tivessem feito a ponte entre a Giros Filmes e Agnes, Ruama, Maria, Renata, Ana, Roberta e Adriana. São elas que acompanham o desenvolvimento dessas jovens mães e entram em ação para ajudá-las no processo de autoconhecimento e empoderamento, duas palavras-chave para tirá-las dessa condição de vulnerabilidade. “Casamento infantil é uma violência por si só. Percebemos no dia a dia que, mesmo quando existe vontade de se casar por parte das meninas, precisamos investigar o motivo”, pontua Amanda Villela, psicóloga, em depoimento ao documentário.

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(Apenas Meninas/Reprodução)

O que leva uma criança a se casar?

A pergunta pode induzir a uma resposta que remeta ao que Bianca também pensava: casamentos arranjados, pais que obrigam filhas a se casar e que nenhuma dessas meninas teve escolha. Mas a forma como Apenas Meninas apresenta as histórias mostra que a realidade é muito mais cruel do que um matrimônio obrigatório seria. Agnes, por exemplo, que podemos considerar a protagonista do documentário, foi mãe aos 16 anos e sofreu diversas violências vindas do o pai de sua filha. “É moralmente horrível uma menina nova ficar grávida e não ter um marido. Só que ninguém vai na discussão mais profunda de porque nós, enquanto adolescentes, precisamos casar ou ser mãe para ter um lugar de poder na sociedade, ter alguma legitimidade de algo. Tenho a sensação que, antes disso, eu era um sujeito invisível. Acho que se eu fosse estimulada a produzir outras coisas pra minha vida, com certeza não teria casado”, ela diz.

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(Arte/Redação)

Assim como Agnes, 76,5% das mulheres vítimas de violência apontam homens como agressores – 24% são vítimas dos próprios namorados ou maridos. Entre as vítimas de violência doméstica, o racismo estrutural também se faz presente: 56% se consideram pretas ou pardas. “Todas as meninas selecionadas para o documentário já viviam uma situação de vulnerabilidade extrema. De forma geral, as meninas que não têm acesso à educação e ficam restritas ao universo doméstico sofreram ainda mais privações de necessidades básicas durante a pandemia”, explica Bianca.

Apenas Meninas – bastidores
Apenas Meninas – bastidores (Apenas Meninas/Divulgação)

A educação é um ponto crucial nessas histórias. O casamento infanto-juvenil quase sempre é acompanhado por uma gravidez não planejada – que pode ser causa ou consequência dessa união – e um bebê, via de regra, impossibilita que essas jovens mães continuem estudando. Não estar na escola tira dessas garotas a oportunidade não só de aprenderem o necessário para buscarem uma profissão, mas exclui também a possibilidade da construção de autoestima e empoderamento, deixando-as restrita ao ambiente da casa. O IBGE mostra que mais de 1,7 milhão de brasileiras de 15 a 29 anos não completaram o ensino médio, não estudam e não exercem atividade remunerada. Atualmente, cerca de 310 mil jovens mães brasileiras estão fora da escola – 35% abandonaram os estudos para cuidar dos filhos, 25% abandonaram os estudos para cuidar de crianças, sejam filhos e/ou parentes

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(Arte/Redação)

“O contato com essas meninas faz a gente perceber o tamanho dos nossos privilégios, do quanto a salvaguarda da educação foi importante na nossa vida. Sem isso, poderíamos ter o mesmo destino dessas meninas e enxergar o casamento como uma saída para outras violências. Refletimos muito sobre poder realizar nossos sonhos e ser o que a gente quiser sem precisar necessariamente se condicionar ao que a sociedade nos empurra, que é o exercício do cuidado, da maternagem. Cuidar da casa, dos filhos, do marido. Educação é o que possibilita escolher nosso destino e definir nossa identidade”, completa Bianca.

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