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Pelo direito de parir em paz

Casas de parto, doulas e obstetrizes: movimentos de resistência no SUS para a humanização ao parto na periferia

por Luis Patriani Atualizado em 1 fev 2022, 15h15 - Publicado em 25 jan 2022 09h15
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(arte/Redação)

Eu fui mãe jovem, muito jovem. Aos 15 anos, tinha um relacionamento e com 19 estava gestando. Era um domingo. Tive um sangramento e fui para o hospital. Não sabia nada sobre contração e já estava com 9 cm de dilatação. Me levaram à uma sala de parto e o médico, então, pediu para eu não empurrar o bebê. Em seguida, lembro de uma voz feminina dizendo para não aplicar analgesia porque a ocitocina faria com que eu não sentisse dor. E eu senti o corte do bisturi. Meu filho nasceu em trinta minutos. Tive depressão pós parto e após sete anos tentando nomear o que eu sentia, descobri que aquela dor física e emocional era consequência de uma parto desrespeitoso, fruto de uma mutilação genital ocasionada por uma episiotomia inadequada feita para ensinar alunos residentes”.

A constatação de ter sido vítima de violência obstétrica em um parto em que seu corpo foi usurpado em uma aula sem o seu consentimento trouxe a doula Daniele Sampaio, criadora da Coletiva Mãe na Roda, ao ativismo que faz dela uma das personagens mais relevantes na batalha pelo acesso das mulheres pobres ao direito de dar à luz de forma digna e respeitosa.

Daniele, que mora na comunidade Jardim Monte Azul, no M’Boi Mirim, zona sul de São Paulo, sentiu na pele as mazelas de parir seu primeiro filho em um hospital público sendo uma mulher preta e pobre da periferia. No segundo filho, a ativista de 39 anos teve uma experiência positiva dentro de uma casa de parto junto ao seu bairro que a fez comparar modelos de gestação, levando-a à militância combativa de hoje. 

“Fui recepcionada carinhosamente na porta da Casa Angela. Estavam com meu prontuário, sabiam meu nome e perguntaram o nome do bebê que estava morando em mim. Isso me mostrou o que é bom e eu passei por todo o processo de acolhimento como uma reestreia. Doze anos depois da minha primeira gestação com toda aquela violência, pude usufruir o melhor que o equipamento de saúde podia me dar”. 

Sua terceira cria, a Coletiva Mãe na Roda, se destaca não somente por acompanhar o pré-natal das gestantes, mas por formar opinião em ações como rodas de conversa e distribuição de cartilhas dentro de territórios ignorados pelo estado, levando informação e, sobretudo, reverberando senso crítico no clã familiar do espaço periférico. 

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“Em 2016, encontrei outras mulheres e montamos a coletiva. Buscamos a certificação de doulagem e tivemos contato com as evidências científicas, entendendo o que é lei, ética, violência obstétrica, racismo obstétrico e qual o papel do médico. A formação de doula é uma formação política social. Nosso nicho são as mulheres que, por motivo de saúde, não podem parir em uma casa de parto”, diz Daniele, ressaltando a necessidade urgente para que os hospitais públicos aceitem a presença de doulas sem alegar falta de espaço e que o Sistema Único de Saúde (SUS) as contrate para que o serviço não fique restrito à elite que pode pagá-lo. 

“Em 2016, encontrei outras mulheres e montamos a coletiva. Buscamos a certificação de doulagem e tivemos contato com as evidências científicas, entendendo o que é lei, ética, violência obstétrica, racismo obstétrico e qual o papel do médico. A formação de doula é uma formação política social”

Daniele Sampaio
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(Janaina Santina/Divulgação)

“Precisei sair da periferia para dialogar onde a humanização é falada. Ela é discutida na bolha, mas a humanização não chega para o meu território. A bolha não influencia na melhoria dos hospitais do Campo Limpo e M’Boi Mirim, por exemplo. E aí te pergunto. Humanização para quem? Para quem tem dinheiro?”.

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(Jess Vieira/Ilustração)

O Brasil e o racismo obstétrico

Faceta da violência de gênero enraizada dentro de um modelo misógino e patriarcal, a violência obstétrica se vale da apropriação do corpo feminino em um tratamento desumanizado em que a medicalização abusiva e a patologização dos processos naturais tiram a autonomia e o protagonismo da paciente em um momento sublime de sua vida.  

Os estudos que poderiam pautar políticas públicas, por sua vez, são escassos, ainda mais quando o recorte é racismo obstétrico. A pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fiocruz, foi a mais abrangente realizada até hoje e trouxe à tona as iniquidades na atenção pré-natal e parto de acordo com a raça e cor. 

O levantamento nacional, feito por meio de entrevistas e avaliações de prontuários de 23.894 mulheres em 2011/2012, mostrou que puérperas de cor preta e parda, em comparação às brancas, possuíram maior risco de ter um pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante, peregrinação para o parto e menos anestesia local para episiotomia. 

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Uma pesquisa da Fiocruz mostra que puérperas de cor preta e parda, em comparação às brancas, possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante e menos anestesia local para episiotomia

A pesquisa aponta ainda, que a obsoleta e contraindicada manobra de Kristeller, cuja técnica consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê, acontece em 37% dos nascimentos, e o uso da ocitocina no soro para aumentar as contrações e acelerar o parto aparece em 36% dos casos.

A Casa Angela, citada como exemplo de boas práticas, é uma das poucas casas de parto humanizado conveniadas ao SUS. Ao todo no país são apenas 18. Fundada em 2009, a organização social acompanha mulheres desde o pré-natal até o primeiro ano de vida do bebê e já fez 2.800 partos desde então, dos quais 54% foram de gestantes da raça negra (pardas e pretas). Apesar da relevância, o trabalho encontra resistência dentro do próprio sistema de saúde na ampliação da oferta do serviço.  

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(Casa Angela/Divulgação)

 “As mulheres chegam até nós principalmente por indicação de amigas, conhecidas e familiares. Os encaminhamentos feitos pelas unidades básicas de saúde não são frequentes. Ainda tem um caminho de desmistificar muitas questões em relação a uma assistência prestada por enfermeiras. Culturalmente as pessoas estão acostumadas com o parto acompanhado por um médico e em um ambiente hospitalar”, diz Amanda Meskauskas, coordenadora administrativa da Casa Angela, que junto com a casa de parto de Sapopemba representam as únicas casas de parto conveniadas ao SUS na cidade de São Paulo.

De acordo com Amanda, estudos mostram que o grau de satisfação das mulheres é maior quando o parto é acompanhado por enfermeiras obstétricas ou obstetrizes, profissionais capazes de atender partos de baixo risco. Além disso, as casas de parto desafogam maternidades que poderiam estar priorizando o atendimento para as mulheres de alto risco.

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(Jess Vieira/Ilustração)

Mulheres que cuidam de mulheres

As obstetrizes são uma nova categoria criada justamente para aumentar a capacidade de realizar partos naturais em um país onde só 15% dos nascimentos foram assistidos por estes profissionais, incluindo as enfermeiras obstetras, e em que quase um milhão de mulheres são submetidas a cesárias sem necessidade todos os anos. No entanto, o único curso de obstetrícia no Brasil é feito pela Universidade de São Paulo. 

Formada na primeira turma da USP, em 2008, Bianca Zorzam idealizou junto à Casa Angela um inédito trabalho dedicado à construção de uma rede de apoio virtual (24 horas) às adolescentes. O Projeto Vínculos inovou ao criar um sistema de abordagem em que as jovens se sentem mais à vontade para falar de suas dúvidas através de grupos de Whatsapp.

“A iniciativa abre um ambiente de diálogo que destrava resistências e possibilita uma melhor compreensão da realidade vivida pelas adolescentes. Em meio a um universo em que os problemas passam por relações abusivas, vulnerabilidade social, racismo e abandono dos estudos por falta de apoio, o projeto permite uma articulação mais efetiva ao acesso das jovens ao pré-natal da rede pública e também a outros serviços como a defensoria pública e grupos ativistas em favor dos direitos das mulheres”, explica Bianca.

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“Em meio a um universo em que os problemas passam por relações abusivas, vulnerabilidade social, racismo e abandono dos estudos por falta de apoio, o Projeto Vínculos permite uma articulação mais efetiva ao acesso das jovens ao pré-natal da rede pública”

Bianca Zorzam
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(Bianca Zorzan/Arquivo)

Em Belo Horizonte, o hospital filantrópico Sofia Feldman é outra referência de parto humanizado no Brasil. Apesar de ser uma maternidade de alto risco e possuir a maior UTI neonatal do país em número de leitos e internações de bebês com problemas complicados, a taxa de cesárias em 2021 foi de 29% em 11.200 partos previstos.  A Organização Mundial de Saúde recomenda aos países o percentual geral de cesárias em 15%, incluindo maternidades de baixo risco, casas de parto e maternidades de alta complexidade. No Brasil a taxa nacional é de 52% e, nos hospitais particulares, passa dos 88%, chegando a 100% em alguns locais.

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Diretor Clínico do Sofia Feldman, o médico obstetra Dr. João Batista de Castro Lima, não desconversa ao apontar o motivo da resistência no avanço de uma política pública que favoreça o parto natural. “O padrão hegemônico adotado no Brasil é um modelo médico, tecnocrático e intervencionista. Esse modelo tem força econômica e, consequentemente, força política. Ninguém vai abrir mão com facilidade, mesmo com as diretrizes internacionais apontando que é um modelo prejudicial para a população. O médico agenda uma cesariana e em 30 minutos tá resolvido. Uma gestante fica 12 horas em trabalho de parto. E quem vai acompanhar essa mulher se for respeitar a sua fisiologia? A enfermagem obstétrica tem mais preparo para dar esse suporte”.

Em Salvador, quando o assunto é a mulher negra periférica e seu papel de destaque no ato do nascimento, a Coletiva Doulas Pretas, composta por doulas e enfermeiras obstétricas, age para que o protagonismo seja dado tanto a gestante quanto a profissional de saúde que irá atendê-la. Fundado em 2019, Chenia d’Anunciação, Sueide Ferreira e Hundira Cunha se puseram a ensinar e formar mulheres negras pelo Brasil para o enfrentamento do racismo estrutural dentro do cenário obstétrico.

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(Coletivo Doulas Pretas/Arquivo)
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As ilustrações que acompanham a matéria são de Jess Vieira, veja mais de seu trabalho aqui

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