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Ser LGBTQIAP+ na Copa é a partida mais difícil

Às vésperas do fim do evento, fizemos balanço dos momentos que evidenciam a homofobia no Catar e conversamos com quem viveu isso de perto

por Beatriz Lourenço e Alexandre Makhlouf Atualizado em 16 dez 2022, 10h50 - Publicado em 16 dez 2022 09h59

A Copa do Mundo é um evento que une culturas de diversos países ao redor do globo. O momento – um misto de celebração e festa – é essencial para o desenvolvimento econômico e para a diplomacia entre países do mundo inteiro. É por isso que, assim que o Catar foi anunciado como sede da competição, as polêmicas começaram. 

Não à toa: informações sobre violações dos direitos humanos vieram à tona e surpreenderam o mundo todo. Acontece que o país criminaliza a homossexualidade, o que deixa torcedores, jogadores e a própria população vulneráveis a violências – este ano, espera-se que mais de 1,2 milhão de torcedores internacionais visitem o local.

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(arte/Redação)

O código penal do país pune relações sexuais consensuais entre homens maiores de 16 anos com até 7 anos de prisão. Além disso, qualquer homem que “instigue” ou “estimule” outro homem a “cometer um ato de sodomia ou imoralidade” pode cumprir pena de até três anos. 

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Nas redes sociais, um pôster mostrando condutas proibidas chegou a circular. Álcool e demonstrações de afeto em público também estão na lista. Apesar de não ser oficial, a mensagem comunicou aos estrangeiros as regras de etiqueta do país.

Reações

No dia 7 de novembro, o embaixador Khalid Salman, embaixador da Copa, afirmou que a homossexualidade era um “dano mental” e um “haram”, pecado na lei islâmica. Segundo ele, a presença de torcedores LGBTQIA+ seria tolerada durante o torneio, mas ponderou que os turistas “têm que respeitar” as regras do emirado.  

Em seguida, um porta-voz da Fifa afirmou estar confiante de que todas as medidas necessárias serão tomadas para proteger esses torcedores e que o ambiente é acolhedor e seguro para todos. No entanto, ativistas do grupo All Out protestaram no dia seguinte em frente à sede da Fifa, em Zurique, na Suíça. O ato reuniu dezenas de pessoas com o objetivo de assegurar que a Fifa e o Catar saibam que o mundo está de olho e espera uma ação da entidade. 

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(Arte/Redação)

Antes de começar a competição, os capitães da Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Holanda, Suíça, Alemanha e Dinamarca planejavam usar braçadeiras coloridas com o tema “OneLove” (“um só amor”, em tradução livre). Lançadas em 2020, elas fazem parte de uma campanha de inclusão da Real Associação de Futebol dos Países Baixos (KNVB) que atua contra todas as formas de discriminação. No logotipo, é possível ver uma bandeira de arco-íris em forma de coração com o número um no meio, cercada pelo texto.

Porém, os times foram ameaçados pela Fifa com punições disciplinares, inclusive com cartões amarelos. Alguns torcedores também reclamaram após serem impedidos de entrar nos estádios com itens com as cores do arco-íris. No entanto a ministra do Interior da Alemanha, a social-democrata Nancy Faeser, fez uma espécie de protesto silencioso ao usar o acessório enquanto acompanhava a estreia da seleção do seu país contra o Japão. Em suas redes sociais, ela ainda publicou uma foto usando a braçadeira.

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No último dia 29, o italiano Mario Ferri, de 35 anos, invadiu o campo durante uma partida vestindo uma bandeira com as cores do arco-íris e uma camiseta com os dizeres “respeito às mulheres iranianas” na parte da frente e “salvem a Ucrânia” nas costas. Ele percorreu o estádio Lusail durante 30 segundos no segundo tempo da partida entre Portugal e Uruguai, antes de ser agarrado e retirado pelos seguranças. O Ministério do Exterior da Itália declarou que o homem foi liberado após ficar um breve período preso, mas anunciou que seu cartão oficial de acesso aos estádios do Catar foi cancelado.

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O jornalista esportivo Grant Wahl também foi barrado de entrar em um jogo dos Estados Unidos, seu país de origem, porque usava uma camisa com um arco-íris. “Um segurança se recusou a me deixar entrar no estádio para EUA x País de Gales. Você tem que trocar de camisa. Não é permitido”, publicou Grant em suas redes sociais.

Em contrapartida, esta Copa contou com um pequeno, mas significativo, avanço para as mulheres: a francesa Stéphanie Frappart se tornou a primeira árbitra a comandar uma partida masculina. Ao lado das assistentes Neuza Back, do Brasil, e Karen Diaz, do México, ela fez parte de um trio de arbitragem que atuou no jogo entre Costa Rica x Alemanha do Grupo E.

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(Arte/Redação)

Mais do que relatar e compilar aqui os melhores-piores-momentos dessa Copa do Mundo em relação aos direitos LGBTQIAP+, algo que nos é tão precioso e debatido na Elástica, ouvimos quem faz parte da sigla e foi até o Catar para trabalhar ou curtir o evento. Abaixo, compartilhamos os depoimentos na íntegra, que são recheados de emoções, de privações e de aprendizados.

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(Pedro Egger/Arquivo)

Pedro Egger, 36 anos, carioca que mora em São Paulo, produtor de eventos e, na Copa do Catar, coordenador de entretenimento da empresa responsável pela ​​hospitalidade oficial do evento. 

Quando você recebeu a notícia que você trabalharia na Copa do Mundo do Catar, como se sentiu?
Eu até me emociono de falar. É bizarro, né? Eu, que vim do Rio e hoje moro em São Paulo, lugares em que lutamos pela nossa liberdade, me choquei ao vir para um lugar que opera dessa forma, um caminho tão diferente do nosso. Quando teve aquela entrevista do sheik, embaixador da Copa do Catar, em que ele disse que pessoas LGBTQIAP+ têm problemas mentais, aquilo me quebrou [chora]. É muito difícil estar num lugar prestando serviço para uma galera que acha que você tem problema mental. No meu ponto de vista, os problemas quem têm são eles, que fazem as mulheres se esconderem para os homens serem mais livres e pensam esse tipo de coisa.

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(Pedro Egger/Arquivo)

E como foi, até agora, esse tempo por aí? Sofreu algum tipo de preconceito, sentiu o peso disso no dia a dia?
Não, não senti. Até porque eu preparei uma mala com roupas “menos ousadas”. Eu me adequei, tentei me encaixar na cultura do país. E, cara, sobrevivi. Tá acabando… [suspiro] Não passei por nada e não conheci ninguém que tenha sido alvo. Tenho amigos aqui que são até mais afeminados, bichas bichérrimas, como a gente diz. O que eu vi na rua e que é realmente assustador é o tipo de tratamento que eles dão a pessoas bêbadas, mulheres que ficam paradas na rua… Aí sim é mais assustador. Mas, comigo mesmo, graças a Deus não aconteceu nada. Dentro da minha equipe e no lugar que trabalho, todos sabem que sou gay, mas, com os cataris, tive que manter isso em segredo.

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“Quando o embaixador da Copa, Khalid Salman, disse que pessoas LGBTQIAP+ têm problemas mentais, aquilo me quebrou. É muito difícil estar num lugar prestando serviço para uma galera que acha que você tem problema mental. No meu ponto de vista, os problemas quem têm são eles”

Pedro Egger
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(Pedro Egger/Arquivo)

Sentiu-se confortável nos momentos de lazer que você teve?
Sim, me senti, porque nas horas de lazer você vai para áreas consideradas internacionais: hotéis, que vendem álcool, ou para beach clubs – as praias aqui são pagas. A praia do centro, por exemplo, onde a família real costuma ir, também tem entrada restrita e demandam o uso de roupas que cobrem todo o corpo. Nas praias consideradas internacionais, pode usar sunga e biquíni. Então, onde eu procurei o meu lazer, não tive problemas. Mas, quando você vai no mercado municipal daqui, por exemplo, eles não gostam que você saia no fundo das fotos. Ouvi histórias de meninas que levaram bolsadas de mulheres muçulmanas em shoppings pelo jeito que estavam vestidas.

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(Pedro Egger/Arquivo)

Agora que a Copa está acabando, qual balanço você faz dessa experiência?
Que loucura, foram quase dois meses aqui. O que eu tenho para falar é que não foi fácil, principalmente no começo, porque é nítido que a gente não é bem-vindo. É um país muito preconceituoso e muito fechado. Os cataris têm muito dinheiro e é uma relação de submissão muito doida pra gente. Eu vi, por exemplo, a pessoa que limpa os banheiros públicos limpando a barra da roupa de um cara. É extremamente patriarcal, o homem manda em tudo e as mulheres ficam cobertas para não despertar atração – e se despertar, é culpa dela. Foi louco entender tudo isso e, principalmente, ouvir que a gente tem que respeitar. Para mim, foi construtivo, mas olha tudo que a gente passa, como que a gente vai respeitar isso? Eu senti que vivi dois meses num tipo de prisão, mas foi também um tipo de retiro. Precisei colocar na minha cabeça que tinha data para acabar. Apesar disso, foi uma experiência legal. Ainda que tenha sido uma Copa para homens, só vieram homens das outras nacionalidades, é bonito ver o quanto o Brasil é bem-vindo, ver indianos, paquistaneses torcendo pra gente. 

“Viver uma cultura oposto ao que a gente vive, ao nosso Carnaval e às nossas festas tradicionais, é uma loucura, mas é um aprendizado. A cidade aqui é uma grande Alphaville, cheia de prédios espelhados e muita segregação. Enfim, cafona”

Pedro Egger

O modo de trabalho internacional também é louco de ver. No Brasil, a gente trabalha com muito mais excelência, estamos à frente, nossa entrega é muito superior. Como eu vim para trabalhar, é isso que eu levo. A gente sabe trabalhar e faz isso muito bem.

Viver uma cultura oposto ao que a gente vive, ao nosso Carnaval e às nossas festas tradicionais, é uma loucura, mas é um aprendizado. A cidade aqui é uma grande Alphaville, cheia de prédios espelhados e muita segregação. Enfim, cafona. A mulherada usa as bolsas e os sapatos mais caros, porque é tudo que elas podem mostrar, e é um bom lugar para comprar eletrônicos. 

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(Pedro Egger/Arquivo)
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