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O professor tá on. E de batom

Danilo Carreiro encarna a drag queen Dimitra Vulcana para falar de política no YouTube, Telegram, Twitch, Instagram e onde mais puder ocupar

por João Varella Atualizado em 11 jun 2021, 11h44 - Publicado em 11 jun 2021 00h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

em desgrudar os olhos do celular, a drag queen Dimitra Vulcana ficava diante de uma câmera que transmitia ao vivo na Twitch. Trajando um boné vermelho com forro arco-íris e as letras LGBT, a protagonista da live estava elétrica. “Gente da Twitch, desculpe, estou brigando com as pessoas do Instagram agora”, dizia. Ela também estava online, pelo celular, na outra rede social, indignada com comentários de extremistas.

Era 7 de abril. Vulcana acompanhava uma ação de remoção contra os moradores da Ocupação CCBB, no Setor de Clubes Esportivos Sul de Brasília. Instava seus espectadores a protestar contra o despejo e a prisão de manifestantes. Se manejar Instagram e Twitch ao vivo simultaneamente deixaria muita gente desnorteada, ela também gritava no Twitter. Fez mais de 30 postagens na data, sendo 19 só sobre a Ocupação CCBB, acima de sua média de dez tuítes diários.


Foi um dia atípico. É comum entrar na Twitch de Vulcana, conhecida como Doutora Drag, e se deparar com um rosto sério, quase um carão, e um cronômetro. Com fundo musical eletrônico tranquilo, sua expressão é compenetrada… com uma pitada de pose, talvez? Assim são os sprints de concentração que ela promove, para ela e seus seguidores produzirem alguma coisa – qualquer coisa – com foco.

Não para por aí, a Doutora Drag ainda tem lenha para queimar. Ela também toca um canal no YouTube para falar de questões políticas com viés de esquerda. Sempre permitindo transbordar emoções, oposto aos vulcanos, a raça alienígena de Star Trek referenciada no sobrenome de Dimitra.

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Destrua o patrimônio público e privado

A versão em podcast conta com uma vinheta que põe a ex-presidente Dilma Rousseff dizendo “destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros”. São trechos de um pronunciamento da então mandatária diante dos protestos de 2013. O corte omite que a frase começa com “o governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio…”. Convenhamos, nos tempos atuais, a fala editada soa razoável.

Seja no vídeo ou no áudio, a drag ministra aulas sobre temas complexos. Passa por pensadores como Karl Marx (chamado de “Carlinhos Marx”), Mark Fisher, Angela Davis e Jamie Woodcock – este último esteve por aqui na Elástica. Faz isso montada, perturbando a solenidade associada aos professores acadêmicos.

Tem ainda grupo de leituras de obras marxistas no Telegram, comunidade no Discord… nomeie uma rede social, Doutora Drag provavelmente está lá. Quem dá carne e ossos à onipresença de Dimitra é o doutor em ciências da saúde Danilo Carreiro, 33 anos, bailarino, professor federal e bicha.

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Aquilo que você é

“Bicha” é o termo adotado pelo próprio Carreiro para se descrever. O vocábulo era usado por colegas de escola para atacar Carreiro. “É uma palavra que dá muito medo, porque você é essa palavra. Como lidar com isso?”, diz ele, que descreveu ter aparência andrógina na época. A barba, que nunca sai do seu rosto, ajudou a firmar sua identidade, conforme relatou em programas antigos.

Sem a carga pejorativa de outrora, Dan, como é chamado pelos amigos, vê a identidade bicha como algo que vai além do gay. “É abrasileirada, tem significado forte”, afirma Carreiro, que mora em Montes Claros, no norte de Minas Gerais.


“Eu não estava em uma fase muito boa da vida em termos de saúde mental na época do doutorado, tive a ideia de fazer um podcast após ouvir um episódio do Anticast. Pensei que podia fazer um podcast com pautas LGBTs”

A jornada de discussões virtuais e públicas de Carreiro começou antes do surgimento de Dimitra, com o podcast HQ da Vida. Nele, LGBTs como Aninha de Paula, João W. Nery e Sidney Andrade contavam sua trajetória, escancarando angústias particulares que ressoavam entre pares. O próprio Carreiro se abria no programa. “Eu queria ter tido um pai mais delicado, mais feminino, mais empático”, disse ele no sétimo episódio. “Essa postura que os pais impõem na gente, no meu caso, fez com que eu me afastasse do meu pai”.

Faltou, porém, um convidado no HQ da Vida: o próprio Dan. Elástica disparou para ele as perguntas típicas do programa.

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(Colagem/Ilustração/Redação)

Os podcasts antigos começavam com a mesma pergunta e é essa questão que eu te faço: Quem é você na fila do pão?
Então, na fila do pão, eu já guardo dois lugares [risos]. Dan Carreiro é professor do interior de Minas Gerais, dou aula em escola pública. Tenho graduação em Administração. Fiz uma trajetória interdisciplinar na vida acadêmica, uma pós-graduação lato sensu na área da educação. Sempre soube que seria professor. Fiz Letras com especialização Inglês, mas parei quando minha mãe faleceu. Comecei a fazer Administração por pragmatismo, por uma questão de empregabilidade. Depois fui para a área das ciências da saúde, onde fiz meu mestrado e doutorado porque na minha região só tinha essas opções. Isso aconteceu pela minha história familiar: perdi minha mãe com 18 anos. Eu tinha um irmão de 15 anos e uma irmã de sete – a guarda deles ficou comigo. Eles têm pais diferentes, só que eu não tive suporte de nenhum deles. Tive que virar pai, mãe, irmão… várias figuras ao mesmo tempo. Não tinha como fazer um doutorado em outra cidade, tinha uma irmã adolescente. E adolescência é uma fase muito peculiar [risos]. Eu não estava em uma fase muito boa da vida em termos de saúde mental na época do doutorado, tive a ideia de fazer um podcast após ouvir um episódio do Anticast. Pensei que podia fazer um podcast com pautas LGBTs. Assim começa a nascer essa ideia de produção de conteúdo e essa sensação de mover, né?

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E aí vem a Dimitra, segunda figura na fila do pão.
Eu participava de um podcast coletivo e a gente, por brincadeira, performava. Cada um tinha um nome drag. E aí nasce a Dimitra, em 2017. Percebi um potencial nela. No Carnaval, eu saí para brincar com a Dimitra e não parei mais. Penso na Dimitra como ferramenta. Vi esse potencial, mas ainda não explorava. Ia em alguns eventos, fazia uns ensaios. Em 2018, decidi montar o canal. O contexto da política brasileira me levou a lançar o canal, entre o primeiro e o segundo turno, abordando coisas do doutorado, que eu estava finalizando.

A segunda pergunta no HQ da Vida versava sobre as descobertas da infância e adolescência. Quais foram as suas?
O LGBT tem vários despertares, tem que desbravar o mundo para se ver nele. Quando a pessoa é heterossexual, cisgênera, branca, o mundo está formatado e conformado para ela, não precisam acordar e falar “oi, descobri que sou hétero, descobri que sou cisgênero”. Nós, LGBTs, precisamos traçar essa jornada. Gosto de pensar na identidade bicha, que vai além do gay. Ela é bem abrasileirada, tem um significado forte. Antes de saber que eu era gay, que eu era bicha, as pessoas já apontavam para mim.


“Eu saí do armário com 15 anos, fui encontrando, tateando o mundo, sempre desafiando os espaços que eu estava. A mesma coisa se dá com a Dimitra, que é uma performance associada à cultura LGBT. Quando eu me montei pela primeira vez eu me apaixonei”

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Apontamentos pejorativos, certo?
Sim. É uma palavra que dá muito medo, porque você é aquela palavra. Como lidar com isso? Eu saí do armário com 15 anos, fui encontrando, tateando o mundo, sempre desafiando os espaços que eu estava. A mesma coisa se dá com a Dimitra, que é uma performance associada à cultura LGBT. Quando me montei pela primeira vez, eu me apaixonei. Foi uma sensação maravilhosa, mas ao mesmo tempo de muito, mas muito medo.

Como foi conviver com esse receio no carnaval?
Foi tenso. Demorei a me soltar. Sou uma pessoa ansiosa, fiquei num estado de alerta. Foi um desafio, mas também foi um potencializador. Nesse processo, mesmo próprio de produção de conteúdo, eu fui me politizando porque assim a gente precisa se moldar para se entender quem é no mundo. O segundo despertar de entender a minha homossexualidade é também o despertar político. O que eu sou e que agência posso ter nesse mundo que não está conformado para mim. Não está pronto e não está receptivo. A partir disso, comecei a agir em coletivos e uma coisa foi levando à outra.

A receptividade escolar evoluiu comparada com o seu tempo?
Dou aula para uma galera do ensino médio. É outro mundo ver meus alunos gays e lésbicas super tranquilos. Sou presidente do núcleo de estudos e pesquisas de gênero e sexualidade. Os alunos falam, é uma dinâmica que gosto de fazer com a psicóloga da escola. Por mais que falemos de abraçar, de afeto, é algo que pode ser pesado. Na escola, a vida é tranquila, tenho alunos que até brincam que estão sendo heterofóbicos. Mas temos um problema entre professores, servidores e pais. Eu, enquanto professor, já sofri homofobia velada.

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(Colagem/Ilustração/Redação)

O que aconteceu?
Um dia, por exemplo, estava com um livro sobre a história do movimento LGBT no Brasil. Esqueci ele na sala dos professores. Os professores estavam rindo pelas minhas costas, fazendo piadinhas de cunho homofóbico e tudo o mais. Fiz um texto para meus colegas. São coisas que [as pessoas] não fazem diretamente até por questões legais. Mas a escola continua sendo esse espaço de disputa. São professores que, por não conhecer essas questões e não lidar com elas, nunca pararam para pensar e rever essas posturas.

E no seu tempo de aluno, como era?
No ensino médio, eu tinha uma professora que era evangélica progressista. Ela dava esse acolhimento, mas sem dar nomes às coisas. Inclusive, ela me motivou a ir para Letras, era professora de português. Sempre tive professoras que me davam um acolhimento e uma certa sensação de estar tudo bem em ser quem sou. Na graduação, tive uma amiga que me acolheu muito, inclusive ela me colocou para ouvir podcast. Nunca tive professores LGBTs que poderiam ser um espelho.

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Você também dançava nessa época, certo?
O ballet começou na adolescência, com 14 ou 15 anos. Fui até os 18 anos. Já tive o sonho de ser bailarino profissional. Aí parei. Voltei aos 28 anos, quando estava com a vida organizada. Eu fiquei dos 14 aos 18 e dos 28 aos 30 e pandemia [risos], basicamente por aí. Tenho dançado também com um ex-colega de ballet, ele é professor também. Ligamos a câmera no WhatsApp e dançamos.


Como foi sair do seu primeiro armário nessa época?
Minha adolescência foi uma época de muito embate com a minha mãe. Ela culpava o ballet. Mas chegou um tempo em que ela começou a compreender. Ela brigava, mas assistia os espetáculos. Ia emburrada, com a cara fechada, mas ia. Tínhamos uma personalidade muito parecida. Ela começou a me aceitar no ballet. Os últimos seis meses da vida dela foram muito interessantes. Consegui ter esse pedacinho de acolhimento que nem sempre uma pessoa LGBT tem. Um tempo muito bonito, muito gostoso. Lembro da semana que ela teve uma parada cardíaca e eu não estava bem. Fiquei em casa, assistimos filmes, comemos cachorro-quente, pastel. Ela hoje teria que continuar aprendendo, não sei como reagiria, mas no mínimo estaríamos brigando para ela entender.

Seu pai não deu suporte depois que sua mãe se foi. Você chegou a pedir ajuda?
Tínhamos um contato interessante. Após a morte da minha mãe, ele começou a ser um pouco mais presente. Quebramos esse contato quando eu casei. Ele vinha ocasionalmente e pronto, era meio assim. Eu também sem muita paciência, segui a vida.

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(Dimitra Vulcana/Arquivo)

A Dimitra nunca deu uma aula no lugar do Danilo?
Não. Só se fosse em um evento ou coisa assim, sabe? Por não ver um propósito ferramental para isso [dar aula como Dimitra]. Por exemplo, vai ter um evento, vamos falar sobre gênero e sexualidade talvez seja interessante para as pessoas entenderem o que é drag, o que é identidade de gênero, como é a sigla LGBTQIAP+.

Você diz em seus programas não ter nascido full comunista. Como começou essa caminhada?
Comecei a ler Nancy Fraser, lembro de um artigo sobre o reconhecimento à redistribuição. Ela faz reflexões sobre o movimento LGBT. Fiz um texto em 2019 sobre hiper representatividade vazia, uma nova formatação do capitalismo como um todo. Isso foi me levando a outras pensadoras como Angela Davis, Sabrina Fernandes, que conheci em um evento em 2018 e é uma das pessoas que me ajudou a montar meu canal. Comecei a ler uma miríade de pensadoras. Tem um livro, o Feminismo para os 99%: um manifesto, que me toca muito, pois faz um apanhadão geral, um feminismo anticapitalista, anti lgbtfobia. Vou conhecendo outras pensadoras como Silvia Federici, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya, começo a conhecer militantes. Eu chego ao marxismo por esse acolhimento feminino. Se a gente parar para pensar, o Dia Internacional da Mulher é fruto de luta de mulheres, dentre elas estão Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin. E a partir daí que eu começo a me engajar no marxismo e a estudar. É uma tarefa militante que exige dedicação no campo do estudo e da prática.

A saída do armário político veio antes da Dimitra, então?
Existe um despertar político já nos primeiros podcasts, porém ligado à identidade. Durante os HQs, começa a surgir um despertar político e aí vem a Dimitra e tudo começa a se misturar. Olha como é interessante a questão da identidade visual. Se você olhar para o Hora Queer, ele é um podcast LGBT com uma identidade visual comunista, baseada no construtivismo com os triângulos, as cores. Se você olhar para o Doutora Drag, é um canal do YouTube marxista com identidade mais LGBT. É a fusão dos dois mundos.

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Por que drag queens chamam tanto a atenção?
Ao ver uma drag queen de salto alto e toda paramentada, acaba que as pessoas param para poder entender e compreender o que está acontecendo. Ainda mais que a minha drag queen tem barba, nunca tirei para fazer a drag queen. Sabe aqueles senhores que ficam jogando dominó na praça? Uma vez, a gente estava num vira voto e eles pararam para perguntar e entender. Tem um interesse de entender a mistura de signos. Ah, tá, então você está vendo uma figura feminina, mas essa figura feminina está com barba… por que não tira a barba logo? Aí começa a bagunça.


“Minha adolescência foi uma época de muito embate com a minha mãe. Ela culpava o ballet. Mas chegou um tempo em que ela começou a compreender. Ela brigava, mas assistia os espetáculos. Ia emburrada, com a cara fechada, mas ia”

Nos primeiros programas, você declarava ter uma audiência de 50 pessoas ouvindo o podcast…
Provavelmente os amigos para quem eu enviava o programa no WhatsApp.

E hoje, há quantos ouvintes?
Chegamos a ter 20 mil downloads. Depois da pandemia, os podcasts tiveram uma baixa de audiência e agora voltou a recuperar. Eu sinto que no podcast a audiência é mais estacionada, mas no YouTube eu vejo um crescimento meio que devagar, mas existe um andamento e um crescimento no projeto.

Você menciona fazer tudo com prejuízo. Espera ficar no azul com o canal e o podcast?
Se fosse viver de conteúdo não conseguiria. As coisas vão andando. Hoje eu não almejo viver só de conteúdo. Mas queria que fosse um projeto grande o suficiente para pessoas trabalharem com isso.

Momento superpoder. O HQ da Vida sempre terminava perguntando qual seria o superpoder do entrevistado. Qual seria o seu?
Ah, que emoção, o HQ antigo… Meu superpoder seria com um toque, igual o Thanos [vilão das histórias da Marvel]. O Thanos fazia desaparecer, o meu seria tirar o véu da ideologia dominante, liberal. Todo mundo criaria uma consciência de classe, seria o raio desliberalizador.

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