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Em “Uma Ecologia Decolonial”, o ambientalista Malcom Ferdinand propõe repensar o globo a partir das colônias americanas

por Artur Tavares Atualizado em 15 ago 2022, 15h05 - Publicado em 12 ago 2022 10h27
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(Clube Lambada/Ilustração)

uando desembarcou em terras brasileiras em 1500, o navegador português Pero Vaz de Caminha cravou: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá!”. Oito anos antes, Cristovão Colombo chegava a outros territórios americanos, tirando mais ou menos as mesmas conclusões. Se moramos em países tropicais abençoados por Deus e bonitos por natureza, a verdade é que quem veio até aqui não estava interessado em sombra e água fresca, e sim em espremer nossas veias até elas se abrirem e secarem totalmente.

Cinco séculos depois, a colonização do continente americano nunca terminou totalmente. A grande maioria dos territórios daqui são independentes da Europa, é verdade, mas nossas economias e até nossas maneiras de pensar são totalmente fundamentadas no velho mundo. Enquanto eles enriqueceram – e continuam enriquecendo -, nossas terras estão cada vez mais repletas de sangue e conflitos sociais agudos causados pela violência sistemática, pela escravidão e pela exploração de corpos, mentes e territórios.

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(Benedicte Roscot/Fotografia)

Nascido na Martinica, uma ilha caribenha que ainda é território francês, o ambientalista Malcom Ferdinand acaba de lançar no Brasil seu livro “Uma Ecologia Decolonial”. Misturando história, antropologia e ciência, a publicação tenta propor ao planeta maneiras de superar o antropoceno aprendendo lições de escravizados que desembarcaram aqui nos navios negreiros e de culturas ancestrais que já viviam nestas terras.

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Mais do que salvar o planeta de uma catástrofe ambiental, o pesquisador afirma que pensar a ecologia hoje em dia é entender que os humanos não são organismos separados do planeta, e que essa conexão mais intrínseca com a natureza possibilitaria maior justiça e igualdade social.

Potente, a obra que sai pela editora Ubu é um manifesto que escancara que o hoje é apenas uma continuação de um passado que nunca foi superado. Ao levantar conceitos como o da “política do ciclone tropical”, Malcom mostra como o subdesenvolvimento das nações latino-americanas é desejado pelas metrópoles do norte global, e quando fala de governantes “sacrificadores”, mostra que os poderosos ainda tratam a sociedade como maquinário descartável cuja única função é gerar lucros. Esqueça ideologias, porque não se trata de direita ou esquerda, e sim de um verdadeiro nós contra eles que evoca a noção de aquilombamento como forma de libertação verdadeira.

“Acho que o importante é que as desigualdades e as relações de poder que existem antes da poluição são, muitas vezes, estruturais. No caso do Brasil, essas relações desiguais contra negros e indígenas são mantidas e até mesmo exacerbadas através da poluição”

Malcom, que também é professor e palestrante, conversou conosco sobre ecologia, economia, história e, porque não, sobre a nossa vida deste lado do Atlântico. Confira:

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No prólogo do livro, Angela Davis fala sobre como as populações negras e marginalizadas sofrem com a poluição ao redor do mundo. Aqui no Brasil, os indígenas sofrem com a devastação das florestas, mas todos nós somos afetados pela poluição e pela péssima condição do saneamento nos centros urbanos. Como a poluição em países de áreas continentais, como o Brasil, a China e a Índia, afetam não apenas suas próprias populações, mas o planeta inteiro?
Acho que o importante é que as desigualdades e as relações de poder que existem antes da poluição são, muitas vezes, estruturais. No caso do Brasil, essas relações desiguais contra negros e indígenas são mantidas e até mesmo exacerbadas através da poluição. Se todos os brasileiros e o resto do planeta são afetados pela poluição, nem todas as pessoas sofrem da mesma maneira, nem todas têm as mesmas possibilidades de mitigar, prevenir ou responder a essa poluição. Mas, como vivemos em um mesmo planeta, a poluição em um lugar acaba afetando todo o globo. Por exemplo: o desmatamento amazônico, realizado para produzir soja para alimentar o gado europeu, induz a poluição tanto no Brasil quanto na Europa.

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(Editora UBU/Reprodução)

Também durante o prólogo, e por toda a extensão do livro, você nota que há poucos encontros entre o ambientalismo, o decolonialismo e o antirracismo. É curioso notar que as populações indígenas sempre foram mais numerosas em convenções climáticas globais do que os negros, mas durante a COP 26 isso começou a mudar com a presença de uma série de movimentos civis negros participando e protestando. Houve alguma mudança no xadrez das relações internacionais?
Não acho que devemos opor as populações indígenas aos negros. Temos que lembrar que alguns indígenas são negros, ou pelo menos categorizados assim. Pense, por exemplo, nos inúmeros quilombos brasileiros ou nas milhares de comunidades africanas e no Oceano Índico. Também, há negros que devem ser considerados populações originárias. Portanto, a presença de uma audiência mais diversa na conferência climática é simbolicamente um sinal de boas vindas, mas também pode ser uma forma de tokenização. Caso seja apenas isso, não teremos ações concretas para reduzir as emissões de gases por parte das nações.

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(Editora UBU/Reprodução)

Os territórios ultramarinos europeus, como a Polinésia Francesa, são vendidos como belos cartões postais, lugares de preservação ecológica e de vida selvagem abundante, e também destinos turísticos para pouquíssimos. Como você observa, eles normalmente escondem devastação, militarização e desigualdade social. Como esses lugares paradisíacos podem contribuir para uma mudança na ecologia e no desenvolvimento econômico de todo o mundo?
Em primeiro lugar, esses lugares são parte de todo o mundo, então uma mudança neles é uma mudança em todo o mundo também. Simbolicamente, isso mostraria que existe uma outra maneira de habitar o planeta. Também, esses lugares foram tornados plantações extrativistas e minas para sustentar as economias europeias. Mudar essas economias significa subverter as maneiras que os centros europeus interagem com as antigas colônias, provendo um caminho para criar relações de igualdade e dignidade.

Ainda falando sobre lugares como a Polinésia Francesa ou as Antilhas, a luta colonial já está perdida? É possível alcançar a independência hoje, ou o último período de emancipação acabou após a Segunda Guerra Mundial?
Não. A luta decolonial nunca está perdida, é um processo contínuo e muito ativo até hoje, acontecendo em mobilizações políticas, intelectuais e sociais. Além disso, seria ingênuo acreditar que independência significa o sucesso de uma luta decolonial. Veja o exemplo brasileiro. O que a independência de Portugal significou para os escravizados e para os indígenas? A luta decolonial ainda está a todo vapor aí também.

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(Editora UBU/Reprodução)

Você fala do antropoceno branco, e isso me lembra do ativismo para a preservação da floresta amazônica. Grupos nacionais e internacionais querem ser atores que lideram as mudanças, enquanto nosso governo tenta vender a ideia errada de que apenas o desenvolvimento econômico pode salvar a região. Mas, no final do dia, ninguém quer deixar o lugar intocado e devolvê-lo para seus herdeiros autóctones. Existem maneiras de dar aos indígenas poder verdadeiro para impedir outra colonização travestida de preservação?
Coragem política a mobilização massiva. Essa resposta é difícil de dar rapidamente, ainda mais com a corrupção e com a militarização das multinacionais. Estamos vendo como os povos indígenas são colocados como alvos de homicídios, crimes, e tudo na intenção de causar medo e instituir a crença de que é impossível haver outra maneira. Acredito que temos que abraçar a coragem de lideranças que nos dão exemplo, muitas vezes sob o custo das próprias vidas, como Berta Cacéres e Marielle Franco, e também das comunidades indígenas e quilombolas que resistem há séculos. Acredito no poder das ações coletivas. Quando pessoas suficientes se engajarem na luta comum, grandes resultados acontecerão.

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Você usa uma metáfora que coloca a plantation como uma figura masculina misógina que se opõe à uma mãe Terra feminina. Se trouxermos esse mesmo paralelo para nossos dias, quais seriam essas figuras patriarcais? A extração de petróleo? A mineração? A utopia da colonização lunar e de outros planetas?
SIM! Mais do que uma metáfora, é uma continuação do mesmo processo. Assim, a colonização das Américas simplesmente criou as fundações para a colonização espacial.

“A colonização das Américas simplesmente criou as fundações para a colonização espacial”

Falando nisso, você acha que o capitalismo sempre será misógino e desconectado das relações ecológicas e espirituais, mesmo que hoje haja muitos líderes que se vendem hipocritamente como tementes a Deus?
O capitalismo, a escravidão e as igrejas católicas andaram de mãos dadas por pelo menos três séculos nas Américas. Os princípios do capitalismo implicam na exploração de “recursos” por nenhuma outra razão além da acumulação de lucro. Quando a sociedade é fundada em bases racistas e patriarcais, o capitalismo serve apenas para exacerbar essas relações e a violência.

Você menciona a política do ciclone colonial como algo metafórico e também literal que ajuda o chamado mundo desenvolvido a manter o controle do Sul Global. Podemos dizer que a covid-19 também é uma tempestade que devastou os países do terceiro mundo?
Sim! Infelizmente a covid-19 também reproduz os mesmos padrões das crises ecológicas.

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(Berrada/Fotografia)

Ainda falando sobre covid, o Brasil e os Estados Unidos são alguns dos países com mais mortes pela doença – em ambos os casos as mortes são bem definidas em perfis sociais e raciais. Bolsonaro, Trump e toda sua rede de seguidores na política e na economia podem ser considerados “sacrificadores”?
Sim. É uma ideologia política que implicitamente – no caso de Trump, explicitamente – legitima acabar com países pobres, cidadãos de baixa renda e pessoas de cor.

Enquanto aborda Thoreau e o aquilombamento, você diz que toda a sociedade é escrava quando a escravidão é praticada. Trazendo isso para os dias atuais, como a sociedade pode evitar o extremismo político e a destruição ambiental moderna já que somos altamente dependentes da tecnologia? É possível viver além deste mundo horrível?
Acho que é realmente muito difícil viver completamente fora deste mundo Mais problemático, não é uma proposição política viável para todo o mundo. É verdade que algumas experiências são valiosas, como as dos quilombos. No entanto, viver fora do mundo não muda radicalmente o mundo em si. Viver fora do mundo alterará a produção de tecnologia, e acho que isso causará uma mudança em quem depende da tecnologia, principalmente em quem depende do extrativismo, dentro do mundo.

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(Editora UBU/Reprodução)
Malcom Ferdinand, editora Ubu

Uma ecologia decolonial – Pensar a partir do mundo caribenho

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