Mulheres e LGBTQI+ de bike ou moto se articulam por melhores condições de trabalho em meio ao debate sobre os direitos dos entregadores no Brasil
por Heloisa AunAtualizado em 7 out 2020, 13h19 - Publicado em
7 out 2020
01h48
o início deste ano, a rotina do entregador e estudante Joaquim Renato era exaustiva e pouco vantajosa: muitas vezes, saía de casa às 9h e voltava por volta das 21h, tendo recebido apenas R$ 20 como pagamento por todas essas horas na bicicleta. A precarização o fez abandonar de vez a função de “colaborador” de grandes empresas de delivery. “É um trabalho muito incerto. Você começa o dia sem saber quanto irá lucrar e nem a que momento terá o primeiro pedido”, afirma. Hoje, não depende mais de um algoritmo para garantir seu sustento, pois se articulou com dois grupos que surgiram na contramão da lógica desumana dos aplicativos em São Paulo. Ele, que é homem trans, faz parte do TransEntrega, dedicado a pessoas trans e travestis, e do Señoritas Courier, coletivo de bike entrega com equipe composta somente por mulheres e LGBTQI+.
Esses projetos de entregas de bicicleta definem valores que passam longe daqueles exercidos por apps: responsabilidade social e ambiental. “Nossas vidas valem mais que o lucro deles”, dizia o cartaz pregado na mochila de um entregador durante o segundo Breque dos Apps, greve geral que mobilizou milhares de pessoas em diversas cidades pelo país para cobrar melhorias nas condições de trabalho dos profissionais, considerados “autônomos” na classificação das companhias. A realidade de quem depende do serviço para sustentar suas casas veio à tona junto com uma maior união de grupos, como o Entregadores Antifascistas e o Treta no Trampo, por direitos básicos.
“É um trabalho muito incerto. Você começa o dia sem saber quanto irá lucrar e nem a que momento terá o primeiro pedido”
Joaquim Renato
Segundo o SindiMotoSP (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxista Intermunicipal do Estado de São Paulo), o número de entregadores de aplicativos na capital paulista e Grande São Paulo cresceu ao menos 20% na pandemia em decorrência do desemprego. Os dados mostram que cerca de 280 mil profissionais com motos ou bicicletas trabalham na região. Ao mesmo tempo, a profissão considerada “serviço essencial” no país tornou-se mais letal. De acordo com o Infosiga, sistema que monitora acidentes de trânsito no estado, as mortes de motociclistas subiram 38% no mesmo período, embora o índice geral de acidentes tenha diminuído.
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As manifestações da categoria seguem desde junho e reivindicam uma série de mudanças. O Projeto de Lei (PL) 1665/2020, de autoria do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), que será votado pela Câmara dos Deputados, estabelece medidas como seguro contra acidentes e assistência financeira por afastamento devido à contaminação por Covid-19. Além disso, há dois projetos de lei em São Paulo, aprovados em primeira votação na Câmara Municipal, que propõem a criação de regras para os aplicativos, o PL 130/2019 e o PL 578/2019.
Enquanto não há segurança e garantias por parte do poder público, entregadores autônomos buscam sua própria rede de apoio para exercer a profissão de forma humana e benéfica, seja em coletivos ou de modo independente.
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Pedalar e pensar em coletivo
Instigado pelo desejo de não depender das empresas, Joaquim conheceu o Señoritas Courier pelo Instagram por conta de outro amigo, também homem trans, que fazia entregas no coletivo e é fundador do TransEntrega. Desde então, o estudante da Unifesp pedala diariamente até o centro de São Paulo no período da manhã, onde retira as entregas, e segue até as regiões determinadas pela logística. A ideia é pensar na rota de acordo com o local em que cada integrante mora para evitar percursos ainda mais longos de bicicleta. “Nem sempre há demanda para os lados da minha casa, na zona leste, mas tudo é feito para facilitar a dinâmica, pois pedalamos de 30 a 50 quilômetros todos os dias”, pontua.
O Señoritas representa mais do que relações respeitosas e éticas de trabalho para o rapaz. “Tenho aprendido demais com todas as pessoas. Aprendi, sobretudo, a trabalhar de outra forma, mais humanizada. Me reconheço e me sinto contemplado ao lado de mulheres e pessoas LGBTQI+”, destaca.
Aline Os, idealizadora e administradora do coletivo, conta que criou o projeto em 2018, antes do boom dos apps de delivery, com o objetivo de conscientizar a sociedade, a iniciativa privada e os trabalhadores que não é possível manter pessoas trabalhando em uma condição de exploração. Formada em artes plásticas, ela conciliava outros trabalhos com as entregas de bike desde 2015, e chegou a atuar em empresas. Mesmo nesses locais, tomou conhecimento de que não havia transparência no valor repassado aos bikers. “A gente achava que ganhava 50% do valor pago pelo cliente, quando, na verdade, era apenas de 30%”, lembra.
“Trabalhamos com uma taxa de 70% para a/o biker, repassado no mesmo dia, e 30% para o coletivo. Deste último valor, 25% são dedicados à parte administrativa e 5% para demais gastos, como compra de acessórios para as ‘señoritas’ e outras demandas, até mesmo uma cerveja bancada pela firma”
Aline Os
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O Señoritas já nasceu com o foco de tornar transparente a relação entre cliente e empresa, entre empresa e prestadora de serviço, e entre prestadora de serviço e cliente. Todo mundo sabe o quanto está sendo pago por cada entrega. “Trabalhamos com uma taxa de 70% para a/o biker, repassado no mesmo dia, e 30% para o coletivo. Deste último valor, 25% são dedicados à parte administrativa e 5% para demais gastos, como compra de acessórios para as ‘señoritas’ e outras demandas, até mesmo uma cerveja bancada pela firma”, revela. Entre os clientes atuais, há uma doceria, um bar e uma empresa de produtos de beleza.
Ao lançar o Señoritas, muitas pessoas questionaram Aline sobre a possibilidade de criar um aplicativo e ela logo percebeu que a demanda iria contra o que seu negócio colocava em primeiro plano. “Manter um app e ter uma área de marketing é caro, por isso, perderia o meu intuito. Não estaria mais falando de ciclomobilidade e da ciclologística, mas sim, de como ganhar dinheiro para manter toda essa estrutura”, explica.
Na época em que os aplicativos foram lançados, os entregadores, em sua maioria motoboys, conseguiam ter um salário mais justo ao final do mês. Mas, com o aumento da mão de obra, em consequência do desemprego e da pandemia, o algoritmo abaixou o preço pago por cada entrega. “O app repassa, em média, de R$ 0,50 a R$ 1,20 por km rodado. No Señoritas, uma biker trabalha de R$ 2,10 a R$ 2,50 o km rodado”, afirma.
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As “señoritas”, apelido dado a integrantes do coletivo, têm uma diversidade grande de perfis: há mecânicas, artistas, ciclistas, professoras e imigrantes. O trabalho é construído de forma horizontal e compartilhada. Hoje, são 51 pessoas cadastradas no Señoritas Courier, sendo que 18 fazem entregas constantes e outras 12 esporádicas, porque mantêm outros empregos. Porém, não há demanda sempre para todas. “Como um coletivo informal, muitas empresas têm receio de nos chamar, por isso, temos muita ociosidade. E eu procuro firmar parcerias com companhias que prezam pelo consumo consciente”, diz.
Todo domingo acontecem as entregas agendadas de um cliente grande do projeto. Neste dia, são distribuídas as demandas da semana entre todos integrantes, que trabalham de acordo com sua disponibilidade e sem carga horária específica. Cada “señorita” chegou ao grupo a partir de indicações e passou por um processo de entrevista e treinamento para saber qual sua familiaridade em cima da bicicleta. “Ressaltamos muito a importância do uso de capacete e de se protegerem, pois qualquer coisa que venha a acontecer prejudica a todas e todos. Se você está em coletivo, precisa pensar e agir como coletivo.”
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O apoio ao Señoritas também ocorre por meio de doações de equipamentos, como bagageiros, e até de bicicletas feitas por instituições. No momento, há duas bikes reservas, apelidadas de Dilma, que comporta cargas maiores, e de Mafalda, usada quando alguma das integrantes tem algum problema. “Os nomes delas vêm de mulheres guerreiras”, reforça Aline.
A criadora da iniciativa não tem ideia do tamanho do impacto que o Señoritas causa, mas vê indícios em dados e na reação das pessoas quando conhecem o trabalho realizado. Apenas no mês de junho, os entregadores e entregadoras pedalaram mais de dois mil quilômetros em serviço, sem levar em conta o deslocamento até suas casas. Isso representa duas toneladas a menos de poluentes emitidos, o que beneficia toda a cidade. “A ciclologística é uma opção economicamente viável, uma vez que você diminui o trânsito e os prejuízos ao meio ambiente”, reitera. O grupo tem inspirado projetos em outras cidades e estados, que planejam reproduzir a lógica de horizontalidade nas entregas de bike.
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“O app repassa, em média, de R$ 0,50 a R$ 1,20 por km rodado. No Señoritas, uma biker trabalha de R$ 2,10 a R$ 2,50 o km rodado”
Aline Os
Aos 44 anos, Aline Os optou por continuar pedalando ao invés de dar aulas e ganhar um salário de professora, que é desvalorizado no Brasil. De família humilde, ela, como mulher negra, fez graduação e mestrado, com os quais acabou vivendo alguns privilégios, em especial o respeito por parte das pessoas. “Se não fosse isso, olhariam para mim e falariam apenas: ‘olha lá, mais uma pessoa negra fazendo entregas’”, explica. “A sociedade precisa passar a notar quem cuida de nós enquanto muitos estão isolados em casa, como entregadores e garis.”
Seu maior sonho? Que as “señoritas” possam voar cada vez mais alto. “Eu espero chegar num panorama em que tenha condições de pagar R$ 5 para cada biker por quilômetro. E terei orgulho disso porque o meu trabalho e de todas e todos estará sendo valorizado”, conclui.
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Motogirls por necessidade
Apesar de serem minoria, as mulheres estão cada vez mais presentes no volante como entregadoras, principalmente devido à perda de renda na pandemia. Este é o caso de Rozania Coelho, de 27 anos, que trabalhava como motogirl há dois anos, apenas nas horas vagas, pois tinha outro emprego. Com a quarentena, ela foi dispensada do restaurante em que estava e, por necessidade, teve de dedicar-se ao delivery. Nascida na Bahia, ela mora em São Paulo há 10 anos, cidade que conhece a cada dia mais durante seus trajetos sobre duas rodas.
A nova função lhe agradou tanto que Rozania pretende seguir com o serviço mesmo depois desse período. “Tem quatro meses que estou como motogirl e quero continuar. Não largaria essa profissão, ao menos por um tempo”, declara. Sobre os protestos iniciados em junho, ela ressalta que é a favor da articulação dos entregadores porque acredita que muita coisa tem que mudar em termos de direitos. “É uma atividade muito perigosa e deve sim ser mais valorizada, com recursos e suporte aos trabalhadores caso haja algum acidente, por exemplo”, pontua.
Já a motociclista Vanessa Teixeira, de 38 anos, vivia uma rotina intensa de artista até março. Conhecida como Negravat, ela acumula uma infinidade de funções e parcerias com outros famosos: é cantora lírica, atriz, locutora e percussionista, além de integrar o Ilú Obá De Min, bloco afro que reúne 450 mulheres na sexta-feira de Carnaval, tocando para os orixás pelas ruas do centro da capital paulista. Shows adiados ou cancelados, projetos parados e uma sensação na cabeça: “Eu vivo da arte. O que fazer agora?”.
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Sua reação inicial foi permanecer estática, situação que durou quatro meses, sem saber o que fazer para ter uma renda maior do que o auxílio emergencial que recebia. “Eu estava entrando de novo em depressão e sem a mínima ideia sobre o que fazer para mudar aquela situação”, reflete. A scooter guardada na garagem, a qual pilota desde 2011, representou uma luz no fim do túnel. “Comecei a fazer as entregas de moto em julho e, como tenho uma rede de apoio grande e conheço muitas pessoas, esse dinheiro tem me ajudado bastante.”
“É uma atividade muito perigosa e deve sim ser mais valorizada, com recursos e suporte aos trabalhadores caso haja algum acidente”
Rozania Coelho
Antes da Covid-19, Vanessa dirigia a moto apenas em trajetos curtos para melhorar a locomoção entre um evento e outro. “Nunca tinha cogitado trabalhar com entregas porque viver da arte para mim, mesmo que não seja financeiramente algo que me dê uma tranquilidade, é o que me guia”, relata.
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A artista decidiu não cadastrar-se em aplicativos de delivery por algumas razões, que se resumem ao fato de ser um trabalho explorador. “Andar de moto na cidade de São Paulo é muito arriscado, além dos gastos com gasolina e manutenção da moto. Em apps, eu teria que ficar muitas horas diárias e não ganharia um valor justo nessas corridas. É desonesto.”
Em seu aprendizado como autônoma, Negravat aconselha a colocar em um papel todos os gastos que você terá ao prestar um serviço para determinar o quanto é justo receber. E isso vai além dos valores usados com a moto neste momento, mas sim, sobre sua vida e segurança ao se colocar durante 10 horas no trânsito rodando a cidade. “Os aplicativos não pagam essas necessidades”, afirma.
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Embora continue na informalidade e tenha que lidar com a inconstância de clientes, ela considera importante esse ativismo em torno da nova função prestada. “As pessoas entram em contato comigo após serem indicadas por alguém que conheço ou pelas redes sociais. O boca a boca tem sido fortalecedor e é o que tem me ajudado. É nós por nós”, completa.
O que resta para Vanessa é lidar com a tensão diante de incertezas sobre sua vida artística profissional. “Por mais que já fosse autônoma enquanto musicista e cantora lírica, sem vínculo algum com instituições, o cenário é um pouco diferente, pois estamos em pandemia”, acrescenta. “Não tenho de onde tirar dinheiro se não for das entregas, não sei quando voltarei a atuar como artista e não tenho a quem recorrer”, finaliza.
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Pétala Lopes. Confira mais de seu trabalho aqui.
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