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Brincadeira, bicho!

O sucesso de Fall Guys mostra como os jogadores de videogame precisam de um pouco de leveza e menos espírito competitivo tóxico online

por Artur Tavares Atualizado em 21 ago 2020, 12h43 - Publicado em 21 ago 2020 01h39
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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

Por definição, todo mundo que joga videogame o faz porque procura um pouco de diversão. A rotina é extenuante, as horas de trabalho são cada vez mais longas e, principalmente agora que estamos em casa, desligar um pouco a mente e entrar em um mundo virtual faz bem para manter a sanidade. Nos últimos anos, porém, o fenômeno dos e-sports deixou o lazer em segundo plano, e colocou o cenário competitivo em evidência. Sucessos como League of Legends e Counter-Strike vieram acompanhados de toda a sorte de toxicidade: machismo, racismo, ofensas de classe, abuso de anfetaminas e outros estimulantes para melhorar o desempenho in-game, rage, trash talk. Se no ambiente da internet todo mundo pode falar o que quer sob a proteção do anonimato, nos games isso não é diferente, mas isso tem feito bem para a indústria em geral, e para os próprios players?

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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

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No início deste mês de agosto, um lançamento parece ter dado a clareza do quanto os players estão precisando de um respiro desse ambiente tóxico virtual. O divertidíssimo Fall Guys: Ultimate Knockdown foi dado gratuitamente para assinantes da Playstation Network e chegou também a preços módicos no Steam, para computador. Com uma premissa que lembra muito as saudosas Olimpíadas do Faustão, Fall Guys é uma viagem a um mundo psicodélico de bonequinhos fantasiados competindo em provas absurdas de corrida, agilidade e até de pega-pega, no melhor estilo “o último que sobrar ganha”. Cada competição começa com 60 jogadores, que vão sendo eliminados durante seis etapas aleatórias. Todos são indicados como Fall Guy e uma numeração – Fall Guy 1153, por exemplo, como eu –, o que já exclui a possibilidade de nicknames ridículos e ofensivos; não há chat, nenhum tipo de interação entre os jogadores.

Claro, trata-se de um game puxado para o humor, e por isso a “trollação” não está nessa interação entre sujeitos, mas sim entre personagens. Você pode empurrar outro Fall Guy para fora do mapa eliminando-o da competição, pode segurá-lo pela fantasia para atrasar sua corrida. Você pode até parar na frente da linha de chegada para impedir que outros competidores ultrapassem, correndo o risco de ficar de fora da próxima prova. Mas, faz parte do jogo, e é muito diferente de ver seu companheiro de time morrendo e abrir o chat para digitar “seu merda, você está me afundando!”.

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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

Sei bastante sobre toxicidade porque jogo League of Legends há pelo menos cinco anos – sem nunca ter sido muito bom, é verdade. Ao longo de todo esse tempo, já presenciei horrores dos mais diversos: abusos morais e sexuais, racismo, pessoas que entram no jogo com o único intuito de estragar a partida dos outros. Estou escrevendo esse texto com a memória fresca da noite anterior, em que um idiota ficou reclamando de um “favelado de internet lixo” que estava com problemas de conexão. Por que as pessoas são assim?

Se você fizer um pente fino nas equipes profissionais de qualquer jogo competitivo, de League of Legends, Counter-Strike, até Fifa e Fortnite, vai ver que a presença feminina e da comunidade LGBT é praticamente nula, principalmente aqui no Brasil. Essa galera não joga? Duvido muito. Claro, há o caso do Kami, que foi o primeiro player brasileiro de League of Legends a ter uma multa rescisória de mais de R$ 1 milhão no LoL. Ele é gay, mas nunca falou muito sobre isso, e ainda menos quando atuava no circuito de campeonatos. Mas ainda assim é uma raridade. A situação é tão ridícula que mulheres que jogam com personagens femininas pouco gostosonas são estigmatizadas como “menininhas”, enquanto os ditos machões adoram as mulheres fortes de decotes improváveis em uma batalha contra demônios abissais.

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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

Fall Guys, por outro lado, investe no anamorfismo dos personagens. Todos eles são iguais, diferentes apenas por suas fantasias customizáveis e divertidas. Você pode ser um pirata, um dinossauro, um cachorro-quente, uma batata frita. A padronização intencional é tanta que, na ocasião do lançamento, os desenvolvedores do game reforçaram no Twitter que todo Fall Guy tem a mesma altura, 1.83m. Aliás, outro ponto positivo é justamente a interação saudável entre a empresa por trás do jogo e os fãs na rede social, fomentando memes, streamers e players casuais.

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E se o tema aqui são jogos competitivos, vale lembrar que o ambiente tóxico no mundo dos jogos de videogame também está muito presente em outro gênero, o dos MMOs (Massive Multiplayer Online). Minha experiência recente com o relançamento da versão clássica de World of Warcraft, até hoje o game online mais bem-sucedido já feito, foi péssima. As fases mais difíceis da campanha envolvem a cooperação de 40 pessoas para funcionar, e na minha guilda havia uma garota. Em quase um ano jogando diariamente, ouvi a voz dela umas quatro vezes, sem exagero. E, claro, ouvi os mesmos relatos de assédio, só que os líderes do grupo não fizeram nada para punir os companheiros idiotas – pelo contrário, eram tão babões quanto. Depois de um tempo, me irritei com o pós-adolescente surtado no comando e decidi parar, mesmo sendo um dos players mais bem equipados do time.

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» LEIA MAIS: Falta de caráter interestelar é pano de fundo do game The Outer Worlds

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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

Com tudo isso, claro que Fall Guys atraiu toda uma comunidade de rejeitados dos videogames. Em um dia, mais de 2 milhões de pessoas em todo o mundo já haviam adquirido o jogo. Uma semana depois, já eram 10 milhões de pessoas. Nas plataformas de streaming, até o dia 13 de agosto, mais de 23 milhões de horas já haviam sido assistidas. Inclusive, os maiores streamers mundiais passaram a dedicar cada vez mais seu tempo ao jogo, provando o quanto eles próprios precisam de um respiro do seu cotidiano de toxicidade.

Em contrapartida, no último dia 19 de agosto, Fall Guys anunciou uma benfeitoria nunca antes vista no mundo dos games. Eles prometeram uma skin temática para o streamer que conseguir arrecadar mais dinheiro para a caridade. Em poucas horas, astros como Ninja, com mais de 6 milhões de seguidores no Twitter, deram lances superiores a 300 mil dólares, enquanto a equipe europeia G2 aumentou a jogada para 330 mil. A última vez que me lembro de ver uma campanha de arrecadação de um jogo online foi quando a Valve estava vendendo itens cosméticos de seus jogos para aumentar a fatia do bolo da premiação do campeonato mundial de DoTA 2, que ultrapassou 21 milhões de dólares. Mas, caridade? Nunca.

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É claro que a pressão de grupos progressistas também só tem aumentado no mundo dos games, e, neste ano, somente houve uma explosão de casos de expulsões de jogadores em plataformas de streaming – o que atingiu também Renan Bolsonaro, o quarto filho lixoso do nosso presidente, quando ele ironizou a gravidade da covid-19 no último mês de maio. Além dele, mais pessoas foram banidas por grosserias, machismo e outros assédios. Ao mesmo tempo, a LEC, liga europeia de League of Legends, sofreu um grande shaming da comunidade de jogadores e das próprias equipes após ter anunciado uma parceria com a NEOM, que é um projeto de cidade transnacional na fronteira ao noroeste da Arábia Saudita, bancada por grupos homofóbicos, machistas e religiosamente intolerantes. O patrocínio foi cancelado dias depois. No entanto, o mesmo não aconteceu com a Blast, que organiza competições de Counter Strike, e que manteve a parceria com a NEOM mesmo após sofrer repúdio generalizado.

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(Fall guys / Devolver/Reprodução)

Por tudo isso, Fall Guys tem tudo para se tornar uma franquia extremamente bem-sucedida da nova geração de videogames, uma coqueluche que provavelmente não é alcançada desde a criação dos pokémon. A possibilidade de exploração de seu universo é praticamente infinita, e logo devemos ver por aí outros tipos de jogos protagonizados pelos Guys, filmes, animações, seriados, pelúcias, roupas, doces… não duvido até que daqui a pouco apareça um comprimido de ecstasy no mercado ilegal com a forma dos personagens. E problema nenhum o jogo cair na graça do capitalismo, porque, pela primeira vez em muito tempo, seus valores são os mais decentes possíveis.

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