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O feminismo das mulheres de fé

Na contramão do fundamentalismo, evangélicas e católicas constroem a teologia feminista, questionando estruturas patriarcais e reivindicando direitos

por Bárbara Poerner Atualizado em 26 ago 2022, 11h29 - Publicado em 26 ago 2022 05h00

Simony dos Anjos diz que é “evangélica desde sempre”. Seus pais se conheceram na igreja. Mas “feminista” é um sufixo que ela começou a usar só depois, em meados de 2016. Ela faz parte da comunidade de mulheres que questionam as estruturas patriarcais e reivindicam pautas feministas à luz da religião cristã e dentro de suas igrejas, na esteira da teologia feminista. 

O posicionamento ainda é minoria nas instituições religiosas, mas isso não reprime sua articulação junto às outras evangélicas, como Camila Mantovani. Apesar do feminismo ainda ser amplamente rechaçado nos púlpitos, segundo ela, isso não impede a pauta de circular no dia a dia das igrejas, entre as fiéis sentadas nos bancos. “Tem a liderança religiosa, aquilo que é o serviço do patriarcado, e tem o que é a realidade da igreja e das pessoas que sustentam a base, que são inclusive mulheres. Isso coloca como necessidade de se fazer esses debates, que o banco faz, mas o púlpito não aceita”, afirma.

Em meados de 2016 e 2017, Camila ajudou a fundar o Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (FEPLA), em um momento no qual ela e outras mulheres feministas decidiram que precisavam “se articular enquanto evangélicas para mostrar politicamente que existe uma fé que se posiciona de outro jeito, e também porque existia um grande vácuo na realidade das igrejas em acolher as mulheres, porque mulheres evangélicas também abortam”, explica ela. 

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(fonte: DataFolha/Infográfico)

Ainda, existe uma “experiência de mobilidade”, segundo Simony, que faz com que muitas mulheres cristãs não se organizem necessariamente em movimentos religiosos, mas sim em movimentos sociais. “Em um país com mais de 80% da população cristã, não tem movimento social sem pessoas religiosas dessa matriz”, afirma a doutoranda em antropologia e integrante da Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Para ela, as pautas do feminismo podem aparecer por meio de mulheres pastoras ou em grupos paraclesiais. 

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O Brasil é, de fato, um país com maioria declaradamente cristã. Dados do Datafolha de 2020 mostram que são 50% de católicos e 31% de evangélicos, sendo que o último cresceu exponencialmente nas últimas décadas. Isso também significa que as igrejas e suas vertentes são diversas e plurais, mesmo que partilhem de diretrizes semelhantes. 

Desse contingente, mulheres e pessoas negras são a maioria  ​​– dentre católicos, mulheres são 51%; entre os evangélicos, são 58%. Contudo, elas são a minoria entre as lideranças religiosas “e raramente tem direito a voz, voto e ocupam os cargos de decisão”, explica Romi Márcia Bencke, pastora luterana, teológa feminista e a primeira secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil. “Muitas vezes, elas até estão em cargos da hierarquia, mas isso não significa que consigam desenvolver sua governança a partir da sua perspectiva; normalmente continua tudo patriarcal”, completa. 

São comuns encontros e núcleos de mulheres nos espaços religiosos, por exemplo, já que a igreja é um espaço de convivência para além do culto ou missa. Mas Romi afirma que isso não significa que sejam grupos que conseguem problematizar esse papel secundário que é dado pras mulheres nas igrejas. “Muitas vezes, falam em ‘teologia feminina’ justamente porque o termo feminista vem sendo desmantelado e invisibilizado publicamente há anos, não só pela igreja ou movimentos de direita, mas também por parte da ala progressista.”

“Muitas vezes, falam em ‘teologia feminina’ porque o termo feminista vem sendo desmantelado e invisibilizado publicamente há anos, não só pela igreja ou movimentos de direita, mas também por parte da ala progressista”

Romi Márcia Bencke 
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(intervençao sobre foto kiwihug/unsplash/Ilustração)

A teologia feminista

Romi explica que o berço da teologia feminista pode ser considerado os Estados Unidos no período de luta abolucionista, no século 19. À época, continua a teóloga, muitas mulheres, principalmente de tradições quaker, participavam ativamente da militância, mas não tinham direito a voz e participação. Isso gerou uma série de questionamentos, até que “Elizabeth Cady Stanton, uma das abolicionistas, reuniu outro grupo de mulheres conhecedoras da teologia, e elas começaram a traduzir a bíblia para as mulheres, sob suas perspectivas, analisando os conteúdos patriarcais”, acrescenta. “A partir disso, surge um movimento forte que começa a debater e mostrar uma perspectiva da opressão das mulheres e a legitimação disso por meio de versículos bíblicos”. 

Essa tradução, lançada em duas partes no final do século, foi nomeada de The Woman’s Bible (A Bíblia para as Mulheres, em tradução livre) e causou grande polêmica, sendo amplamente combatida. No Brasil, a versão em português chegou há poucos anos, conta Romi. Mas isso não impediu o desenvolvimento da teologia feminista aqui ou na América Latina. “Muito da teologia feminista latinoamericana passou a ser elaborada nos encontros ecumênicos”, continua a teóloga, que pontua que a vertente incidiu no Brasil no cristianismo, mas também pode aparecer em outras religiões monoteístas. 

Apesar das diferenças entre as igrejas católica e evangélica, Romi explica que ambas compartilham da “teologia patriarcal”. “A igreja católica sempre viu o feminismo como uma afronta. Porém, nesse tempo todo, talvez o caminho que algumas feministas encontraram para trazê-lo para dentro foi a teologia feminista”, analisa Letícia Rocha, cientista da religião e integrante do Católicas Pelo Direito de Decidir, organização que atua há mais de 20 anos pelos direitos das mulheres e laicidade do Estado em várias partes do mundo. 

Letícia teve contato com essa teologia e feminismo na época da faculdade, pelos escritos de Ivone Gebara, teóloga e freira brasileira que é uma das principais referências do tema. A cientista cita Mary Daly como outra expoente da vertente na década de 1960 – a filosofa e teóloga lésbica e norte-americada escreveu obras como A Igreja e O Segundo Sexo e Pala além de Deus o Pai

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A hermenêutica bíblica da teologia feminista é baseada na suspeita. Ou seja, “era isso mesmo o que se quis dizer? Qual foi o contexto? Qual o papel de cada personagem?”, explica Romi. É uma visão crítica em relação à imagem de Deus que foi construída e ao papel dado às mulheres. “Uma teologia patriarcal chama Deus sempre como ‘senhor’. A teologia feminista não dará esse atributo, mas sim que Deus é amoroso, justo. Imagina como é para uma mulher que ouve que Deus, o senhor, sabe tudo o que você faz?”, questiona. 

“Uma teologia patriarcal chama Deus sempre como ‘senhor’. A teologia feminista não dará esse atributo, mas sim que Deus é amoroso, justo. Imagina como é para uma mulher que ouve que Deus, o senhor, sabe tudo o que você faz?”

Romi Márcia Bencke 

Ela cursou “teologia feminista” durante sua graduação em teologia na Faculdade EST, no Rio Grande do Sul. Contudo, a disciplina quase não consta nos cursos de teologia no Brasil. Em faculdades tradicionais como a Pontifícia Universidade Católica (PUC) ou a Universidade Presbiteriana Mackenzie, ambas em São Paulo, não aparece nem como optativa. Além disso, mesmo valorizando a cadeira que ainda existe na EST, Romi avalia que “isso não significa que as pessoas vão mudar sua prática pastoral”. 

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(intervenção com foto Anna Shvets/Pexels/Ilustração)

Justiça reprodutiva

Lideranças e instituiçoes religiosas ainda instrumentalizam a religião, em especial a cristã, para defender a criminilização do aborto no Brasil. E, mais do que isso, perseguem feministas evangélicas ou católicas que se posicionam a favor da legalização. 

Em 2021, Romi sofreu ataques e perseguições virtuais no lançamento da Campanha da Fraternidade Ecumênica daquele ano, cujo lema foi “Fraternidade e diálogo: Compromisso de Amor”. Ela afirma que isso não a intimidou. “A gente precisa defender com unhas e dentes o direito que nós mulheres temos de pensar, e eu defendo meu direito de ter pensamento crítico”, acrescenta, manifestando também apoio à pastora Lusmarina Campos Garcia, que foi rechaçada após falar na audiência pública sobre a ADP F442, no último mês de agosto. 

Combate a violência contra a mulher, maternidade, acesso à creches e escolas: parecem assuntos mais acessíveis de serem abordados nas igrejas. Agora, a legalização do aborto causa tensão e divergência, diz Simony. Ela acredita que é porque versa o conceito de família cristã. Para a doutoranda, “abertamente essa mulher [evangélica] vai falar que é contra [o aborto], mas se uma mulher na igreja realizá-lo, vai haver uma rede de solidariedade”. 

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E é algo que, segundo ela, já acontece. Isso porque, só em 2019, o SUS registrou cerca de 195 mil internações por aborto, sendo que a cada 100, 99 foram de abortos espontâneos ou provocados. Quem tem uma visão semelhante é Camila. Por isso, uma das estratégias da FEPLA é dialogar primeiro sobre as mulheres e a bíblia, para então emendar a conversa sobre justiça reprodutiva e aborto legal. 

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Disputa política

Simony diz que “os direitos reprodutivos das mulheres, por estarem na pauta moral da igreja, vão ser os primeiros a serem atacados e os primeiros a serem desvirtuados”. “Damares [Alves] dizer que mulheres eram estupradas porque não usavam calcinha é desvirtuar o estupro. Os direitos reprodutivos são essa ferramenta para criar essa visibilidade”, avalia. 

Damares foi ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro, que acentuou o desmonte dos direitos das mulheres, segundo um estudo recente do Instituto Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Embora em 2018 o presidente tenha angariado os votos das fiéis, em 2022 o cenário é diferente. As mulheres mostram-se, conforme pesquisas de opinião recentes, divididas entre Lula e Bolsonaro.

É comum que as mulheres evangélicas estejam alinhadas com o conservadorismo, continua Simony, o que segue a cartilha de um grande contingente de igrejas no Brasil. “Elas estão alinhadas com a questão da família. O sistema econômico tirou a propriedade do pobre, não tem casa e não tem terra, mas tem família e Deus. E isso é uma ferramenta importante de manipulação, então a pauta conservadora vai falar muito disso”, explica.

“Elas estão alinhadas com a questão da família. O sistema econômico tirou a propriedade do pobre, não tem casa e não tem terra, mas tem família e Deus. E isso é uma ferramenta importante de manipulação”

Simony dos Anjos

A religião, não ao acaso, é instrumentalizada também no poder legislativo. A bancada evangélica, núcleo da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no Congresso Nacional, é formada por deputados e senadores em maioria evangélicos. O presidente atual da FPE é Sóstenes Cavalvante, deputado que frequentemente se posiciona contra a legalização do aborto em suas mídias sociais e falas no parlamento. 

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Entre projetos que transitaram na Câmara sobre o tema só em 2021, estão o Projeto de Lei (PL) 2125/2021, que aumenta as penas ao crime de aborto e é de autoria de Junio Amaral, deputado membro da FPE; e o PL 232/2021, que deseja tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência para atestar a veracidade de um estupro, de autoria das deputada Carla Zambelli e Major Fabiana, ambas membras da FPE. A tentativa de criminalizar o aborto incidiu com a atual legislatura de maioria conservadora, mas já aparece na FPE há anos. Em 2007, a Frente já se articulava contra o aborto legal e seguro.

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(Movimento feminista de evangélicas e católicas a favor do aborto legal/Arquivo)

Toda essa movimentação política, pontua Simony, é um jogo de disputa dos espaços de visibilidade, não só nas casas legislativas, mas em outros espaços institucionais. “Embora haja diversidade entre os evangélicos, existe um alinhamento comportamental, de uma tecnologia de produção de visibilidade que se dá pela moral e pela produção de pânico”, avalia, ao citar que o boom do mercado gospel (livros, programas televisivos, rádio) é uma dessas ferramentas. “Eles produzem a visibilidade a partir de negar nossos direitos [enquanto mulheres]”, completa. 

“Embora haja diversidade entre os evangélicos, existe um alinhamento comportamental, de uma tecnologia de produção de visibilidade que se dá pela moral e pela produção de pânico. Eles produzem a visibilidade a partir de negar nossos direitos [enquanto mulheres]”

Simony dos Anjos
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Outras histórias

A igreja cristã foi responsável por muitas violações de direitos de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+. E, ainda hoje, isso acontece. Letícia lembra que “nós fomos colonizados pelo catolicismo, que foi imposto, e traz marcas em todos os espaços”, diz, ao explicar que isso transformou a forma de ser mulher na história da humanidade para atender a essas “demandas forçadas”. 

Romi complementa ao afirmar que “a gente precisa olhar a religião e o papel das igrejas como instrumento ideológico de poder. Se a igreja vai afirmar as ideologias dominantes, como a família patriarcal, que a mulher tem que estar para os filhos e família, ela funciona como uma mantenedora, contribuiu para a manutenção das relações sociais aparentemente não conflituosas. A partir do momento que você começa a problematizar, você gera desconforto, você gera rupturas, então muitas vezes o que está por trás dessa abordagem é precisar lidar com conflitos”, diz a teóloga, que compartilha conseguir uma boa interlocução com feministas não-cristãs.   

Apesar da pluralidade do movimento feminista, inserir o debate sobre religião nesses grupos pode ser uma tarefa complexa, justamente pelo desenvolvimento das instituições religiosas na sociedade. Simony acredita “as feministas não conseguem se comunicar com as mulheres religiosas”, mas que estamos em um momento de diálogo intenso por conta da conjuntura política. “Dentre os 30 milhões que deixaram de votar [em 2018], boa parte eram religiosos”, continua. 

Já Letícia acredita que “as feministas como um todo não aceitam muito o elemento religioso, porque entendem que esse é um lugar que as oprimiu”. Ela avalia isso como um problema, pois diz que existe uma centralidade religiosa no Brasil impossível de ser desconsiderada. 

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“Não acho que isso vai ser aceito nas rodinhas de pastores ou convenções. Esquece. Ali está o lugar de privilégio, e poucas mulheres acessam. A teologia feminista vai ser sempre escurraçada, mas existe chance dela incidir onde as mulheres estão. E elas estão na base das igrejas”

Camila Mantovani

Para a cientista, a igreja tem essa grande dívida histórica, mas não demonstra disposição em resolvê-la. Camila concorda. Em sua visão, são “pecados históricos cometidos pela igreja, que foram e continuam sendo cometidos”, e vê mínima vontade de atuar diferente dentro das instituições tradicionais. “Fazer esse reconhecimento envolve quebra de estrutura, o que significa renúncia de privilégio, e ninguém quer fazer isso”, diz ela, ao destacar que uma parte do cristianismo também teve um papel comprometido com a justiça social, mas que isso é invisibilizado. 

Apesar das pautas feministas religiosas ainda serem minorias, muitas vezes perseguidas, no âmbito cristão, isso não impediu as mulheres de construírem seus espaços de questionamentos e autonomia. Mesmo “oprimidas pelas estruturas fechadas do cristianismo, elas despertam para outras formas de viver sua religião”, afirma Letícia, que hoje não professa a fé católica, mas diz acreditar em Deus. “Não acho que isso vai ser aceito nas rodinhas de pastores ou convenções. Esquece. Ali está o lugar de privilégio, e poucas mulheres acessam. A teologia feminista vai ser sempre escurraçada, mas existe chance dela incidir onde as mulheres estão. E elas estão na base das igrejas”, finaliza Camila. 

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