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“Precisava o George Floyd morrer para lançarem um band-aid preto?”

O dermatologista Fred Nicácio prescreve a representatividade como um remédio indispensável para a cura do racismo

por Daniel Salles 21 ago 2020 01h40
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(Clube Lambada/Ilustração)

a razão que levou Dona Eunice, na época com 74 anos, ao hospital no qual atendia em 2018, no interior do Rio de Janeiro, o dermatologista Fred Nicácio não lembra mais. Do que não esquece é a reação dela ao final da consulta. “Posso tirar uma foto contigo?”, ela pediu, depois que venceu a timidez. Se tivesse sido feito hoje, o pedido poderia ser atribuído ao considerável sucesso do médico no Instagram, no qual soma 333 mil seguidores, ou então às participações dele no programa Encontro com Fátima Bernardes

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Alheia à crescente notoriedade de Nicácio no universo digital, Dona Eunice quis imortalizar o encontro pelo ineditismo — nunca havia sido atendida por um médico da mesma cor que ela. Os dois são negros, assim como o neto dela, então com 9 anos, que a acompanhou na consulta. “Ela precisou esperar sete décadas até testemunhar que médicos pretos podem existir”, diz o dermatologista. “Já o neto, desde a primeira década de vida, pode sonhar em ser médico, porque viu que é possível. Esse é o efeito da representatividade, da referência, que pode mudar inúmeras histórias de vida”.   

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Parte da fama conquistada pelo médico se deve à repercussão do post no Instagram no qual resumiu aquela consulta. O apoio do ator Bruno Gagliasso, com mais de 18 milhões de seguidores no Instagram, também ajudou. O dermatologista foi um dos nomes a quem o ex-global cedeu, temporariamente, sua conta na rede social — pai adotivo de duas crianças negras, Gagliasso se converteu em ferrenho militante antirracista. No feed de sua conta, continuam publicados dois vídeos e quatro fotografias de Nicácio — uma delas com a Dona Eunice —, além de uma porção de stories. 

O que o dermatologista realmente enfrenta em seu dia a dia está resumido na legenda de uma daquelas quatro fotos, em que ele relembra a vez na qual, devidamente embrulhado em um jaleco no qual se lia Dr. Fred Nicácio e com o estetoscópio no pescoço, viu adentrar em seu consultório uma paciente branca – na época, ele dava expediente numa unidade do Sistema Único de Saúde, o SUS. Às indagações usuais de qualquer consulta, a mulher respondeu com um pedido que dispensa explicações: queria falar com o médico. Aparentemente conformada de que o médico seria aquele e ponto final, testou-o com perguntas repletas de preconceitos e jargões médicos do início ao fim da consulta. Na saída, interrogou as enfermeiras: “Aquele homem moreno lá dentro do consultório é o médico?”. Foi embora com a receita dada por ele, mas recusou os medicamentos que poderia retirar no local. 

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(Fred Nicácio/Divulgação)

História de luta

Nascido há 33 anos em Campos dos Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, Nicácio formou-se em medicina pela Universidade Iguaçu (UNIG). Nos primeiros quatro anos, os únicos estudantes negros do curso eram ele e uma colega. Professores negros? Nenhum. “Na faculdade, todas as pessoas negras à nossa volta ou eram faxineiras, copeiras ou seguranças. Nenhuma ocupava postos considerados de grandeza”, lembra ele, que antes de se decidir pela medicina formou-se em fisioterapia (também teve uma temporada como modelo). “A discrepância é muito grande para um país no qual quase 56% dos habitantes se autodeclaram negros ou pardos. Seis de cada dez médicos, portanto, deveriam ser negros. Onde estão? Temos um problema estrutural muito grave”. 


“Em um país no qual quase 56% dos habitantes se autodeclaram negros ou pardos, seis de cada dez médicos, portanto, deveriam ser negros. Onde estão? Temos um problema estrutural muito grave”

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(Fred Nicácio/Divulgação)

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A especialidade que escolheu, a dermatologia, não é exatamente conhecida por militar em prol da diversidade. “A cosmetologia para os pretos não avança porque julga-se que não formamos um mercado de consumo”, diz Nicácio. “Só agora começamos a encontrar protetores solares para fototipos cutâneos mais altos e produtos específicos para cabelos crespos, por exemplo. É um começo, pelo menos”. Ele aproveita para dar fim a um mito perigoso, o de que a pele negra dispensa o uso de protetor solar, em razão da maior quantidade de melanina. “Quem sustenta isso não sabe do que está falando”, afirma ele, que há um ano radicou-se em Bauru, em São Paulo, onde vive com o marido, o também médico Fabio Gelonese.

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Instigado a refletir sobre a onda de protestos deflagrados pela morte do americano George Floyd, asfixiado pelo policial Derek Chauvin em maio deste ano, Nicácio relembra que só depois deles e do movimento Black Lives Matter é que a Band-Aid anunciou que fará curativos próprios para consumidores de pele negra. Vai direto na ferida: “Precisava o George Floyd morrer para lançarem um band-aid preto? Há quantos anos a empresa está no mercado para concluir que pessoas pretas também usam curativos?”. E não para por aí. “Sem uma desgraça, parece que a indústria não é capaz de se movimentar a nosso favor”, questiona. “Não é o que queremos”. 


“Precisava o George Floyd morrer para lançarem um band-aid preto? Há quantos anos a empresa está no mercado para concluir que pessoas pretas também usam curativos? Sem uma desgraça, parece que a indústria não é capaz de se movimentar a nosso favor”

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Em seguida, relembra a promoção da jornalista Maju Coutinho ao comando do Jornal Hoje, da TV Globo. “Foi preciso que ela fosse xingada nas redes sociais para ascender”, acredita o médico. “Por que não cresceu antes disso?”. Conclui o raciocínio dizendo o seguinte: “Não queremos mais enfrentar episódios racistas para alçar voos, queremos ser valorizados, primeiramente, porque somos bons profissionais. Só temos bem menos oportunidades que as pessoas que não são pretas. Ganhar espaço só para aliviar a consciência moral da branquitude: isso a gente não quer”.

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Os protestos antirracistas que ganharam as ruas dos Estados Unidos e outros países, na sua visão, são necessários. “Há muitos anos, gritamos de outras formas e não somos ouvidos. Já que as problemáticas não se resolvem, as estratégias precisam mudar”, raciocina. Na sequência, reclama do menor empenho da sociedade brasileira em cobrar providências depois da morte de nossos negros, a exemplo do carioca João Pedro, de 14 anos, alvejado em casa por um tiro de fuzil durante uma ação policial. “Para os brasileiros, tudo o que é importado parece melhor. Vale para os carros, para os eletrônicos e até para os protestos”, sustenta. “Temos George Floyds morrendo diariamente no Brasil. Para eles, no entanto, a mídia não dá tanta importância. Se caem no esquecimento, como poderiam fomentar manifestações?”. A pergunta equivale a mais um band-aid arrancado.    

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