simples ato de ligar e marcar uma consulta no ginecologista pode representar o início de uma série de violências a homens trans. “Antes de registrar meu nome social, procurei um consultório e a atendente perguntou: ‘qual o nome completo da paciente?’. Respondi o de registro e tive de ouvir: ‘Tem certeza que é para você?’”, relata Eduardo Mark, de 28 anos, morador de Cotia, na região metropolitana de São Paulo. O preconceito em todo esse processo para garantir o acompanhamento adequado induz parte desse grupo a evitar a procurar ajuda, seja via sistema privado ou público. E este é só um indício da transfobia, uma vez que a grande maioria dos médicos não se diz preparada para atender um rapaz que realizou ou passa pela transição de gênero.
“Sim, eu sou um homem trans”, respondeu Eduardo diante do questionamento sobre a procura por ginecologista. Mesmo assim, novos impeditivos já foram colocados em diversas ocasiões. “Uma recepcionista disse que teria que checar com a médica se ‘ela poderia cuidar do meu caso’”, lembra o analista de atendimento ao cliente. Do outro lado, também há quem busque tratar a todos, todas e todes com respeito. “Liguei em mais um consultório e a pessoa lidou muito bem, assim como a médica”, afirma. Segundo ele, essa mesma ginecologista declarou: “a gente não é médico de mulher, mas sim, de genital e vagina. Se você tem esse órgão, eu tenho pleno conhecimento para te auxiliar”, conta.
Antes de iniciar a transição de gênero, Mark tinha vergonha de frequentar ginecologistas por inúmeras questões e evitava ao máximo passar por essa experiência. Aos 16 anos, engravidou de seu filho, Kelvin, e só voltou a frequentar as consultas algum tempo depois. A pedido de sua mãe, o rapaz foi a uma médica e descobriu que tinha ovário policístico. A especialista o induziu a tomar hormônio feminino, o que era horrível e o fazia se sentir inchado – episódio que o distanciou por seis anos de qualquer atendimento ginecológico. Essa necessidade só voltou a se manifestar no momento em que ele já se identificava como homem.
–Eduardo começou a entender a importância dos atendimentos quando procurou o processo de hormonioterapia pelo SUS (Sistema Único de Saúde), que o obrigava a ter acompanhamento ginecológico. Ele considera que teve sorte nessa época porque a doutora do CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) de Guarulhos o atendeu de forma respeitosa. “Ela me deixou super à vontade até durante o papanicolau”, ressalta. No mesmo local, teve acesso às demais especialidades necessárias, como endocrinologista, psiquiatra e psicóloga, porém, esta última foi transfóbica ao comentar sobre a paternidade trans.
A reclamação formal contra a profissional de nada adiantou, mas, pouco tempo depois, Eduardo entrou como estagiário em uma empresa que tinha plano de saúde e não precisou mais utilizar o SUS. Pela Unimed, fez a mamoplastia masculinizadora, em 2019, com um médico indicado por um colega trans. “Era péssimo esse período, eu tinha muita disforia e não conseguia nem sair de casa alguns dias. Estava tão mal a ponto de achar que as pessoas me tratariam por outro gênero por causa do volume do meu peito. Eu sempre senti esse incômodo, desde a infância, e não sabia o significado”, recorda.
Em agosto deste ano, o analista de atendimento ao cliente decidiu partir em busca de outra necessidade de seu corpo: a histerectomia, que é a cirurgia de retirada do útero e dos ovários. Parte dos homens trans opta por mais um procedimento, além da mamoplastia masculinizadora, pois o uso prolongado de hormônio masculino pode fazer os ovários atrofiarem, o que é prejudicial à saúde. A cirurgia mostra-se difícil de ser feita, especialmente no SUS, e é importante ressaltar que, após a realização da mesma, a pessoa continua com o tratamento, mas em uma janela maior de tempo.
Elástica acompanhou e registrou algumas cenas da consulta de Eduardo, feita pela ginecologista Bruna B. Cavalcante, especialista em ginecologista obstetrícia e reprodução humana. Após tirar dúvidas sobre a histerectomia, o paulista passou pelo papanicolau e exames de toque para detectar possíveis nódulos nas mamas. Ele ainda saiu com um pedido para exames de rotina, como ultrassom.
“Nessa consulta descobri que existe possibilidade de um homem trans ter câncer de mama. Fiquei surpreso porque achava que estava isento da doença. Isso não foi avisado no SUS ao solicitar a mamoplastia masculinizadora”
Eduardo Mark
“Nessa consulta descobri que existe possibilidade de um homem trans ter câncer de mama. Fiquei surpreso porque achava que estava isento da doença. Isso não foi avisado no SUS ao solicitar a mamoplastia masculinizadora”, ressalta. A ginecologista explica que o câncer de mama pode ocorrer, pois existe a possibilidade de que a equipe médica não tenha retirado todo o tecido mamário, por isso, é recomendável realizar exames frequentes. Embora não seja especializada na cirurgia de histerectomia, a médica foi extremamente acolhedora e se propôs a indicar profissionais da área que fazem o procedimento.