envolvimento

Eu moro na cidade

Apagados das estatísticas, indígenas urbanos filiam-se a partidos, formam grupos de rap, ocupam as universidades e lutam pela demarcação de suas aldeias

por por Elena Wesley (reportagem), Juliana Marques e Giulia Santos (dados), do data_labe Atualizado em 30 out 2020, 11h54 - Publicado em 28 set 2020 00h26
-
(Clube Lambada/Ilustração)

Ay kakyri tama / Ynua tama verano y tana rytama [Eu moro na cidade / Esta cidade também é nossa aldeia]”. Pelos versos em tupi-kambeba, a poetisa e geógrafa Márcia Wayna Kambeba reivindica o que mais de 315 mil indígenas precisam afirmar todos os dias: estar na cidade não exclui sua identidade. Contra as investidas do senso comum que ainda tentam restringi-los ao isolamento na floresta e à nudez, os indígenas urbanos produzem arte, promovem ações educativas e disputam cargos eletivos. Suas vivências carregam 520 anos de estratégias de resistência, pelas quais afirmam: “Ruaia manuta tana cultura imimiua [Não apagamos nossa cultura ancestral]”.

Walter Kamaruara já perdeu as contas de quantas vezes ouviu a frase “Ah, mas você nem é tão índio assim” ao longo dos cinco anos em que tem vivido em Santarém, no Pará. A saída da aldeia onde nasceu foi precoce, já que em Pedra Branca, território pertencente à Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, não existem escolas de ensino médio. Quando cursava a graduação em História, Walter reparou o quanto o racismo – seja institucional ou cotidiano – afetava a ele e a outros jovens universitários.

-
(Walter Kumaruara/Arquivo)

“Minha impressão é que eu aprendia mais com os meus mais velhos do que naquela sala de aula, onde estudava sobre a história da Europa e via que muita coisa sobre o meu povo era contada de uma forma distorcida. Esse olhar da sociedade sobre a gente vai sendo absorvido, daí tem indígena que não quer se autodeclarar. Alguns colegas da faculdade diziam que não voltariam mais para casa depois que se formassem. Há um apelo muito forte para abandonar nossas raízes”, lembra.

Continua após a publicidade

“Minha impressão é que eu aprendia mais com os meus mais velhos do que naquela sala de aula, onde estudava sobre a história da Europa e via que muita coisa sobre o meu povo era contada de uma forma distorcida”

Walter Kamaruara

Se por um lado a cidade pressiona os jovens indígenas a abandonarem suas tradições e ancestralidade, Walter investe na afirmação desses valores a partir do Coletivo Jovem Tapajônico. Fundado em 2018, o grupo incentiva o engajamento social e a conscientização política com atividades nas comunidades ribeirinhas e nas escolas. Com paródias e videoclipes, os jovens abordam temas como desmatamento, agrotóxicos e, no contexto da pandemia do novo coronavírus, os cuidados para prevenção à covid-19.

-
(Tapajonico/Arquivo)

“Os jovens sempre estiveram conectados em cuidar do território. Com 13 anos, a gente já alfabetizava as crianças mais novas, porque faltava professor. Até conseguimos uma biblioteca! Mas não havia uma consciência política de como a falta de representação está conectada com os problemas que a gente enfrenta. Eles viam os troncos de árvore sendo levados e não compreendiam que a ação das madeireiras representa uma ameaça para a aldeia e que, por isso, a questão da demarcação de terras é tão importante. Assistiam aos comerciais sobre o agro ser pop, mas estão descobrindo que na prática o agro é morte”, exemplifica o educomunicador, que atua junto a mais seis jovens indígenas da Floresta Nacional de Tapajós, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande e dos Quilombolas de Oriximiná.

Publicidade

Êxodo florestal

O Pará compõe, junto com Amazonas e Mato Grosso, a tríade dos estados com os maiores índices de desmatamento do Brasil. Nem mesmo a pandemia e a necessidade de adesão ao isolamento social frearam a derrubada de árvores e as queimadas nos territórios indígenas, e a tendência é que os números de 2020 estejam próximos aos de 2019, ano recordista na destruição da mata nativa.

Segundo o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os focos de calor aumentaram, com crescimento de 33% em julho e 19% em agosto em relação ao ano passado, quando mais de 42 mil hectares de terra foram destruídos. O número equivale a quase duas vezes a cidade de Recife.

O desmatamento é um dos fatores determinantes para o êxodo forçado da população indígena rumo às cidades, onde vão encarar o subemprego, a crise habitacional e a marginalização social. “O acolhimento é grande para quem chega à aldeia: há carinho, alimento, dormida. Mas quando é o indígena a chegar na cidade, o que ele tem é a praça, o bloco de pedra, a árvore. Com tantos estereótipos que o definem como sujo, fedorento, preguiçoso, ladrão (por “pegar” território da União), quem vai abrigar o indígena em sua casa?”, questiona a geógrafa Márcia Kambeba.

Fora da aldeia, o acesso a serviços básicos também se torna um obstáculo, e a saúde é um dos principais gargalos. Embora o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas se proponha a considerar a maior vulnerabilidade dos povos originários a doenças e sua diversidade de vivências, na prática o atendimento diferenciado fica restrito às aldeias.

“O acolhimento é grande para quem chega à aldeia: há carinho, alimento, dormida. Mas quando é o indígena a chegar na cidade, o que ele tem é a praça, o bloco de pedra, a árvore”

Márcia Kambeba

“Qualquer indígena [urbano] que der entrada em uma UPA em Belém não vai ser tratado como aquele que é aldeado. Se eu contrair covid-19 e vier a óbito, não vou ter meu nome colocado na lista de indígenas vítimas da doença. Serei uma cidadã comum, com meu nome de registro civil, não Márcia Kambeba”, afirma a escritora.

Continua após a publicidade

-
(Xondaro/Arquivo)

Violações de direitos como esses impulsionaram Márcia a se candidatar à Câmara Municipal de Belém nas eleições deste ano. Natural da aldeia Belém de Solimões, no Amazonas, mas desde os nove anos de idade vivendo em meio a edifícios, ela propõe que o poder público adote medidas de garantia à cidadania indígena, como o acesso ao saneamento básico, a regulamentação do escoamento da produção agrícola e artesanal e a conclusão das etapas básicas da educação.

O Censo Escolar 2018 aponta que a taxa de abandono dos estudos entre indígenas é de 6% – o dobro da média nacional. Cerca de 40% dos matriculados na rede pública têm idade superior ao recomendado. Somente em 2017, mais de 15 mil deixaram de ir à escola.

“A gente precisa criar condições de renda para reduzir a evasão escolar. Os meninos hoje estão nos ônibus para vender doces, é esse o trabalho que o jovem indígena tem na cidade. É difícil escoar produção em uma sociedade racista, onde o atravessador compra por R$20 no Pará e vende por R$100 em São Paulo. Podemos catalogar os polos de fabricação, fortalecer as associações, divulgar na cidade, de uma forma institucionalizada”, sugere Kambeba.

Baseada nos pilares da arte, educação e meio ambiente, Márcia salienta por que sua candidatura pelo PSOL ultrapassa a urgência por representação indígena nos espaços de decisão. “As cidades viraram as costas para o rio, literal e metaforicamente. Inspirar-se nas referências indígenas, no nosso modo de viver que cuida do que é coletivo e da natureza, pode tornar uma cidade tão bonita como Belém melhor para todos. Uma cidade limpa potencializa o turismo, gera mais renda e mais qualidade de vida para a população”.

Publicidade

O pardo é indígena?!

A maior parte da população brasileira é parda: 46,8%. Tradicionalmente, esse número é somado ao das pessoas que se autodeclaram pretas, compondo o grupo “negros”. Mas parte desses pardos seriam indígenas? A doutoranda em estudos raciais e de gênero Geni Nuñez explica que sim.

“A escravidão roubou das pessoas negras o conhecimento sobre suas origens, suas etnias, então foi preciso buscar um método de unidade, que foi a raça. O movimento tem uma luta histórica para considerar como negra a soma de pardos e pretos. Mas precisamos compreender que o genocídio racial no Brasil é negro e indígena. O pardo pode ser indígena. Se a gente não aparece nas estatísticas ou no discurso, é mais uma forma de acreditarem que estamos sumindo. Dizer que estamos desaparecendo é violento e é uma estratégia de extermínio, pois afeta a garantia de direitos, entre eles o acesso às cotas raciais e a demarcação de terras”.

“Precisamos compreender que o genocídio racial no Brasil é negro e indígena. O pardo pode ser indígena. Se a gente não aparece nas estatísticas ou no discurso, é mais uma forma de acreditarem que estamos sumindo”

Geni Nuñez

Garantir representação é um desafio em um país onde os dados oficiais apontam redução da população indígena nas cidades, sobretudo no Sudeste.

O somatório de indígenas urbanos teve queda de 383 mil em 2000 para 315 mil em 2010, segundo dados do Censo IBGE. O órgão credita o fenômeno à perda de afinidade dessas pessoas com seu povo de origem.

-
(Oz Guarani/Arquivo)

Geni Núñez questiona estes números e justificativas e argumenta que existe uma subnotificação da população indígena, favorecida pela dificuldade que ela tem de se autoafirmar e de ser registrada como tal, ambas influenciadas pelo racismo. “No IBGE, temos cinco categorias raciais: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Mas indígena não é cor, há indígenas de diferentes cores e de diversas etnias (guarani, pataxó, tikuna etc). Por isso, o censo deveria ser étnico-racial, porque o IBGE não considera essa identidade. E nem mesmo a tipificação básica funciona. É comum ver a identificação de raça como pardo na RANI (Registro Administrativo de Nascimento Indígena), que é a certidão emitida pela Funai”.

Com boa parte da população indígena registrada como parda, o cálculo feito para contabilizar a população negra – que soma pretos e pardos – também colabora para o apagamento dos povos originários.

A pesquisadora guarani fundamenta essa avaliação com base nos números dos estados do Pará, Amazonas e Acre, os mais “negros” do país. Na região metropolitana de Manaus, por exemplo, pardos são 75% da população, enquanto indígenas somam 5,2% e pretos 3,1%.

-
(Oz Guarani/Arquivo)
Publicidade

Aldeias de concreto

A luta pela terra também é pauta primordial na zona oeste de São Paulo e ganha visibilidade nas letras do Oz Guarani. O grupo de rap surgiu em 2014 durante a resistência a um processo de reintegração de posse na Aldeia Tekoa Pyal, que integra o território indígena do Jaraguá, às margens da Rodovia dos Bandeirantes. Se no passado os desbravadores foram algozes da população nativa, hoje a expansão da cidade pela Bandeirantes coloca em risco o modo de vida de mais de 130 famílias que vivem em apenas 1,2 hectare de terra, o que equivale a aproximadamente um campo de futebol. Embora o Jaraguá tenha sido reconhecido pelo governo em 2014, nem todas as aldeias que o compõem estão demarcadas.

“Como pode? Sem terra pra morar, sem rio para pescar
O Juruá [não indígena] desmata a mata e mata os M’bya [indígenas]”

Oz Guarani - O Índio é Forte

“O processo da Tekoa Pyal está parado desde que o Temer saiu. Isso é ruim porque a cidade vem crescendo em cima das terras tradicionais. O território é muito rico, então é observado por empresas grandes. Tem alguns meses que a gente acordou de madrugada com barulho de motosserra. Uma construtora queria derrubar 4 mil árvores para construir um condomínio, então reunimos várias aldeias para protestar”, conta MC Xondaro, que integra o grupo com Gizeli Paramirim e Mirindju Glowers.

Continua após a publicidade

Xondaro
Xondaro (Thiago Carvalho/Fotografia)

Alimentação e acesso à água também ficam comprometidos. As nascentes onde o jovem de 21 anos brincava quando criança já não existem, e a suspensão do abastecimento de água ao longo de uma semana inteira é frequente. O espaço reduzido e a poluição inviabilizam práticas tradicionais de subsistência como a pesca e a caça. “A gente planta milho tradicional, mandioca, mas sem mata para caçar, é preciso comprar alimentos. A a principal renda vem do artesanato, e todo mundo se vira como pode. Os homens geralmente vão para a construção civil.”

Contra a falta de perspectiva, a juventude guarani no Jaraguá encontra formas de apoiar a vida em comunidade. Xondaro é exemplo disso, concilia o trabalho no atendimento de saúde à população indígena com o ativismo a partir do rap. “A gente dá aula de guarani e palestras sobre a organização da aldeia e se apresenta nos SESCs dentro e fora de São Paulo. Infelizmente ou felizmente, não sei, subir ao palco não é se apresentar, é levar um povo com a gente. A luta dos povos indígenas é de todos nós, porque é para o bem de todos. [É para] Manter nossas florestas de pé, porque são elas que trazem vida à gente, indígena ou não”.

Publicidade

Colaborou nesta reportagem: Fred Di Giacomo (edição), do data_labe

Tags Relacionadas
mais de
envolvimento
Bianca Santana relança seu best-seller “Quando me descobri negra” mirando um novo momento de consciência racial no Brasil
Organizando um livro sobre branquitude, Lia Vainer alerta sobre as relações entre a supremacia branca e o estágio tardio do capitalismo
gabriela-rassy03

O MST é pop

Por
Depois de cinco anos proibida em São Paulo, a Feira da Reforma Agrária do MST está de volta. Fomos até lá conversar com lideranças e comer muito bem
3-2-hpv

Elástica explica: o que é HPV?

Por
Saiba como é o diagnóstico, a prevenção e entenda a importância da vacinação para conter o vírus
Alexia Brito fala sobre sua família, rotina e amadurecimento em um papo sincero e divertido