A terra tremerá como nunca tremeu antes”, anuncia Katú Mirim, na música “Aguyjevete”, que faz parte do seu recém-lançado EP, Nós. Os versos da rapper de 33 anos da etnia Boe Bororo (também batizada pelo povo Guarani M’bya) falam sobre como o racismo velado e a cultura de exaltação dos bandeirantes ainda marcam o Brasil. “Não tem como não fazer uma música que não fale sobre isso, sendo que é o que bate na minha porta desde que nasci”, explica ela, que foi criada por uma família evangélica branca no interior paulista.
A recepção das músicas, no entanto, esbarra no próprio preconceito sobre o qual elas falam. Soma-se a isso a bissexualidade da rapper que, muitas vezes, é vista pelos não indígenas com um espanto que pode ser resumido na indagação: “Mas existe índio gay?” Foi para responder a essa pergunta que Katú se juntou a amigos de outras etnias a fim de mostrar que pensar a sexualidade não é uma exclusividade branca.
Em maio de 2019, veio à luz o Coletivo Tibira, o qual reúne indígenas LGBT+ que são artistas, ativistas, acadêmicos ou que só querem dar close como forma de afirmação. Entre os idealizadores, além de Katú, estão Neimar Kiga, Tanaíra Terena e Danilo Tupinikim. À Elástica, eles contam a história do grupo, suas vivências e os desafios de ser resistência há 520 anos.
Danilo Tupinikim (estudante de ciência política da Universidade de Brasília, 20 anos, povo Tupinikim): A Katú teve a ideia da gente se articular para trazer representatividade dentro do contexto indígena. Nossa intenção é combater esse vírus da LGBTfobia, porque muitos dos nossos sofriam calados por se acharem errados. Depois que criamos a página, vários indígenas vieram falar que passam pelas mesmas situações.
Neimar Kiga (designer, mestrando em antropologia social pela UFMS, 23 anos, povo Boe Bororo): Existem muitas pessoas dentro das comunidades [indígenas] que não podem falar sobre esse assunto. Eu mesmo cresci sem me ver representado nem como indígena, hoje gosto de acompanhar pessoas como a [ativista guarani e mestre em psicologia social] Geni Núñes, o Erisvan Guajajara [criador da Mídia Índia] e a Katrina Malbem [primeira candidata trans em um concurso de beleza indígena]. Fazer parte do coletivo me fez perceber o quanto somos importantes para quem não se sente representado em lugar nenhum.
Tanaíra Terena (geógrafa, mestra em antropologia social, 29 anos; povo Terena):
Temos uma correspondente que mora no Canadá, e estamos no processo de construção dessa rede de contatos com os demais parentes, mas o retorno já tem sido bem positivo. O coletivo traz um recorte que a comunidade LGBT precisa acrescentar na discussão.
Neimar Kiga: Pós-pandemia, pensamos em trabalhar com projetos na área de saúde mental, saúde sexual, educação… Mas já conseguimos colher alguns frutos desse pomar de diferenças. Um exemplo é o Acampamento Terra Livre (ATL) [tido como o maior encontro das nações indígenas do Brasil], que acontece em Brasília. Esse ano, nossa pauta foi discutida em uma mesa online com os integrantes do coletivo.
Katú Mirim: Usamos principalmente o Instagram. Quando a pessoa chega no perfil, ela não vê só foto de close. É claro que a gente usa o close como forma de demonstrar orgulho. Mas levamos informação e acolhimento também. É um debate que traz muita esperança para os jovens indígenas LGBTs.
A história do tupinambá Tibira
“São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado que eles não cometam”, escreveu o historiador português Gabriel Soares de Sousa, em seu “Tratado Descritivo do Brasil”, de 1587. Naquela época, as relações homoafetivas eram comuns, não só entre os tupinambás, mas entre vários povos.
A luxúria preocupava tanto os colonizadores que, em 1614, eles amarraram um tupinambá gay à boca de um canhão e o assassinaram, como exemplo do que poderia acontecer com quem se atrevesse a amar alguém do mesmo sexo. Tibira, que empresta o nome ao coletivo, é considerado a primeira vítima brasileira da homofobia.
Tanaíra Terena: Pensamos nesse nome justamente para relembrar a figura do Tibira e ressignificá-la, é uma forma de ligá-lo a algo positivo, à superação.
Danilo Tupinikim: Pesquiso gênero e sexualidade em contexto indígena e percebo que, sem querer generalizar, sempre existiram relações homoafetivas dentro das comunidades. O preconceito chegou com as caravelas. Impor o cristianismo foi uma forma de excluir elementos das culturas indígenas. Na minha comunidade, e em várias outras, a gente ainda sofre pelo machismo e pela homofobia, mas passei a sofrer menos quando comecei a me empoderar.
Katú Mirim: E ainda tem outra questão também. Quando a gente fala de Tibira, cadê as histórias das mulheres? O movimento LGBT+ branco fala da invisibilidade das lésbicas na história, né? Mas se isso acontece com as mulheres brancas, imagina com as indígenas?
Preconceito à vista
Katú Mirim: Se perceber indígena é uma coisa que vem antes de se perceber LGBT+. Quando você tem esse fenótipo indígena, essa é a leitura social que vem primeiro. Percebi isso desde que entrei na escolinha. Todo dia 19 de abril, por exemplo, me apontavam e falavam que eu era selvagem. Quando fui me entender LGBT, a coisa piorou, porque aí pensei: “Caramba! Agora que meus pais não me aceitam mesmo”. Foi um processo bem complicado.
Danilo Tupinikim: Me entendo como gay desde cedo, mas, por conta da falta de representatividade, só me assumi quando vim estudar em Brasília. Dei uma entrevista ao G1, sem nunca ter comentado sobre a minha sexualidade com ninguém, e minha mãe ficou sabendo. Ela teve uma reação que nunca duvidei que fosse ter: ela me acolheu.
Neimar Kiga: A minha vivência enquanto indígena do povo Boe Bororo e homossexual é marcada por lutas diárias. Ainda há muito preconceito velado. Mesmo assim, apesar das influências eurocêntricas, a relação que tenho com o meu povo é saudável. A questão que percebo é que, hoje, muitas pessoas me respeitam nem tanto pela orientação sexual, mas pela formação que tive na universidade. Isso me incomoda. Queria ser respeitado como pessoa, não por uma formação.
Tanaíra Terena: Dentro das comunidades, talvez, possa acontecer um estranhamento. Mas, fora delas, sofremos dupla discriminação. Primeiro, por ser indígena, e, segundo, por ser LGBT+. Enquanto mulher que se relaciona com outras mulheres, costumo fazer um recorte de gênero para completar: além do racismo e da LGBTfobia, sofremos machismo também.
Danilo Tupinikim: Morando dentro da comunidade, a gente não sabe que é indígena, porque não precisamos ficar a todo momento nos autoafirmando. Mas tive essa necessidade quando me mudei para Brasília. Se a gente não faz isso, acaba sofrendo mais.
Katú Mirim: Sem contar que ainda tem toda aquela hiperssexualização em torno do corpo das mulheres indígenas, sempre mostrando elas como hétero e disponíveis para servir um homem. Nunca somos vistas como LGBT+. E o racismo sempre chega antes da LGBTfobia. Tanto que já sofri racismo dentro da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. No meio da edição do ano passado, vários LGBTs ficavam tipo: “Voce é india mesmo? Nossa, mas existe índia LGBT?”.
Danilo Tupinikim: Não é raro que o preconceito aconteça dentro do próprio meio LGBT+. Existem muitos coletivos que nos convidam para fazer parte, para passar a ideia de que são diversos, mas não nos dão espaço. O movimento LGBT+ não indígena não entende as nossas especificidades. O debate sobre raça, por exemplo, é uma das coisas que precisa estar presente.
Neimar Kiga: Nos acostumamos a usar termos que vêm de fora, como o próprio termo “gay” ou “queer”, por exemplo, que muitas pessoas de dentro das comunidades não conhecem. Mas queremos demonstrar mais originalidade. Dentro dos nossos contextos, já existem nomenclaturas usadas para se referir a pessoas que não seguem a heteronormatividade. Tem o termo “biaraka”, por exemplo, que quer dizer algo como “orelha em pé”. Os homens héteros usavam esse termo quando queriam insultar, tipo “viadinho”. Hoje, a gente ressignifica isso. Gosto de usar “biaraka”, porque me considero uma pessoa que sempre tenta se manter informada, com a orelha em pé para o mundo.
Katú Mirim: Quando a gente fala de direitos LGBT+, não podemos esquecer das pocs, dos LGBT+ que estão morrendo nas aldeias, que não têm suas terras demarcadas. A luta LGBT+ branca é racista. Eles lutam por umas coisas, mas não lutam por outras? Quando um indígena LGBT+ luta por direitos, está lutando por todo mundo. Quando lutamos por demarcação de terra, por exemplo, é por todos.
Neimar Kiga: Morei em Campo Grande e, muitas vezes, quando participava de encontros do movimento LGBT+, não sentia que estava somando, mas sobrando. Muitas vezes quem pede respeito debaixo do arco-íris não respeita o outro.
Todos os preconceitos do presidente
Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro deixou escapar seu desprezo aos indígenas, afirmando que: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós” — em 2018, ele já havia os comparado a animais de zoológico. E o preconceito parece ter infectado o governo. Na reunião ministerial do dia 22 de abril, o então ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou sem se constranger: “Eu odeio o termo povos indígenas. (…) Só tem um povo nesse país”.
Não surpreende, portanto, que os povos originários sejam um dos grupos mais vulneráveis da pandemia da covid-19. Até metade de junho, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, existiam 275 óbitos registrados em 47 etnias, além de 4.565 casos confirmados, o que representa uma séria ameaça ao modo de vida e conhecimentos desses povos.
Neimar Kiga: A visão que os não indígenas têm dos povos originários nasce a partir de conceitos coloniais, racistas, capitalistas e patriarcais. Isso gera formas negativas de se pensar as comunidades indígenas. Atualmente, somos mais de 300 povos diferentes, que vivem em aldeias ou em cidades grandes, mas o não-indígena se refere ao “índio” como se fosse apenas um, sem considerar nossa pluralidade.
Katú Mirim: Somos nós por nós mesmos. Esse homem que está no poder é um ignorante, ele quer colocar tudo numa caixinha e isso nunca vai ser acontecer. Somos vários povos, cada um com sua cultura, resistimos à essa colonização, a esses bandeirantes que nunca morrem, a essa falta de respeito…
Tanaíra Terena: Se já está ruim para quem não é indígena, imagina para nós. É por isso que estamos trabalhando de forma independente, organizando arrecadações, nos articulando para as reivindicações chegarem nas secretarias da saúde. É um momento muito violento em relação ao governo, mas costumamos dizer que estamos na resistência há 520 anos. E vamos continuar.
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Zé Otavio. Confira mais de seu trabalho aqui