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Do nordeste para o mundo

Com trabalho que remete à sua identidade pernambucana, a artista Joana Lira faz de suas obras uma homenagem à terra em que nasceu

por Rodrigo Grilo Atualizado em 20 jun 2020, 15h04 - Publicado em 1 jun 2020 08h00
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(estúdio Lambada/Ilustração)

e tradição puder ser interpretada como preservação e transmissão de conhecimento, Joana Lira diria que é ela quem a leva a um lugar de conexão com raízes, verdades, histórias, essências, afetos e tantas outras coisas de naturezas similares. Designer gráfica de formação, essa pernambucana caminha pari passu com o universo da sensibilidade, dos sentidos. Todos eles: cheiro, gosto, escuta, palavra e visão. É nesse estado amplificado que a tradição assume a importância de pontapé na trajetória dessa artista. É referência. Esteio. Mas nada disso aprende, jamais. Porque, atenta ao presente, deixa que a contemporaneidade esteja sempre na ponta do pincel. Aos 43 anos – e 1,52m de altura –, Joana necessita de espaço para expandir, testar, inovar, desfazer e refazer. E, a partir daí, afirmar-se, sintetizar, dar corpo e voz.

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Forjada em uma família na qual o fazer criativo é muito valorizado – pai arquiteto, mãe design têxtil e ex-padrasto multiartista que brinca com arte, design e ilustração –, seja ele erudito ou popular, ela logo sacou que a chave para o reconhecimento se encontrava na expressão artística e inventiva. “Para mim, no entanto, o valor não está na obra apenas, mas também no artista”, afirma. “Gosto de saber de sentimento, de dor, de amor. Gosto de gente.” Essa quase bisbilhotice em relação ao afeto a fez se embrenhar, recentemente, em um Brasil profundo e verdadeiro. Aquele onde se vê pessoas em cadeiras de balanço, de bate papo sentadas na calçada, que abraçam forte e contam histórias, onde há rios e céu em abundância.

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Parte da identidade visual criada por Joana para o estado de Pernambuco.
Parte da identidade visual criada por Joana para o estado de Pernambuco. (Joana Lyra/Reprodução)

Contratada pelo Governo de Pernambuco, em julho do ano passado, para criar a nova identidade visual para a Secretaria de Turismo de sua terra natal, Joana “se picou” para o sertão pernambucano. “Fui conhecer o meu estado de um jeito que nunca havia feito”, diz ela, que há 21 anos mora em São Paulo. Cerca de um mês depois de perambular por cidades como Buique, Pesqueira, Floresta, Tacaratu, Goiana, Bonito e Petrolândia, a artista entregou em setembro seu trabalho, construído a partir de uma família de ícones representativos do estado. Desde então, outras secretarias têm adotado a mesma identidade, compilada em um manual de mais cem páginas e aplicada em todas as peças de comunicação nas redes sociais, festivais, cenários, brindes e calendários entre outras plataformas.


Para mim, no entanto, o valor não está na obra apenas, mas também no artista. Gosto de saber de sentimento, de dor, de amor. Gosto de gente.

No processo de tradução de Pernambuco em linguagem gráfica, Joana lançou mão de ícones representativos da diversidade, história, vegetação e cultura pernambucanas: “Em Floresta, que é conhecida como a terra dos tamarindos, as pessoas são conversadeiras, têm deboche. Lá, há pureza em cenas corriqueiras da vida como o uso em algumas casas ainda de fogão a lenha”, conta a artista. Atribuir novas formas de se olhar para heranças de suas raízes culturais é uma de suas habilidades – mais do que isso, tornou-se uma espécie de cartão de visita – desde quando, principalmente, Joana aceitou o convite para conferir novos significados à cenografia do Carnaval de Recife.

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Parte da identidade visual criada por Joana para o estado de Pernambuco.
Parte da identidade visual criada por Joana para o estado de Pernambuco. (Joana Lyra/Divulgação)

Entre 2001 e 2011, durante o período de Momo, os desenhos dela vestiram pontes, ruas, avenidas, igrejas, monumentos, órgãos municipais e estaduais, e instituíram novas maneiras de interação entre a rua e os foliões. Um privilégio que, como pontua o arquiteto e colecionador de arte Carlos Augusto Lira, pai da artista, nem Brennand ou Picasso tiveram. Desde então, na mesma proporção em que caboclos, foliões, passistas e rainhas se transformaram em estruturas de dimensões monumentais, Joana se agigantou no concorrido mercado de São Paulo, para onde havia se mudado aos 23 anos. “Em Recife, antes de eu me enfurnar no ateliê e passar horas trabalhando, como em São Paulo, eu podia acordar mais cedo, andar na praia, trazer um frescor de natureza para a vida. A cidade estava efervescendo com o manguebeat e a gente bebeu muito nessa mistura da tradição com a contemporaneidade.”

Joana Lira
Joana Lira (José de Holanda/Fotografia)
Parte da identidade visual criada por Joana para o governo de Pernambuco.
Parte da identidade visual criada por Joana para o governo de Pernambuco. (Joana Lyra/Divulgação)

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Parceria entre Joana Lira e o Grupo Corpo
Parceria entre Joana Lira e o Grupo Corpo (Grupo corpo/Divulgação)

Êxodo

Com essa bagagem a tiracolo, ela iniciou, na capital paulista, a busca por independência financeira, principalmente. Era fácil topar com a artista, às 7h da manhã, de avental, pintando peças na pequena sala de seu ateliê, na Vila Madalena, onde encerrava a labuta por volta das 23h: “Sempre me cobrei para entregar as minhas criações com muita qualidade.” Não à toa, desde 2011 Joana tem coleções de produtos (de cama e mesa, entre outros) lançadas em parceria com a Tok&Stok. Mais: realizou trabalhos para instituições como a ONU (material de comunicação visual da Relatoria Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos da organização), Banco do Brasil e empresas como Google e Uber. “Por saber que as minhas criações tinham valor artístico, eu sempre fui afirmativa e boa negociante também. Negociação é um jogo. É como uma dança”, compara ela, valendo-se, como forma de comparação, de outra manifestação artística na qual também é ás.

Foliã de corpo e alma, a artista leva o brincar o Carnaval muito a sério. Tanto que, durante o ano, vai acumulando no guarda-roupa apetrechos para, ornamentada com eles e quando fevereiro chegar, gastar as solas pelas ruas fantasiada de outro jeito, colorida e com graça. Joana, em sua porção de artista, já havia se despedido dos anos dedicados à festa de Momo com a exposição Quando a vida é uma euforia, que foi visitada por cerca de 40 mil pessoas. A partir dela, levou algumas obras que criou para o Carnaval – por meio de painéis totens, projeções, animações e vídeos – ao Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, onde centenas de visitantes dançaram de mãos dadas uma grande ciranda na abertura, em 2018, e ao Centro Cultural Cais do Sertão, em Recife, ano passado.

Antes dessas duas mostras, porém, em visita ao Instituto Inhotim, em Brumadinho, Joana encontrou Freusa Zechmeister, arquiteta e figurinista de papel fundamental para a consolidação do Grupo Corpo. Corria o ano de 2017. Depois de se apresentar, papear e anotar contatos daquela que é braço direito dos irmãos (Rodrigo e Paulo) Pederneiras, fundadores da companhia de dança contemporânea mineira, a pernambucana enviou seu livro Outros Carnavais, que esmiuçava os bastidores da cenografia espalhada por ela pelas ruas de Recife. “Em julho do ano passado, quase dois anos depois, Freusa me liga”, recorda. “Primeiramente, me contou sobre o espetáculo Gil do Grupo Corpo que estrearia dali a um mês. Aí me disse que, ao folhear o meu livro, enlouqueceu com os desenhos e gostaria de adotá-los.”

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“Hoje, tenho muita consciência do meu trabalho. De que tudo começa pelo que me toca e acredito, depois passa pelo traço e, por fim, tenta virar afeto, ou purpurina, para transformar o outro.”

Joana se encontrava em Recife. Freusa, em Belo Horizonte, precisava dos desenhos naquele dia. Depois de ser atendida e receber um mega arquivo com todos os anos do Carnaval, a figurinista do Corpo decidiu desconstruir as criações da pernambucana, que só viu o resultado no camarim, poucos minutos antes da estreia do espetáculo. “Quase tive um ataque de tão maravilhoso foi o resultado. Freusa é gênia!”. Joana havia cedido suas criações. E, como presente, além de presenciar seus desenhos dançando colados nos corpos dos bailarinos, viu suas obras ganharem nova alma, nova maneira de acontecer, pelas mãos de Freusa a partir de composições inusitadas. Uma desconstrução artística que só gênios fazem com maestria. “Beijo o pé de pessoas que têm esse nível de sensibilidade para transformar o meu trabalho. Porque é uma forma de eu me renovar a partir da ação do outro”, afirma Joana.

Parceria entre Joana Lira e o Grupo Corpo.
Parceria entre Joana Lira e o Grupo Corpo. (Grupo Corpo/Divulgação)

E foi assim que o Carnaval dessa pernambucana, mãe de Joaquim, 14 anos, e Dora, 8, ganhou uma nova alma, forma de ser apresentado e emocionar. “Muitas pessoas, depois de assistirem ao espetáculo, me ligavam e escreviam. Recebi milhares de mensagens pelo Instagram. Gente que chorava com a beleza do figurino e da coreografia em homenagem a Xangô, com a dança, com Gil, que é nordestino e tem uma divindade em torno de si”, conta. A inusitada parceria com o Grupo Corpo é mais uma prova de como tradição e contemporaneidade reverberam nas criações de Joana e em seu desejo de expandir. “Não deve ter sido à toa que escolhi, lá atrás, o desenho de um coração (que inicialmente era apenas uma tatuagem afirmativa do meu amor próprio, em uma fase difícil da vida) como assinatura. Hoje, tenho muita consciência do meu trabalho. De que tudo começa pelo que me toca e acredito, depois passa pelo traço e, por fim, tenta virar afeto, ou purpurina, para transformar o outro.”

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