Na evolução social, estamos sempre buscando agregar todas as pessoas para vivermos em uma sociedade mais justa… Certo? Pois. Seria fácil demais viver se estivéssemos pensando no todo ao invés dos umbigos. A linguagem não fugiu disso. Aliás, não só não fugiu como vem enfrentando uma perseguição árdua que envolve política e o sistema legislativo. Uma verdadeira guerra cultural travada contra a neutralidade.
Antes de ser uma luta por direitos LGBTQIA+, essa discussão começou com questionamentos sobre o tal “masculino genérico”. Na língua portuguesa, que gentilmente herdamos dos nossos colonizadores, o gênero masculino é predominante. Você pode ter um grupo de 300 mulheres, mas se um homem estiver no meio, o pronome empregado será eles.
O professor e filósofo Adriano da Gama Kury já apontava essa discrepância no estudo O Machismo na Linguagem: A Concordância Nominal: “E lá vem a prepotência do masculino: nas enumerações de substantivos de gêneros diversos, mesmo que haja um só do masculino, é nesse gênero que fica, por norma, o adjetivo: ‘Havia papéis, gravuras, revistas e canetas espalhados sobre a mesa.'”
Percebemos que só o masculino pode ser neutro. Neste caso não tem briga. Agora, tente trazer uma palavra para o feminino para ver se o caos não é formado. Ou pior, tente tirar o gênero e neutralizá-lo de verdade. Socorro! Aí é marxismo ideológico, é radicalismo. Quem se atrever a remover o falocentrismo da linguagem está fadado a enfrentar a ira de… bem… homens.
A busca pelo equilíbrio e pelo entendimento da dualidade chegou para Pri Bertucci, artista social não binárie, educadore, pesquisadore e coautore do livro Dossiê de Linguagem Neutra Inclusiva, nos idos de 1999, quando passou a explorar as plantas de poder Ayahuasca, São Pedro e Peyote em rituais xamânicos.
“Minha compreensão da identidade de gênero não binário foi posteriormente influenciada por essa experiência quando morei em São Francisco, Califórnia. Essa profunda compreensão sobre dualidade e equilíbrio motivou meu ativismo na promoção da identidade de gênero não binária e linguagem neutra no Brasil, ciente de como as palavras moldam nosso pensamento e da necessidade de incluir mais formas de existências em nosso vocabulário”.
Pri Bertucci é CEO da [DIVERSITY BBOX] consultoria especializada em diversidade e equidade; é o fundadore do Instituto [SSEX BBOX], e cocriador do “Sistema Ile”, mais conhecido como linguagem neutra na língua portuguesa. Sendo um dos maiores precursores da sigla LGBTQIA+ no Brasil desde 2013, Pri é ainda idealizadore e produtore executivo da Marcha do Orgulho Trans de São Paulo.
“A resistência à linguagem neutra pode ser vista como uma resposta ao desconforto que algumas pessoas experimentam diante da mudança que esse tema representa. Ela desafia a narrativa tradicional do cisheteropatriarcado, alinhando-se com a crescente conscientização global sobre a diversidade de identidades de gênero”
Pri Bertucci
Pri afirma que, para entender essa evolução ou retrocesso, é crucial refletir sobre a citação de Octavia Butler que afirma que tudo o que tocamos, mudamos, e tudo o que mudamos, nos modifica. “A resistência à linguagem neutra pode ser vista como uma resposta ao desconforto que algumas pessoas experimentam diante da mudança que esse tema representa. Ela desafia a narrativa tradicional do cisheteropatriarcado, alinhando-se com a crescente conscientização global sobre a diversidade de identidades de gênero”.
A importância da linguagem neutra está basicamente na inclusão. Gali Galó, artista e cantore não-binárie, elenca três pontos principais nessa experiência: “Primeiro, existem pessoas que não se sentem confortáveis nem com pronomes masculinos, nem femininos. Em segundo lugar, é um primeiro passo para desmistificar a ideia do todos em que o masculino sempre prevalece com relação aos outros gêneros. E, terceiro, fazer intervenções na nossa própria língua é muito rico, afinal, ela é viva e reflete a evolução da nossa sociedade”.