evolução

Guerra da linguagem (neutra)

O que era para ser inclusão social virou uma batalha cultural

por Gabriela Rassy Atualizado em 15 nov 2023, 15h06 - Publicado em 8 nov 2023 20h22

Na evolução social, estamos sempre buscando agregar todas as pessoas para vivermos em uma sociedade mais justa… Certo? Pois. Seria fácil demais viver se estivéssemos pensando no todo ao invés dos umbigos. A linguagem não fugiu disso. Aliás, não só não fugiu como vem enfrentando uma perseguição árdua que envolve política e o sistema legislativo. Uma verdadeira guerra cultural travada contra a neutralidade.

Antes de ser uma luta por direitos LGBTQIA+, essa discussão começou com questionamentos sobre o tal “masculino genérico”. Na língua portuguesa, que gentilmente herdamos dos nossos colonizadores, o gênero masculino é predominante. Você pode ter um grupo de 300 mulheres, mas se um homem estiver no meio, o pronome empregado será eles.

O professor e filósofo Adriano da Gama Kury já apontava essa discrepância no estudo O Machismo na Linguagem: A Concordância Nominal: “E lá vem a prepotência do masculino: nas enumerações de substantivos de gêneros diversos, mesmo que haja um só do masculino, é nesse gênero que fica, por norma, o adjetivo: ‘Havia papéis, gravuras, revistas e canetas espalhados sobre a mesa.'”

Percebemos que só o masculino pode ser neutro. Neste caso não tem briga. Agora, tente trazer uma palavra para o feminino para ver se o caos não é formado. Ou pior, tente tirar o gênero e neutralizá-lo de verdade. Socorro! Aí é marxismo ideológico, é radicalismo. Quem se atrever a remover o falocentrismo da linguagem está fadado a enfrentar a ira de… bem… homens.

A busca pelo equilíbrio e pelo entendimento da dualidade chegou para Pri Bertucci, artista social não binárie, educadore, pesquisadore e coautore do livro Dossiê de Linguagem Neutra Inclusiva, nos idos de 1999, quando passou a explorar as plantas de poder Ayahuasca, São Pedro e Peyote em rituais xamânicos.

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“Minha compreensão da identidade de gênero não binário foi posteriormente influenciada por essa experiência quando morei em São Francisco, Califórnia. Essa profunda compreensão sobre dualidade e equilíbrio motivou meu ativismo na promoção da identidade de gênero não binária e linguagem neutra no Brasil, ciente de como as palavras moldam nosso pensamento e da necessidade de incluir mais formas de existências em nosso vocabulário”.

Pri Bertucci é CEO da [DIVERSITY BBOX] consultoria especializada em diversidade e equidade; é o fundadore do Instituto [SSEX BBOX], e cocriador do “Sistema Ile”, mais conhecido como linguagem neutra na língua portuguesa. Sendo um dos maiores precursores da sigla LGBTQIA+ no Brasil desde 2013, Pri é ainda idealizadore e produtore executivo da Marcha do Orgulho Trans de São Paulo.

“A resistência à linguagem neutra pode ser vista como uma resposta ao desconforto que algumas pessoas experimentam diante da mudança que esse tema representa. Ela desafia a narrativa tradicional do cisheteropatriarcado, alinhando-se com a crescente conscientização global sobre a diversidade de identidades de gênero”
Pri Bertucci

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Pri afirma que, para entender essa evolução ou retrocesso, é crucial refletir sobre a citação de Octavia Butler que afirma que tudo o que tocamos, mudamos, e tudo o que mudamos, nos modifica. “A resistência à linguagem neutra pode ser vista como uma resposta ao desconforto que algumas pessoas experimentam diante da mudança que esse tema representa. Ela desafia a narrativa tradicional do cisheteropatriarcado, alinhando-se com a crescente conscientização global sobre a diversidade de identidades de gênero”.

A importância da linguagem neutra está basicamente na inclusão. Gali Galó, artista e cantore não-binárie, elenca três pontos principais nessa experiência: “Primeiro, existem pessoas que não se sentem confortáveis nem com pronomes masculinos, nem femininos. Em segundo lugar, é um primeiro passo para desmistificar a ideia do todos em que o masculino sempre prevalece com relação aos outros gêneros. E, terceiro, fazer intervenções na nossa própria língua é muito rico, afinal, ela é viva e reflete a evolução da nossa sociedade”.

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Desmasculinizando em 3, 2, 1

A demanda de desmasculinizar o idioma existe há décadas pelo mundo afora. A ascensão feminina a cargos antes ocupados por homens já promoveu parte da mudança. Não só na língua portuguesa, mas na francesa, italiana e em diversas outras, o feminino de profissões como ministro, médico e advogado nasceu. Presidenta é um exemplo que ainda pena para ter aceitação de ~algumas pessoas~.

“No Brasil, a linguagem neutra enfrenta críticas devido às raízes culturais profundas da língua portuguesa na binariedade de gênero, além de desafios sociais e políticos em meio ao crescente debate sobre identidade de gênero e diversidade. A desinformação também contribui para essas críticas, muitas vezes sem fundamento, com muitas pessoas desconhecendo completamente o funcionamento e a fundamentação do movimento da linguagem neutra”, aponta Pri Bertucci.

A linguagem neutra ganhou espaço para ser discutida por essas terras há mais de 40 anos. “Os primeiros registros que tive acesso foram sobre o caso das travestis do estado de São Paulo usando pronome neutro ‘elo’ nos anos 1970. Nos anos 2000, as travestis começaram a usar @ em alguns eventos”, conta Ophelia Cassiano, criadore do Guia para Linguagem Neutra e referência no tema.

A ideia da linguagem neutra é justamente evitar que um grupo composto por diversas pessoas diferentes seja tratado no masculino. Além de desmasculinizar a língua, a proposta é abraçar pessoas que não se identificam nem como homens, nem como mulheres: pessoas não-binárias.

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“Oras, ninguém mais fala vossa mercê como antigamente. Como disse, a língua é viva e evolui de acordo com nossa sociedade, é por isso que deve ser constantemente atualizada, afinal, ela é o reflexo de quem somos. E se quem somos necessita da linguagem neutra, então ela deve existir”
Gali Galó

“Se ‘discriminar’ significa ‘separar e não misturar’, a linguagem neutra não discrimina as pessoas. Na verdade, ela para de discriminar as pessoas em dois grupos sexistas. Grupos estes que recebem tratamento e respeito de formas bem diferentes. Por isso, a origem do machismo é o binarismo”, escreve Ophelia.

U pesquisadore explica ainda que existem povos originários/indígenas pelo planeta todo que, em suas culturas, sempre aceitaram a existência de dois gêneros. Até no latim, que dá origem aos idiomas latinos, existe gênero neutro, bem como em línguas do tronco anglo-saxão. “A linguagem binária que temos hoje é fruto de uma colonização patriarcal e machista. Sistema que apagou várias culturas, modificando suas organizações sociais, políticas e até religiosas. Implantando na língua o Masculino Genérico, reafirmando essa ideologia dominante”.

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Para elu, o reconhecimento das identidades não-binárias perpassa pela necessidade de debater sobre linguagem neutra e solucionar tais questões, assegurando os direitos a essas minorias. “Direitos esses que ajudam não somente as pessoas trans não-binárias, mas as crianças intersexo que são educadas para serem meninos ou meninas, sem outra opção”.

Na experiência de Gali Galó, muita gente, inclusive, faz piada e descredibiliza a linguagem neutra. “Oras, ninguém mais fala vossa mercê como antigamente. Como disse, a língua é viva e evolui de acordo com nossa sociedade, é por isso que deve ser constantemente atualizada, afinal, ela é o reflexo de quem somos. E se quem somos necessita da linguagem neutra, então ela deve existir”.

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Não mexe no meu O

No início de 2023, integrantes do governo Lula passaram a incluir pronomes neutros em suas apresentações. Um simples “boa tarde a todas, todos e todes” deu início a uma guerra da linguagem.

Cerca de 25 projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados tentam barrar o uso da linguagem neutra. Pelo menos sete foram propostos pelo Partido Liberal, aquele que está sempre estimulando debates essenciais para a sociedade brasileira, como a obrigatoriedade do suco de uva integral na merenda escolar proposta por Bibo Nunes, deputado eleito pelo Rio Grande do Sul e hoje o maior produtor da bebida em todo o Brasil.

O embate é travado apenas do lado da oposição, já que não existem projetos de inclusão da linguagem neutra ou não-binária em curso. Ou seja, não existe corpo docente levantando bandeira em prol da inclusão ou grupo marginalizado lutando. Existe apenas uma galera que, com a queda do mito da mamadeira de piroca, passou a buscar um novo foco para mostrar o quão atrasada segue parte da sociedade.

Como era de se esperar, o tema caiu nas graças de outros partidos de direita ou centristas, como o União Brasil e o PDT, que inclusive (em teoria) fazem parte da base do atual governo Lula. “O conceito de linguagem neutra é fruto da ideologia de gênero, a qual ensina que o sexo biológico não é o suficiente para definir a sexualidade humana. Sendo que meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos”, diz a justificativa de uma das propostas publicadas pela deputada federal Dani Cunha (União-RJ).

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

“Há órgãos que se lançam em campanhas de ‘conscientização’ da sociedade com relação a determinados temas que em nada se relacionam com suas atividades administrativas e, pior, muitas vezes servem como suporte a uma determinada causa partidária ou ideológica”, afirmou o parlamentar e pré-candidato à prefeitura de São Paulo Kim Kataguiri à Agência Câmara de Notícias.

O detalhe é que o mesmo Kim Kataguiri propôs um PL para defender a “liberdade de expressão” e justificar falácias que atendem aos seus próprios interesses. “Uma sociedade livre é uma sociedade em que todos podem criticar quem quer que seja e falar sobre tudo”, aponta na justificativa do projeto. Será, Kim?

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Se para alguns a inclusão social carrega em si uma luta por direitos humanos, para outros é uma ferramenta a ser combatida. Daí nos deparamos com o grande oceano que divide progressistas e conservadores. Como os nomes já apontam, uns preferem progredir e outros manter. Está tão bom, por que mexer? Estou aqui no topo da (minha) cadeia, por que mudar?

“O movimento trata da inclusão de todas as identidades de gênero e de um possível salto quântico em nossa percepção de nós mesmos ao desafiar a ideia de que existem apenas as categorias de HOMEM e MULHER. Isso não apenas coloca em xeque, mas também suscita curiosidade sobre os nossos valores como sociedade. O movimento é disruptivo em diversos níveis”, pondera Pri.

Elu ainda vê nessas críticas uma contribuição para, em certa medida, fortalecerem “o avanço do debate, viralizando o assunto e despertando o interesse das pessoas em relação a ele”. Pri enxerga na linguagem neutra “um convite para uma percepção mais ampla e resiliente do mundo, e o compartilhamento de informações embasadas desempenha um papel fundamental na transformação da percepção pública, impulsionando a aceitação dessa ferramenta poderosa para promover a inclusão e o respeito às diversas identidades de gênero.

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“Apesar de ser uma pessoa não-binária, eu faço uso dos pronomes masculino e neutro. Nem toda pessoa não binária usa pronomes neutros, inclusive. Então quando me tratam no feminino eu sinto ódio hahaha. Quando me tratam no masculino ou no neutro, eu sinto amor. Simples assim”, pontua Gali Galó.

No final parece que a linguagem neutra provoca mais do que uma mudança linguística. Ela traz para a luz a existência da diversidade, de outras visões de mundo e de sociedade. Por isso assusta. Porque cada pessoa busca ser o que é.

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Guia da Linguagem Neutra

Existem dois materiais interessantes para se aprofundar no tema. O Guia da Linguagem Neutra, desenvolvido por Ophelia Cassiano de 2016 até seu lançamento, em 2019, e que contém mais de 80 regras gramaticais; e o Dossiê de Linguagem Neutra e inclusiva, compilado da pesquisa de Pri Bertucci, artista social, e com novos capítulos desenvolvidos por co-autories como Amanda Monteiro, Francesco Crisci, Jaqueline Gomes de Jesus, Mikkel Mergener Mendes e Paula Ramos Pacheco.

Aprendizagem
Reconheça que as discussões sobre linguagem neutra e identidades de gênero podem ser novas e desafiadoras para muitas pessoas. Esteja disposte a aprender e a expandir sua compreensão.

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

Respeito e a empatia
Trate todas as pessoas com respeito, dignidade e empatia, independentemente de sua identidade de gênero. Lembre-se de que todes merecem ser reconhecides e tratades com igualdade.

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Desafie as normas
Use o Todes, o Juntes e a linguagem neutra sempre que possível.  Questione as normas de gênero tradicionais e esteja aberte a desafiar os ambientes e estereótipos de gênero em sua própria vida e em sua comunidade.

“X” ou “@” não!
Usar essas duas possibilidades mais atrapalha do que ajuda, já que é impronunciável e capacitista, prejudicando PCDs que utilizam programas de leitura, além de atrapalhar pessoas com dislexia.

Sistema Elu
O pronome neutro Elu e suas inflexões delu, nelu, aquelu, elu mesme representa e inclui as pessoas não-binárias, intersexo, de gênero neutro ou indeterminado. Vale também no plural Elus.

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Regra do E
A maioria das palavras de gênero neutro terminam com a letra “e”, mas claro que para algumas palavras a simples troca do final não funciona e portanto existem regras específicas. Um exemplo é amigue, que inclui o “ue”, e médique, que além da inclusão, altera a letra “c” pelo “q”.

Substantivos uniformes “sobrecomuns” (de apenas um gênero) não são neutralizáveis.
Galera → Galera
Indivíduo → Indivíduo
Criança → Criança

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Neutra por excelência – Como ser gentil e não binarizar as pessoas?

Você está toda molhada. → Você se molhou totalmente.
Você é biólogo? → Você se formou em biologia? / Você trabalha com biologia?
Você está registrada. → Registraram você. / Seu registro foi feito.
Eu estou cansada disso. → Já me cansei disso. Sinto cansaço.
Estou preocupado com isso. → Isso está me preocupando.
Obrigada pelo aviso. → Agradeço o aviso.
Sejam bem-vindos! → Boas-vindas!
Você é linda. → Uma lindeza você é. / Sua aparência é maravilhosa. / Seu visual é incrível.
Tragam suas esposas e seus maridos. → Tragam companhia / acompanhantes / quem vocês quiserem
Não fiquem nervosos! → Calma, gente!
Nós estávamos quietos. → Estávamos em silêncio.
Quem são nossos representantes? → Quem nos representa? / Quais as pessoas que nos representam?

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

Mais do que palavras

Levamos um tempo para nos acostumarmos com tudo que é novo, e basta um pouco de treino para absorver novas palavras. Mas mais importante que isso é mostrar ao mundo que pessoas não-binárias existem. Se a linguagem nova é desconfortável para você, imagine para quem está se descobrindo? Tenha empatia e abra seu coração.

Amplie seu circulo

Tudo que não está na nossa vida parece mais estranho. Se dê a oportunidade de se aproximar de pessoas não-binárias, trans e LGBTQIA+ no geral. A convivência vai abrir sua mente e te trazer novas perspectivas.

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