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oda entrevista é uma conversa e, se for boa, pode ser também uma troca. De informações, de experiências, de pontos de vista. Toda entrevista boa, assim como toda conversa boa, tem o poder de transformar quem participa dela, quem de fato está disposto a escutar. E foi isso que aconteceu no dia em que, durante uma hora e meia, Luca Scarpelli conversou com a Elástica. A pandemia – sempre ela – impediu que o encontro fosse ao vivo, mas estarmos separados por alguns quilômetros e duas telas não impediu que o papo fluísse e que, ao apertar o botão vermelho da vídeo chamada, eu me sentisse um pouco transformado. E contar por quê isso aconteceu é permitir que, assim como eu, vocês também conheçam mais sobre a história e a vida do Luca.
O nome dele pode não ser familiar, mas provavelmente o título da empreitada que deu maior visibilidade a ele, é. Com seu canal Transdiário no YouTube, em que acumula mais de 180 mil seguidores, Luca dividiu suas dúvidas, seus aprendizados, seu conhecimento e seu processo de transição. Em meio ao turbilhão que é entender sua identidade de gênero e passar pelo processo de autoaceitação, de contar para a família, de se entender como homem no mundo depois de passar a maior parte da vida como mulher, Luca entendeu que aquela jornada, que era só dele, não era exatamente só dele.
“Comecei a transição em Lisboa, no ano de 2016, e minha grande angústia naquele momento era ter que ter a mesma conversa com todo mundo várias vezes. Lembro que, no Facebook, mudei meu nome – uma época, tinha só o sobrenome, sem nome nenhum – e percebi que algumas pessoas já vinham falar comigo, perguntar se estava tudo bem. E eu tinha que dar o mesmo texto toda hora. Era um saco”, ele lembra. Enquanto passava pelos questionamentos pessoais, Luca trabalhava como publicitário em uma agência em terras portuguesas e, por conta de uma campanha sobre HIV, conheceu o canal do criador de conteúdo Gabriel Comicholi, chamado H Diário, e teve a ideia. “Saquei que queria gravar vídeos sobre o que eu estava passando para compartilhar com os meus amigos. Porque iam acontecer mudanças físicas, as pessoas não iam me reconhecer quando eu chegasse no Brasil.”
O primeiro vídeo foi postado só no Facebook, para amigos mesmo, mas o caminho para o YouTube foi inevitável, “porque era bom ter um link para só enviar pra galera”, explica Luca, rindo. “Mas aí começaram a vir outras pessoas, e reparei que não ia ser tão simples explicar, porque as pessoas não sabiam nada sobre homens trans. E isso colou com uma necessidade de perceber que não existia um canal legal no Brasil sobre isso, só o do Ariel Modara. Se você não falava inglês, você estava ferrado, porque não ia conseguir consumir nada sobre transição.” A data do início do canal está fresca na memória até hoje – até porque, também foi o dia em que Luca se assumiu como homem trans em seu local de trabalho e também o dia em que começou o processo de hormonização: 1º de outubro. “Alguns vídeos fizeram um certo sucesso, aquilo começou a me animar, percebi que meu plano podia ir pra frente. Senti que tinha público procurando por aquele conteúdo.”