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Especial Manaus: morrer não é igual para todos

Na capital do Amazonas, a passagem para o outro lado da vida não foi celebrada com ritos tradicionais pela família da senhora Marcilene

por Erika Sallum Atualizado em 24 ago 2020, 00h45 - Publicado em 24 ago 2020 00h42
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rasil. Um país de extensão continental, e de sociedade extremamente fragmentada. Costumamos pensar que seu centro está em São Paulo. Nos consideramos mais economicamente e socialmente desenvolvidos, dizemos ser a força motora que carrega a nação nas costas. Brancos, ricos, culturalmente ligados às grandes metrópoles do mundo. Ingênuos, sem dúvida.

Praticamente todo coberto pela floresta Amazônica – dia mais, dia menos, em chamas –, o estado do Amazonas é o maior da federação. Alvo de disputas cada vez mais acirradas, ali está o futuro. De um lado, porque a mata preservada garante a sobrevivência mundial. Do outro, porque as reservas minerais debaixo do solo tornariam rico quaisquer homens gananciosos em busca de lucros fáceis, à revelia de muitas vidas inocentes, é claro.

Tão distantes que estamos de lá, chamamos os manauaras de atrasados, subdesenvolvidos; confundimos todos com índios, e os índios com selvagens que freiam o sonho de uma nação repleta de progresso. Rejeitamos suas mitologias em nome de um Cristo deturpado, não ouvimos as vozes dos seres que habitam a floresta, parecemos esquecer que a vida é como seu rio, que corre tranquilamente, que tudo passa em um ciclo infinito de paz.

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Embora o epicentro de disseminação do coronavírus no Brasil tenha sido em São Paulo, Manaus foi a primeira cidade a sofrer mais duramente com a doença ainda no primeiro semestre desse ano. Tornou-se uma espécie de laboratório macabro para as autoridades de saúde pública entenderem como proceder – ou não proceder, se você quiser observar pela ótica do descaso do governo – com o vírus. Até o fechamento dessa reportagem, 3.505 pessoas haviam morrido de covid-19 na cidade, com apenas três mortes nas últimas 24 horas. Pode não parecer muito, mas a precariedade em infraestrutura pegou a capital amazonense em cheio, causando pânico nos hospitais e tornando cemitérios em grandes valas a céu aberto.

Ao longo dessa semana, a Elástica publicará um especial em cinco partes realizado pelo fotógrafo Caio Guatelli e pela repórter Erika Sallum, retratando com profundidade uma realidade distinta da hiper higienização a qual nos acostumamos a assistir sempre que o noticiário aborda a pandemia. Não espere nada menos do que cenas fortes, como as que apresentamos aqui hoje, de um funeral realizado dentro da casa de uma família que perdeu sua matriarca pelo coronavírus. Se a recomendação e as leis pedem caixão fechado, o cancelamento de velórios e pouca aglomeração, no extrato mais baixo da pirâmide social brasileira a verdade é muito diferente.

A narrativa que você lê a seguir é ficcional, mas inteiramente baseada em relatos e observações que a reportagem colheu durante a visita à capital do Amazonas.

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Bela Adormecida

A tosse é inimiga da boa noite. Impossível descansar quando a garganta não te deixa em paz, e Marcilene já não aguentava mais. Era deitar, fechar os olhos e começar a sonhar – quase sempre sonhos com peixes grandes e igarapés poluídos – que ela acordava em sobressalto com a própria tosse. 

Não foi diferente nessa noite. Um par de pés negros de criança magra pisavam a beira de um rio sujo, com cheiro forte de produto químico, mas não a ponto de afastar boto cor de rosa. Boto naquele trecho de rio? Que estranho, Marcilene pensou. Pés de criança com fome, reparou, preocupada. Nem no próprio sonho ela esquecia a miséria. Vai ver era porque a comida ocupava cada vez menos espaço no prato da janta, desde que a patroa decidira que era melhor ela não “se arriscar por aí” e ficar em casa, sem trabalho, sem dinheiro e sem mistura. 

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Arran, arraaaaaaan, arraaaaaaaaaannn!

Quem consegue dormir com um barulho desse? Marcilene abriu os olhos, exausta, encarando a parede verde manchada de tinta barata. No chão, um tapete vagabundo emprestava um deslocado toque persa ao quarto mal iluminado. Pouco entrava luz ali de dia, através da única janela que dava para a parede de tijolo do barraco vizinho. Era noite ainda, de lua minguante tímida. Quarto abafado, o ventilador do lado da TV velha da patroa (“leva para você, não uso mais”) cismou de parar de funcionar, justo quando toda a família foi obrigada a não se arriscar por aí, sem trabalho e sem dinheiro. 

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Garganta ardida de tosse. Pulmão pesado. Cadê a garrafa de água que a filha passou a colocar perto da cama, junto de um balde de escarro e papel higiênico para assoar o nariz? Que castigo não conseguir dormir assim, valha-me, Deus. Sentou na cama com o corpo dolorido, suada de febre. Não se lembrava de não ter tirado a calça jeans, que aliás raramente usava naquele calor úmido sufocante, muito menos com a blusa verde de manga comprida. Respirou fundo, tentando tatear a escuridão da alma até encontrar força para levantar. 

De pé, achou o quarto bagunçado demais. Roupa espalhada no chão. Justo ela, tão organizada, a patroa sempre elogiava sua capacidade de deixar tudo limpo e arrumadinho. Também com tanta gente em casa o dia todo nos últimos meses, uma confusão sem fim.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Da cama até o corredorzinho que leva à cozinha, foi um pulo

Passou pelo pano azul que serve de divisória para os cômodos e sentiu um cheiro meio azedo. Fazia séculos que não lavava o pano (na verdade, uma colcha antiga que a patroa, tão boa, deu para ela quando renovou o enxoval). Desta tarde, não passa. Mesmo se sentindo fraca, iria desencardir cada pedacinho, ô meu pai.

O primeiro passo no chão vermelho da cozinha virou logo três passos para trás. Lá estava aquele troço enorme, que de tão comprido vazava pelos cantos da mesa. E em cima da única toalha nova, comprada na empolgação da raridade de ter um trocado a mais na carteira. Até que era bonito, de madeira, com uns desenhos e alça dourada na lateral. Mas a tampa bem que podia ter um pedaço de vidro, para gente se despedir direito do rosto querido que se vai, como o da mãe do marido da patroa, todo enfeitado de flor e maquiagem. 

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Não era uma tampa pesada, porém, e Marcilene sentiu o coração batendo mais rápido ao descobrir que não estava lacrada. Será que é chato dar uma espiada? Com todo respeito, claro, glória a Deus. Ninguém iria saber de nada naquela hora da madrugada… Queria era um café, mas não conseguia alcançar o pacote de Pilão no armário por causa do trambolho de madeira. Muito menos pegar água gelada, já que era impossível abrir a geladeira na cozinha entulhada.

O frio na espinha veio com tamanha força que Marcilene jogou parte do corpo para frente. As têmporas começaram a latejar com rapidez impressionante, e as pernas ficaram tão bambas que ela teve de se segurar na borda da madeira entalhada com motivos florais para não cair. 

De calça jeans e blusa verde, Marcilene se viu a uns palmos de distância de Marcilene de calça jeans e blusa verde. A outra ela mesma, de olhos fechados, não esboçou reação. Não tinha flor nem maquiagem. Apenas a madeira dura desconfortável escorando a cabeça despenteada. Daquele ângulo, parecia ter bem mais que 49 anos, uma vida dedicada a limpar tudo dos outros por ninharia, colchas antigas e TVs velhas. Estava descalça, tanto aqui quanto acolá, a mesma meia preta nos dois pares de pés negros magros com fome. 

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Procurou uma cadeira. Velório sem sentar, ninguém merece

Apoiou-se em um banco de plástico e ali ficou, cerimoniosa, como se deve ser diante dos mortos. O silêncio da noite, cortado de vez em quando por um cri-cri-cri monótono de grilo, até que era tranquilizador. 

Mesmo sem água, a tosse parou. Tão esquisito quanto o boto rosa no rio poluído, foi só cruzar o pano-porta para nunca mais tossir. Agora respirava melhor, com pulmão mais leve. E sem febre! Agradeceu ao Senhor pela graça alcançada, nem dando bola para o cheiro azedo que, não havia como negar, não vinha da divisória de tecido azul.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Encostou o ombro na parede, tentando manter a postura respeitosa que a situação exigia. Sem perceber, acabou invadida por igarapés contaminados, peixes enormes e corpos desnutridos, em um vai-e-vem de cenas amazônicas inebriantes e miseráveis. Como a outra Marcilene no recinto, fechou os olhos, despenteada. 

Fazia tempo que não dormia tão bem

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Fim.

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