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Especial Manaus: a sina de ser manauara

A capital amazonense sofreu com a pandemia do coronavírus durante o primeiro semestre desse ano. Entenda algumas das causas que agravaram o problema

por Erika Sallum Atualizado em 27 ago 2020, 17h06 - Publicado em 25 ago 2020 00h35
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ara ser manauara, é preciso ter fé na vida, como naquela música do Milton. Na capital do Amazonas, cerca de 66 mil pessoas moram em áreas de risco, segundo o Serviço Geológico do Brasil. Desde sua fundação, no século 17, para marcar a presença portuguesa na região, a cidade se desenvolve à base da improvisação. Ali, carência e falta fazem parte do cotidiano da grande maioria dos habitantes. Dados do IBGE divulgados em maio deste ano revelaram que Manaus possui mais da metade de seus 653.218 domicílios localizados no que o instituto chama de aglomerados subnormais, ou seja, ocupações precárias como favelas, vilas de palafita, invasões. É a maior proporção de moradias em condições sub-humanas entre todas as capitais do Brasil. A pandemia, que atingiu fortemente a cidade logo nos primeiros meses, veio apenas somar desgosto ao dia a dia sofrido de quem vive perto de rios sujos, cercado de lixo por todos os lados, sem saneamento adequado, como se pode ver neste ensaio de Caio Guatelli. Para aguentar a sina de ser manauara, só mesmo com raça, gana e manha.

Esta reportagem é a segunda parte de um especial que publicaremos durante toda a semana aqui na Elástica. A primeira, sobre um funeral realizado em casa contra todas as normas de segurança devido à pandemia do coronavírus, você confere clicando aqui.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Em Manaus, as pessoas estão sempre muito próximas umas das outras, seja na favela, no ônibus, no porto ou no mercado municipal. É praticamente impossível pensar em distanciamento social nesse caótico amontoado de gente. Ali, as camadas mais pobres nascem, vivem e morrem empilhadas.”

Caio Guatelli

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Por algumas semanas, o fotógrafo paulistano esteve na cidade para registrar o impacto da crise do coronavírus no dia a dia dos manauaras. Visitou hospitais em luta para salvar pacientes de covid. Perambulou pelo maior cemitério local, documentando o sofrimento de quem não pôde nem mesmo se despedir direito dos parentes. Fotografou a morte de perto, que em Manaus muitas vezes se dá dentro de casa, sem assistência médica ou ajuda do governo. E, principalmente, embrenhou-se pelas ruelas de uma das maiores favelas locais, no bairro de Educandos.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

A comunidade herdou esse nome de uma escola de artes e ofícios, aberta no século 19. Dividida por um igarapé e morros, a favela tem os barracos tão espremidos uns nos outros que, em 2018, a explosão de uma panela de pressão em um deles destruiu outros 600 em poucas horas. O terreno elevado faz com que as construções de madeira se empilhem de tal forma que o chão de uma praticamente termina no teto de outra. Quem não tem a sorte de conseguir um espaço em terra firme acaba erguendo a casa em cima das águas, onde desembocam toneladas de sujeira e lixo.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

No igarapé de Educandos, o lixo plástico de garrafas e embalagens é tamanho que tudo vira um enorme esgoto multicolorido que boia em uma água preta viscosa e fétida.”

Caio Guatelli

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(Caio Guatelli/Fotografia)

As imagens de Guatelli, no entanto, vão muito além do simples registro da miséria extrema. A curiosidade com quem as lentes do fotógrafo espia janelas e barracos nos levam à vida privada de quem mal tem casa para preservar a intimidade. Em suas fotos, a pobreza refletida nas águas poluídas do Rio Negro ganha um ar onírico, que faz surgir um invertido mosaico de formas e cores que transforma o drama cru da vida real em uma espécie de pintura surrealista. Está lá a ingenuidade analógica das crianças morenas que ainda brincam de pular corda, assim como a beleza do ofício dos pescadores fluviais. Através de sua câmera, somos presenteados com o afago no gato de estimação, com a sensualidade transgênera captada quase sem querer, e até com a dor ao ver o recorte de pés — o de um periquito aprisionado e o de um manauara descalço, também fadado a ficar preso em dados de subdesenvolvimento do IBGE. E assim, mesmo com tanto descaso e abandono político, vislumbramos a graça manauara, que traz na pele a marca e a estranha mania de ter fé na vida.

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(Caio Guatelli/Fotografia)
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(Caio Guatelli/Fotografia)

Manaus é calor, umidade, pobreza. Braços de rios sujos entrecortam a cidade, e as pessoas vão construindo suas casas em palafitas e caminhos suspensos sobre a sujeira. A vida em cima do esgoto passa a ser normal. Não há como evitar vírus novos onde já existem milhões de vírus antigos afetando a saúde da população.”

Caio Guatelli

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(Caio Guatelli/Fotografia)
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