É comum ouvirmos, na nossa sociedade, sobre o masculino como o gênero no poder. No Brasil, por exemplo, o homem ocupa 85% do Congresso Nacional e 87% dos cargos de CEOs. Mas se o patriarcado permite que o homem garanta para si todos os benefícios que o poder tem a proporcionar enquanto ele segrega, limita, exclui e mata mulheres – uma mulher é morta, vítima de violência, a cada 2 horas em nosso país (Monitor da Violência, 2019) – também nos compele a pensar sobre quem ocupa o topo dessa pirâmide.
Afinal, de quem estamos falando quando falamos do homem assim, no singular?
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“O modelo de masculinidade hegemônica patriarcal é baseado no homem branco, e em um modelo muito específico de homem branco. Que é o homem branco, cisgênero, hétero, detentor de riquezas, de posses. Próprio do poder, uma figura muito ligada à do coronel, que é esse lugar que o colonialismo traz”, explica Túlio Custódio, sociólogo e curador de conhecimento.
“O modelo de masculinidade hegemônica patriarcal é baseado no homem branco, e em um modelo muito específico de homem branco. Que é o homem branco, cisgênero, hétero, detentor de riquezas, de posses”
Túlio Custódio
Embora expressões como “homem é tudo igual” façam parte do imaginário popular, não é preciso ir muito longe nos números para entender que não é bem assim. Quando se trata da distribuição de renda no Brasil, por exemplo, raça tem mais impacto que gênero. Os homens e mulheres brancos recebem, em média, R$ 3.138 e R$ 2.379, respectivamente. Com renda ponderada de R$ 1.762, os homens negros ficam abaixo das mulheres brancas e são seguidos pelas mulheres negras, com R$ 1.394 (PNAD 2018).
Quando olhamos para a escolaridade, um marcador que costuma evidenciar o acesso a oportunidades, os homens negros são o grupo que mais vivencia o abandono educacional, já que 44,2% dos jovens negros, entre 19 e 24 anos, não concluiu o ensino médio. Entre os brancos, o número é de 29,4% (PNAD 2018).
“O principal impacto que essa construção clássica do homem tem sobre as construções dos homens negros é o do não lugar”, acredita o advogado Joel Luiz Costa. “Você está sempre correndo atrás de uma imagem que nunca irá alcançar, porque existe quem você é, existe o lugar que é vendido como o de um homem ideal, e não há uma ponte efetiva que te ligue a esse lugar. Independente do que você venha a fazer – seja uma ascensão financeira, uma ascensão profissional, uma ascensão intelectual –, nada disso te tira do lugar do homem negro, e nada disso te leva ao lugar do homem branco”.
À margem dos pilares que sustentam a estrutura do patriarcado, os homens negros costumam protagonizar o outro extremo, composto por prisões e cemitérios. A cada três presos encarcerados no Brasil, dois são negros (14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública). A cada 100 pessoas assassinadas no país, 75 são negras, e os homens negros têm, de acordo com o Atlas da Violência 2020, 74% mais chance de serem vítimas de homicídio. Nós matamos e morremos em busca de fazer parte de uma estrutura social em que os mecanismos do sucesso, em sua maioria, não estão disponíveis para a negritude.
“Muitos de nós, homens pretos, ainda buscamos os padrões de sucesso a partir do que é entendido como sucesso dentro da lógica branca. Isso gera frustração, incapacidade e inadequação, além de nunca nos colocar em um lugar de prestígio como os “machos alfas”, pois o máximo que podemos chegar é no lugar de uma cópia imperfeita de homem branco”, explica o psicólogo Everton Mendes. “A branquitude define lugares de sucesso para homens pretos: música, arte e esportes. Muitos de nós vivemos em busca de sermos aceitos a partir desses lugares. Porém, quando não alcançamos, temos dificuldade de encontrar novos caminhos e acabamos desenvolvendo desordens psíquicas e nos distanciando do convívio social por inadequação”.
“A branquitude define lugares de sucesso para homens pretos: música, arte e esportes. Quando não alcançamos, temos dificuldade de encontrar novos caminhos e acabamos desenvolvendo desordens psíquicas e nos distanciando do convívio social por inadequação”
Everton Mendes
Um dos dados que costuma povoar a conversa sobre masculinidades no Brasil evidencia esse sofrimento psíquico. Embora muitas pessoas saibam que, em média, os homens cometem entre 3 e 4 vezes mais suicídio que as mulheres no país, poucas pessoas se dão conta de que os jovens negros, entre 10 a 29 anos, compõem o principal grupo de risco. Eles possuem 45% mais chances de suicídio que brancos na mesma faixa etária (Ministério da Saúde, 2019).
“O que é mais drástico na forma como essa construção patriarcal se apresenta na vida e na subjetividade de homens pretos é que ela trabalha para produzir seres matáveis. Nós, homens negros, somos matáveis fisicamente e também simbólica e subjetivamente. Nossa morte subjetiva se dá quando a única perspectiva do que é ser gente, do que é ser homem, está atrelada a essa experiência, essa identidade branca. E a nossa busca por essa masculinidade é também algo que acelera a nossa morte”, explica Roger Cipó, fotógrafo e colunista da Elástica. “Essa construção se utiliza de nós, homens negros, como arma. Produz homens negros que compreendem que a única forma de existir é a partir da produção de violência – e eu também estou falando dos homens negros lotados na polícia, que são utilizados pelo Estado contra outros homens pretos e, ainda que estejam em contingente menor na PM de São Paulo, são os que mais morrem”.
Achille Mbembe define esse cenário, de controle de corpos “indesejáveis”, como necropolítica. Para ultrapassar essa barreira, Cipó acredita que há a necessidade de rompimento com esse regime como um todo. “O homem negro é, penso eu, a principal ameaça do status quo. Homens negros ameaçam a humanidade de homens brancos e a humanidade de mulheres brancas, segundo a perspectiva deles. É muito importante que homens negros compreendam que precisamos romper com todas essas experiências de violência”.
“O homem negro é, penso eu, a principal ameaça do status quo. Homens negros ameaçam a humanidade de homens brancos e a humanidade de mulheres brancas, segundo a perspectiva deles. Precisamos romper com todas essas experiências de violência”
Roger Cipó
“Nós já sabemos que a condição patriarcal não compreende a nossa humanidade, a nossa identidade de ser homem. Muito pelo contrário, atua para nos matar. O nosso papel não deve ser buscar um lugar nessa mesa, porque não tem lugar pra gente nessa mesa. O nosso lugar é se alinhar a todo aquele e aquela que foi subalternizado pelo patriarcado, que é desumanizado pelo patriarcado, e trabalhar para romper com a estrutura como um todo”.