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O NFT conseguirá salvar os fotógrafos de videogame?

Photo mode, função popularizada para capturar imagens nos games, dá origem a nova linguagem criativa e gera debate sobre direitos autorais

por João Varella Atualizado em 3 dez 2021, 12h54 - Publicado em 7 jul 2021 00h11
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(Clube Lambada/Ilustração)

m jogo de videogame revela suas intenções conforme distribui funções pelos botões. No jogo de tiro Gears 5, por exemplo, o direcional serve para trocar de arma. Já para pilotar as naves de Star Wars: Squadrons o mesmo comando prioriza defesa, ataque ou velocidade.

O jogo de samurais Ghost of Tsushima, lançado em 2020 pela Sucker Punch, coloca no direcional para baixo a cura, essencial para se manter de pé em meio aos golpes de katana. À direita, portanto no mesmo nível de importância, aloja-se a câmera fotográfica. Ao ser ativado, o chamado photo mode congela o mundo: o rio para de fluir, a flecha interrompe a trajetória, os cavalos ficam estáticos.

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O jogador então passeia com a câmera pela cena. Oferece os ajustes típicos de uma câmera profissional: foco, zoom, profundidade do campo, exposição, entre outros. Como é uma obra digital, Ghost of Tsushima proporciona recursos de invejar Nikon e Canon. Dá para alterar expressões faciais, avançar a hora do dia, ajustar o clima, o soprar do vento.

Possibilidades que atraem fotógrafos, amadores e profissionais, a compor imagens nos deslumbrantes cenários japoneses de 1274, ano do início das invasões mongóis no arquipélago. Nos primeiros dez dias após o jogo ter sido lançado, 15,5 milhões de fotos haviam sido tiradas, ou 18 fotos por segundo.

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(Ilustração/Redação)

Interpretação do momento

“O público não quer só jogar, ele quer compartilhar as suas experiências”, afirma Rodrigo Pscheidt, fotógrafo virtual de Curitiba, dono do perfil Games Photo Mode. “Você transforma o momento de gameplay em algo único, é a sua interpretação daquilo. O céu é o limite a partir do momento que você congela a cena”.

As principais plataformas detectaram a importância das fotografias virtuais nos últimos anos. Os controles de Nintendo, Xbox e PlayStation dedicam um botão à captura de tela, permitindo composições mesmo nos títulos que não oferecem o modo foto.

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Há facilidades e dificuldades na foto “normal” e virtual. Clicar um momento específico de uma narrativa digital exige que o fotógrafo avance até o ponto desejado ou ainda destrave certos conteúdos. Ghost of Tsushima, por exemplo, fornece roupas ao protagonista conforme tarefas são concluídas. Pscheidt relata investir cerca de seis horas para obter uma dezena de boas fotos de qualidade para seu Instagram. “Isso que eu nem sou dos caras mais dedicados, tem fotógrafo que leva muito mais tempo”.

A nova expressão artística atrai nomes importantes da fotografia tradicional, como o inglês Pete Rowbottom, especializado em imagens de paisagens. Ele fez uma parceria com a Kojima Productions para explorar as imagens do estranhíssimo game Death Stranding.

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“Você transforma o momento de gameplay em algo único, é a sua interpretação daquilo. O céu é o limite a partir do momento que você congela a cena”

Rodrigo Pscheidt, fotógrafo virtual

Por mais que dê trabalho, há um entrave para o desenvolvimento dessa nova expressão artística: os fotógrafos não podem vender as fotos por questões de direitos autorais. Para parte da comunidade, isso é injusto. Streamers podem exibir o jogo inteiro em vídeo e lucrar com isso no YouTube ou na Twitch, enquanto que uma foto é apenas um frame. Um grupo tenta resolver esse impasse por meio do NFT, as três letrinhas que andam agitando o mundo da arte. Não Fuja desse Treco, hora de entender que parada é essa.

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Not for tourists

No princípio era uma imagem. No dia seguinte, surgiu outra imagem. Ao juntar 5 mil delas, o artista Beeple vendeu sua obra por US$ 69.346.250 (algo em torno de R$ 365 milhões). Com isso, tornou-se o terceiro artista vivo mais valioso. Perde para Jeff Koons, que fez uma escultura de aço em forma de coelho, e David Hockney, pintor de retratos com piscinas. Há uma diferença: a obra de Beeple pode ser facilmente copiada por qualquer um, basta pressionar Ctrl + C. O original é indistinguível da cópia.

Então, o cara que pagou é otário? Talvez. Definição de valor é uma espécie de ficção coletiva. Afinal, uma nota de R$ 100, em essência, é papel e tinta. Fato é que o NFT gira muita grana. Estima-se que, no primeiro trimestre de 2021, os NFTs tenham movimentado US$ 2 bilhões.

“Francamente, eu também não entendo. Não faz sentido para mim”, diz Will Gompertz, editor de arte da BBC e ex-diretor da galeria Tate. Everydays: the First 5000 Days (Todos os Dias: Os Primeiros 5000 Dias, na tradução direta) foi a primeira obra vinculada a um NFT a ser leiloada por uma casa tradicional, nesse caso a Christie’s.

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(Ilustração/Redação)

Desde então, NFT se tornou assunto do momento entre as galerias. “O NFT abre muitas novas oportunidades, você pode comercializar formatos que até então não faziam parte do seu acervo”, afirma Larissa Martina, sócia da galeria de arte contemporânea RV Cultura e Arte. “O colecionador fica mais confortável em comprar com essa certificação”.

O assunto saiu das galerias e tomou canais de TV, YouTube, como Primo Rico e Jovem Nerd, mídia impressa e redes sociais. “Por enquanto, a maioria dos NFTs parece ter levado menos tempo para fazer do que para olhar”, cravou o crítico de arte americano Jerry Saltz.

Provocação à parte, o NFT se alastrou das artes visuais para a música, livros, memes, Comandos em Ação (sim, os bonecos), agência de checagem, tuítes. Videogame, a mídia que nasceu digital, quer fazer parte dessa festa. Sega, a criadora do Sonic, e Square Enix, de Final Fantasy, anunciaram ações vinculadas ao NFT.

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Hora de definir

NFT é uma sigla em inglês de tokens não fungíveis. Token significa símbolo. Sim, é a mesma palavra daquele aparelhinho que alguns bancos usam para gerar senhas. No caso do NFT, token pode ser entendido como a representação digital de algo.

E aí vem o “fungível”, dos cafundós dos dicionários de língua portuguesa, significa algo que se gasta. Por extensão, descreve algo que pode ser substituído. Uma nota de R$ 5 pode ser trocada por cinco moedas de R$ 1, por exemplo. 

Aí vem o “não” do NFT. Trocando em miúdos, o NFT não pode ser trocado, é insubstituível. Trata-se de uma qualidade comum das artes plásticas. O Abaporu, da Tarsila do Amaral, não é fungível. Por mais que existam reproduções digitais, a peça da artista brasileira exposta no museu de Buenos Aires Malba é única. 

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(Ilustração/Redação)

Trocando em miúdos, NFT é um certificado digital associado a algo, uma garantia de autenticidade. A tecnologia permite replicar no mundo digital a escassez do plano físico.

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Se o NFT é o comprovante de propriedade, o cartório é o sistema de blockchain, que verifica e comprova as transações. As movimentações são acessíveis a qualquer usuário, praticamente em tempo real. É a mesma tecnologia por trás das criptomoedas, sendo o bitcoin a mais famosa delas. No NFT, a mais usada é o Ethereum, outra criptomoeda. 

Ninguém sabe quem inventou o blockchain. O código surgiu em 2009 firmado por um tal de Satoshi Nakamoto, que é um nome comum japonês, o João da Silva deles. 

É essa tecnologia que dá esperança para organizar o mercado de fotografia virtual.

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(Ilustração/Redação)
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Direitos e fotos

Nos anos 1980, publicar a imagem de um jogo em uma revista era um processo rudimentar. Em um quarto escuro, a câmera fotográfica simplesmente enquadrava a tela da TV e disparava, às vezes com auxílio de um videocassete para gravar a jogatina e facilitar a captura do instante decisivo.

A tecnologia evoluiu com as placas de captura. Até que o advento das fotografias digitais e as redes sociais empurraram os jogos a proverem soluções próprias para qualquer um fazer suas imagens – e postar nas redes, divulgando assim o jogo.

O modo fotografia cresceu nos últimos anos. Há em jogos independentes, como Rain on Your Parade, mas insere-se com mais frequência em grandes produções como Cyberpunk 2077, Assassin’s Creed Valhalla, Red Dead Redemption 2 e Forza Horizon 4.

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(Ilustração/Redação)

Os grandes destaques, no entanto, estão concentrados na plataforma PlayStation. Pudera, a Sony tem como bandeira o investimento em títulos de ponta. Jogos como Horizon: Zero Dawn, Death Stranding, Days Gone e o já citado Ghost of Tsushima já foram capa da The PhotoMode, revista mensal gratuita dedicada ao segmento. Cada edição apresenta os trabalhos de cerca de 40 artistas de todo o mundo.

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“Não aconselho vender fotos tiradas em videogames, meu entendimento é que isso viola os termos e condições do jogo. Os desenvolvedores trabalham com streamers, que obtêm os jogos gratuitamente, transmitem do início ao fim e ganham dinheiro. Nós, porém, não podemos vender um frame”

Alex, editor da The PhotoMode

O editor-chefe da publicação é Alex (só se apresenta com o primeiro nome). Morador do Reino Unido, antes da revista, em 2014, ele criou a GamerGram na PSN, a rede social dos jogadores de PlayStation, que reunia outros apaixonados por fotos de jogos. Porém, nenhum deles ainda ganha com o trabalho.

“Não aconselho vender fotos tiradas em videogames, meu entendimento é que isso viola os termos e condições do jogo”, afirma Alex, que qualifica a fotografia virtual como a ferramenta de publicidade gratuita de maior sucesso da história. “Os desenvolvedores trabalham com streamers, que obtêm os jogos gratuitamente, transmitem do início ao fim e ganham dinheiro. Nós, porém, não podemos vender um frame”.

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Uma publicação compartilhada por TPM Mag (@thephotomode_)

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Alex matura com seus companheiros de The PhotoMode uma proposta que tem como base o NFT. A proposta é que a cada venda o estúdio dono do jogo da foto da qual a imagem foi tirada recebe um pagamento de royalties instantaneamente, até mesmo na comercialização no mercado secundário, ou seja, quando é revendida. A rastreabilidade do blockchain permite isso.

“O potencial para os jogadores-fotógrafos criarem valor a partir de sua paixão é o motivo pelo qual estamos fazendo o que fazemos”, diz Alex, que ainda não tem uma data específica para a estreia da plataforma. Vai dar certo? Talvez.

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Fotógrafos virtuais para conhecer mais

Impasse de copyright e bufunfa à parte, os fotógrafos virtuais permanecem postando criações apaixonadas nas redes sociais, com fortes rasgos de autoria. O Pscheidt, do Games Photo Mode, indicou três:

@mesopotomian_meow

Só tira fotos da natureza selvagem de Red Dead Redemption 2, jogo de faroeste da Rockstar lançado em 2018:

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@shutter.game

Fotos cinematográficas do acrobático Homem-Aranha nos jogos da Insomniac. Dá para notar a preferência do artista pelo fundo escuro, um tratamento à iluminação da imagem:

@firescorpio_photo

Perfil no Instagram com pôsteres de algumas fotos de sua autoria. O artista adiciona logos, tipografias, entre outras intervenções. Já no YouTube ele aponta o que pode ser o próximo passo, a videoarte virtual:

Quem quiser mais vale seguir as hashtags como #gamingscreenshots #ingamephotography #gamecaptures #videogamephotos #vpcommunity #photomode para ter um pouco de fotografia virtual no feed.

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