Redescobrimos a caridade, mas estamos fazendo a coisa certa? Líderes religiosos explicam porque dar comida e esmola não ajuda em tempos de crise social
por Artur TavaresAtualizado em 14 set 2020, 17h05 - Publicado em
14 set 2020
00h11
Doar sozinho é me tirar pra bobo.” Essa foi a resposta que o deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) deu para a Rádio Gaúcha no último dia 20 de agosto, no auge de uma pandemia que já causou 130 mil mortes e prejuízos na ordem de 10% sobre a economia brasileira. Eleito sob o discurso crítico à quantidade de privilégios que a classe política tem, Bibo se enrolou para explicar à repórter que nenhum outro parlamentar do Congresso havia topado sua proposta de abrir mão de parte dos graúdos rendimentos que têm para retribuir à sociedade em tempos de auxílio emergencial, caos e desemprego, e que por isso não praticaria caridade também. Pimenta nos olhos dos outros é refresco, diria o ditado popular.
O sincericídio de Bibo Nunes – e a atitude dos outros parlamentares – não surpreende porque evoca a pior das qualidades humanas, uma que todos nós carregamos em certo grau: o egoísmo. Experimentamos essa existência individualmente, e por isso temos a impressão que somos o centro do universo de pessoas e coisas que nos cerca. Fomos ensinados buscar realização individual, então satisfação material é meta de vida. E, de vez em quando, deixamos isso claro em palavras, como o deputado fez, para lembrar-nos da nossa pequenez.
O exemplo que chega de Brasília nada mais é do que um reflexo de como estamos tratando a prática da solidariedade. Confundimos ajudar o próximo com dar dinheiro ao pobre; estendemos as mãos com moedas, não com o toque firme de quem deseja de fato contribuir. Damos para não precisar ouvir aos problemas dos outros, compramos consciência e silêncio sobre uma realidade devastadora de oprimidos, doentes, pessoas sem lugar para morar e que nunca terão oportunidades como as nossas em suas vidas.
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Um relatório divulgado em 2019 pela instituição britânica Charities Aid Foundation descobriu que 70% dos brasileiros faz algum tipo de doação financeira ao longo do período de um ano, e que essas pessoas o fazem principalmente dando o dinheiro para instituições sociais ou lugares de prática religiosa. Isso significa que, embora façamos algo, quem coloca a mão na massa são os outros. A pesquisa também diz que 50% dos entrevistados doa dinheiro porque se sente melhor, enquanto também associam a caridade à prosperidade, citando que dão dinheiro “para ter mais dinheiro”.
Se é mesmo assim, deveríamos estar praticando caridade? Será que ela funciona de verdade? Fomos perguntar para quem mais entende do assunto, líderes espirituais de diversas religiões, do catolicismo ao budismo, passando pelo islamismo e também o candomblé.
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Sobre epifanias e milagres
O sol ainda está em sua aurora quando a fila na porta da Paróquia de São Miguel Arcanjo começa a se formar. Diariamente, o Padre Julio Lancelotti e alguns voluntários abrem as portas da pequena igreja no bairro da Mooca, na região central de São Paulo, para distribuir comida e prestar socorro psicossocial aos moradores de rua e pessoas que vivem em área de risco no entorno. Um senhor de 71 anos, Lancelotti é o tipo de sacerdote non grato da Igreja Católica paulistana, com uma vida associada aos movimentos de base e à luta da esquerda, um incansável senhor que tenta religar os verdadeiros ensinamentos Jesus Cristo à nossa sociedade. “A proposta de Jesus para o amor não é de dar o que sobra. A caridade, para Ele, é a partilha, a não-acumulação. A caridade é partilhar a vida. É fundamental no cristianismo, mas a cristandade deturpou o conceito por motivos políticos e econômicos”, ele começa a explicar.
Para o padre, tudo remonta ao momento seguinte à crucificação de Jesus, quando o Império Romano percebe a força de Seus ensinamentos sobre o povo hebreu e decide se converter à nova doutrina que nascia na região da Judeia: “O pensamento do cristianismo foi atenuado e tornado inofensivo a partir do imperador Constantino, quando o Império Romano se tornou cristão. O império se tornou cristão, e os cristãos se tornaram imperiais. Então, a caridade passou a ser uma forma de amortecer as desigualdades, e de dizer para o povo que é preciso sofrer agora para ser feliz no Céu. Essa não é a proposta cristã. É uma proposta pseudocristã que entrou no cristianismo por ter sido deturpada pelo poder.”
“O pensamento do cristianismo foi atenuado e tornado inofensivo a partir do imperador Constantino, quando o Império Romano se tornou cristão. O império se tornou cristão, e os cristãos se tornaram imperiais”
Julio Lancelotti
Entender os atos de Jesus é, antes de tudo, entender como vivia a sociedade judaica daquele tempo, seus códigos morais e religiosos. Para eles, havia os puros e os impuros, sendo os primeiros aqueles que seguiam piamente as leis da Torá, e os segundos, os que não. No entanto, as castas socioeconômicas já atenuavam um problema que deveria ser apenas moral: “O judeu, quando vinha da praça, tinha um ritual para lavar as mãos. O povão, pobre, não podia fazer isso, assim como hoje os moradores de rua não têm acesso à água potável. Por isso, são considerados sujos, imundos, nojentos. No tempo de Jesus, o povo que não conseguia seguir as regras era considerado, como diz o Evangelho de João, ‘gente maldita’”, afirma Lancelotti. “Tudo aquilo que era estabelecido como ordem política, econômica e religiosa, Jesus contesta. Ele era religioso, piedoso, judeu, mas infringia todas as regras religiosas. Não se podia tocar no leproso. Jesus tocava. Não se podia ter mulheres como discípulas, Jesus tinha. Não se podia ter proximidade com os pecadores, e Jesus comia com eles. Tudo que Jesus fazia, infringia a lei.”
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Foi assim que, um dia, Jesus se encontrou no meio de uma grande multidão, em um entardecer. Seus discípulos lhe diziam para mandar o povo embora para comprar comida, porque anoitecia. E Jesus fala para não mandá-los embora: “Porque os discípulos de Jesus estão com a cabeça no comprar, e Jesus está ensinando a gratuidade. Eles dizem ‘nós só temos cinco pães e dois peixes, mas o que é isso para tanta gente?’. Cinco e dois, no judaísmo, quer dizer sete. Sete é tudo. Eles trouxeram tudo o que tinham, e falou para que todos se sentassem. Porque se sentar é um gesto de ser livre. Eles, que eram tratados como lixo, agora são livres. Jesus começa a repartir o tudo e dar para todos. E ainda sobra. O que Jesus está querendo dizer?”, questiona o Padre Julio. “O sistema da compra e da venda não sacia. O que sacia é a partilha do tudo. Quando vocês partilharem tudo, será suficiente para todos. Isso é a caridade de Jesus. Não é dizer: ‘tem cinco pães, come quatro e se sobrar um vocês quebram em pedacinhos e dão para eles’.”
Nessa confusão entre Igreja e política ao longo dos últimos 2 mil anos, os ensinamentos de Jesus ficaram atenuados a serviço dos poderosos, enquanto o povo nunca deixou de ser “gente maldita”. Contundente em sua crítica social, Lancelotti afirma, evocando o Papa Pio XI, que a política é a forma mais perfeita de caridade: “Porque faz o bem para todos, indistintamente. A política que tenha renda mínima para todos. Que tenha a reforma agrária. A reforma urbana. A política que não tenha exploradores e explorados. Isso é uma utopia cristã, é a doutrina social da Igreja.”
O sacerdote lembra também o Papa João Paulo II e sua encíclica Laborem Exercens, em que chama atenção para a acumulação e para o privilegiar o capital: “A chave para entender o mundo, de acordo com João Paulo II, é o trabalho e o trabalhador. A caridade cristã não é o trabalhador ser explorado. Não é desemprego. Não é a desigualdade. Não é o privilégio de 1% e a exploração de 99%.” No entanto, diz o padre, “como a Igreja geralmente quer estar de bem com o poder, ela atenua tudo isso. Mas sua doutrina social é clara. A patrística, os santos padres da igreja, desde os mais antigos, são contundentes na crítica social, e na crítica da acumulação, do capital. As pessoas criticam muito a Teologia da Libertação porque ela usa instrumentos de análise marxistas, mas muitos desses instrumentos já estão presentes na antiga tradição.”
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Antes da caridade, desigualdade
À frente da Paróquia de São Miguel Arcanjo há 35 anos, o Padre Julio Lancelotti é odiado por tantos quanto são aqueles que o adoram, mas nada disso lhe impede de adotar uma rotina de doação aos outros da hora que acorda até o momento em que vai dormir. Antes da covid-19, era figura carimbada em ações sociais em lugares como a Cracolândia, sempre atuando a favor dos rejeitados pela sociedade. Mesmo nos momentos de maior isolamento social dessa pandemia, ele não fechou as portas de sua igreja para a distribuição de comida e para as missas um dia sequer: “Nós vivemos em um mundo onde as desigualdades são perversas. E, alimentar esse povo que é considerado lixo é um ato político. Porque você está medindo a temperatura deles, está olhando para eles. A gente procura conhecê-los pelo nome, saber o que eles necessitam, ir ao encontro do que eles precisam. Isso é um ato de resistência contra esse massacre”, ele diz.
Quando fala em massacre, ele não hesita em dar nome aos bois: “Nos últimos anos, tenho visto um aceleramento da pobreza e da miséria, e é assim porque ela é planejada. O capitalismo é intencional no descarte, a lógica desse sistema é descartar. Não tem 1% com toda a riqueza por acaso, ou porque são mais trabalhadores. Tem porque esse sistema é injusto. Não existe jeito de humanizar o capitalismo. Ele é, por natureza, desumano. Então, o governo largar as pessoas para morrer na pandemia também é intencional. Porque, quando você implementa uma linha política necrófila, você sabe que muita gente vai morrer.”
Adepto da máxima de que “quem tem fome tem pressa”, cunhada pelo sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, Padre Julio Lancelotti diz que a caridade se torna um paliativo enquanto esperamos uma revolução social que parece nunca vir. Isso porque “a caridade nem sempre traz um sentimento de comunidade, ou consciência social. Porque para isso você precisa mudar de lugar social. Muitas vezes, as pessoas doam alguma coisa mas não doam a si mesmas. E não buscam uma transformação social. Nossa experiência é de não-solidariedade, enquanto a solidariedade cristã tem que ser transformadora.”
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A lei de Deus e a conduta dos homens
Um dos períodos mais importantes do ano islâmico é a comemoração do Ramadã. Durante um mês completo, muçulmanos em todo o planeta praticam jejum desde o nascer do sol até os primeiros raios de luar, quando eles então se juntam irmãos para praticar a entrega de comida. Em 2020, o Ramadã caiu no mês de abril, e o feriado sagrado nunca foi tão atribulado na mesquita Sumayyah Bint Khayyat.
Localizada em Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo, foi a primeira mesquita brasileira a estar dentro de uma comunidade de baixa renda. Enquanto um enorme templo da Congregação Cristã do Brasil bem em frente da Sumayyah Bint Khayyat fechou logo nos primeiros dias de isolamento social, as portas do local de adoração ao Islã viu suas atividades triplicarem no mesmo período: “Pensamos em não realizar o iftar [a distribuição de alimentos] durante o Ramadã, mas então mudamos o formato e passamos a entregar marmitas. Começamos com 60 por dia, mas foi aumentando até 220 marmitas entregues. Ao todo, entregamos 3.5 toneladas de cestas básicas. Uma coisa foi puxando a outra. De março até agosto, entregamos 20 mil marmitas. Agora paramos, e estamos apenas dando as cestas básicas”, diz o ativista César Kaab Abdul, à frente da mesquita.
Na tradição islâmica, o culto à palavra de Deus está no Alcorão, um livro que deve ser apenas lido em árabe. Assim é para evitar desvios linguísticos que possam ser possivelmente causados por maus intencionados com as leis divinas. Os princípios fundamentais das escrituras são de doação, explica César: “O Alcorão sagrado foi revelado para um homem iletrado, Maomé, onde o preceito maior é a caridade. A maioria de suas suratas tem como embasamento ajudar ao próximo. Em um dos ditos do profeta, chamados hadith, ele afirma que não se pode dormir de barriga cheia enquanto seu vizinho está com fome.” Ao longo do texto, o livro sagrado ressalta em diversos momentos que uma boa adoração é praticada com a expressão de boas condutas perante os outros: “No Alcorão, é dito que você tem a obrigação de ajudar todas as criaturas de Deus. Não se fala em muçulmanos. Não há distinção. Essa é a palavra deixada pelo profeta Maomé e também pelo profeta Jesus.”
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“Em um dos ditos do profeta, chamados hadith, ele afirma que não se pode dormir de barriga cheia enquanto seu vizinho está com fome”
César Kaab Abdul
Na Sumayyah Bint Khayyat, a rotina cotidiana de solidariedade antes da pandemia já incluía distribuição de remédios através de uma farmácia própria e cursos para moradores da comunidade: “Quando se fala em caridade, já imaginamos as pessoas com as mãos estendidas. É muito mais do que isso. Trata-se do posicionamento educacional, de auxiliar uma pessoa a arranjar um emprego. Tem que ser tratado com essa amplitude”, diz Kaab.
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Doar traz riquezas?
O que explica metade dos brasileiros acreditarem que doar dinheiro traz mais benefícios pessoais? Em 1710, em seu livro “A Riqueza das Nações”, o britânico Adam Smith já fazia uma análise: “Não é da benevolência do açougueiro, cervejeiro ou padeiro que garantimos nosso jantar, mas da preocupação deles com o próprio interesse. Não devemos nos dirigir à humanidade deles, mas ao amor próprio, e jamais falar das nossas necessidades, mas sim das vantagens que eles têm a receber.”
Um dos fundadores do liberalismo econômico, Smith já ligava a caridade a um exercício de autoindulgência do próprio capital, em um momento em que a Europa passava por uma revolução protestante na sociedade, uma cultura religiosa cuja uma das máximas é a de que o trabalho enobrece o homem. “O neoliberalismo não é só um sistema econômico, social ou político. É também cultural. Introjetamo-nos os conceitos do neoliberalismo. O neoliberalismo tem um léxico, uma gramática e uma epistemologia. O meu olhar é neoliberal. Eu olho para as pessoas a partir de ‘o que vou ganhar ajudando esses vagabundos? Porque faço isso se não vou ganhar nada?’”, explica o Padre Julio Lancelotti.
Enquanto Lancelotti é firme ao sustentar que existem “pessoas antiéticas” praticando caridade, Kaab vai por caminho semelhante ao dizer que há uma busca pela própria exaltação: “A caridade tem que ser um ato de adoração a Deus, e não para mostrar para os homens que é isso ou aquilo. Você não pode ajudar as pessoas se você não se ajuda. Não é fazer por fazer, e sim porque você busca algo maior. Essa vida mundana é passageira, e passa muito rápido. Não vai ser o elogio que garantirá um bom lugar pra você em outra vida.” Isso se mostra, segundo ele, “com a maneira que você trata as pessoas quando você vai pegar um Uber, ou se você cede o lugar para uma senhora no ônibus, ou quando empresta algo para seu vizinho sem interesse mesquinho.”
Doutor em semiótica e linguística pela USP, professor pela Unicamp e babalorixá no Candomblé, Sidnei Nogueira é um dos maiores críticos da atualidade em relação à prática de caridade. Com um trabalho extenso sobre racismo e violência contra os povos pretos através da colonização, ele não desassocia a doação ao capital: “O capitalismo é uma coisa que onde passa não nasce grama. Se existiu o Diabo, o qual eu não acredito, ele pode receber o nome de capitalismo. Na minha cultura, não acreditamos no Diabo”, ele inicia sua fala. “Quando digo que não acreditamos em caridade, fica parecendo que só nela há verdade, solidariedade, cuidado, atenção e igualdade. Nós, do candomblé, acreditamos em uma ética coletiva. Está muito associada à noção de Ubuntu, de eu sou porque você é, nós somos juntos, você é porque eu sou.”
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Para Nogueira, “caridade é mais uma estratégia do capitalismo para dizer que você é superior e pode comprar conforto a partir da possibilidade de impor um pouquinho de benção cristã àquele que pode menos. Isso não resolve nada. A caridade é boa para quem dá dinheiro e cesta básica, não para quem recebe. Não estou dizendo que não devemos fazê-lo, mas não vamos mentir e dizer que estamos reduzindo a desigualdade. Não é o Luciano Huck com sua palhaçada de reformar casa que está resolvendo a desigualdade social do Brasil.”
No candomblé, um dos aforismos de Exu diz que a banca do mercado tem dois lados. “O que isso quer dizer? Que a banca do mercado deve manter os dois lados. Você não vai comprar um dos lados. Não pode ofertar mais do que pode receber. Isso quer dizer que você vai para a feira com 1 kg de inhame e traz uma galinha de 1 kg. Deve ser sempre uma troca. Há uma noção na caridade muito nociva, que é a noção de acúmulo de capital emocional. Mais uma vez estou comprando. Dessa vez, meu conforto, minha superioridade, a possibilidade de comprar. É melhor que eu gere possibilidade de compra para o outro. Esse é o tipo de mudança social na qual o candomblé acredita. Preciso dividir não o que eu posso comprar, e sim a minha capacidade de compra”, diz Sidnei.
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Lições dos terreiros
Um dos maiores líderes africanos da contemporaneidade, Nelson Mandela afirmava que “o Ubuntu não significa que uma pessoa não se preocupe com o seu progresso pessoal. A questão é: o meu progresso pessoal está ao serviço do progresso da minha comunidade? Isso é o mais importante na vida. E se uma pessoa conseguir viver assim, terá atingido algo muito importante e admirável.” Assim é porque, nas tradições africanas, somos todos integrantes de uma mesma força criadora, e passamos por essa vida para experimentar a noção de coletividade entre todos os seres. Nesse sentido, como o candomblé encara essa pandemia?
“Não é uma maldição, uma punição, ou algo diabólico. Nada disso. É resposta do corpo coletivo, que está respondendo a uma má alimentação. Você não se alimentou bem, não se hidratou bem, não respeitou o corpo coletivo e a natureza. Você matou, sacrificou. Quem sacrifica, na verdade? Nós do candomblé não sacrificamos ninguém. Agora está provado que quem faz sacrifício, inclusive humano, é o capitalismo. Porque eu ofereço o bode e a galinha, coisas que estão na mesa dos brasileiros, e não o urso panda ou a arara-azul”, inicia Nogueira. “Uma sociedade que naturaliza 100 mil mortes está sacrificando. Uma sociedade que está esperando o efeito rebanho está sacrificando vidas humanas. Quem é involuído, primitivo? Quem será? Isso é inadmissível. Nós, do candomblé, sentimos tremendamente essas 100 mil mortes, porque morremos um pouquinho com cada uma delas. Essa é a verdadeira morte para nós. A morte natural, para nós, é retorno para a massa primordial. Mas a morte prematura, criminosa, é combatida por nós. Não é aceitável. Porque essas pessoas morrendo de covid estão indo embora antes do momento marcado para a morte natural. Isso na nossa cosmo percepção, na nossa epistemologia filosófica.”
“Agora está provado que quem faz sacrifício, inclusive humano, é o capitalismo. Porque eu ofereço o bode e a galinha, coisas que estão na mesa dos brasileiros, e não o urso panda ou a arara-azul”
Sidnei Nogueira
Com um terreiro dedicado a Xangô em Mauá, na região metropolitana de São Paulo, o babalorixá Sidnei Nogueira afirma doar cestas básicas no entorno de sua comunidade, mas não nega que isso é muito pouco: “Não é caridade, é nossa obrigação. Estamos, de modo paliativo, permitindo que algumas pessoas se alimentem. É muito evidente que estamos trazendo mais conforto para nós, porque continuamos nos alimentando com menos pessoas passando fome no entorno da nossa comunidade.”
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De tradição completamente alinhada com os campos energéticos, o candomblé tem uma divindade chamada Iwa Pele, que representa um caráter suave, harmônico, o ideal para quem deseja passar por essa vida com tranquilidade. Praticá-lo, para o babalorixá, seria mais útil para a sociedade: “Temos que começar a combater o sofrimento. Não estou dizendo que ninguém deve doar mais nada. Mas, o que estou dizendo, é que a doação altera muito pouco em quem faz. Não muda o caráter de quem doou. Não muda a perspectiva de mundo de quem doou. Você literalmente dá um prato de comida para um mendigo no meio da rua, ele come, sacia sua fome por algumas horas, mas continua sendo mendigo. Se ele continua sendo mendigo, nós continuamos doentes.”
Sidnei conclui dizendo que prefere o conceito de solidariedade, que é um sentimento que vai e volta: “Você está assumindo parte do compromisso. A gente hoje está na sociedade do eu me basto, do individualismo, do egocentrismo. Eu falo o que eu quero. Isso é a coisa mais horrível do mundo. Estamos cheios de ego, e isso não traz expansão de consciência. Se você não tem expansão de consciência, você não está no mundo. Está no seu. Está apenas vivendo. E isso é um problema.”
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Saindo da roda do Samsara
Descontente com a vida que levava como príncipe e cercado pela miséria do povo, Sidarta Gautama deixou sua herança de lado para dedicar-se a uma vida de asceta meditando debaixo de uma figueira. Quando ascendeu como Buda Shakyamuni, fez peregrinações em todo o sudeste asiático proferindo seus ensinamentos para uma sociedade não muito diferente da nossa. A estratificação social causada pelas castas do hinduísmo escancarava uma realidade grotesca de ganância, pobreza e dominação. Gautama observou que, nas relações entre os seres, tudo que é feito ou dito acrescenta força no ciclo interminável da vida, que ações têm reações, e só a libertação daquilo que é vil leva para uma saída desse lugar.
As extensas leituras de Sidarta são a base do budismo como conhecemos hoje, uma religião que se capilarizou em diversas vertentes desde o século VI antes de Cristo. Integrante do Shin budismo, de origens japonesas, o reverendo Jean Tetsuji explica como o princípio das relações humanas é posto dentro das ideias de Gautama: “Dentro dos seis preceitos de Buda, o primeiro, o Dana Paramita, é o preceito da doação, da bondade, da generosidade. Isso reverbera em uma questão de acúmulo de méritos. Construir templos, estupas, fazer doações para monges, tudo isso acumula méritos benéficos para você sair do Samsara e adentrar no Nirvana. Essa leitura é trazida para o mundo materialista desde lá do passado.”
Integrante do Templo Budista Nambei Honganji, na zona sul paulistana, Tetsuji diz que o primeiro Paramita também aborda os exercícios da empatia e da gratidão, e que doar-se é sentir a dor junto: “Não é um sentido de comiseração, dó ou piedade. Esse doar que vemos no Ocidente, como os franciscanos fazem, de dar comida para pobres, não encaixa no budismo. Porque acreditamos que ele tem um embasamento doutrinal. No Oriente se faz isso, mas não com a ideia de ‘vamos dar comida para os pobres’. O doar tem uma reciprocidade, inclusive. Você não apenas doa. Mesmo aquele que está com pouca coisa também retribui. Existe uma troca simultânea.”
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Sob o entendimento metafísico budista, o coração e a mente são uma coisa só. São as boas atitudes do coração que trazem tranquilidade para a vida, dentro da interdependência de tudo e de todos. “O princípio da doação é de interconectividade. Só consigo fazer uma boa doação quando percebo que estou interconectado e interdependente de tudo e de todos. O Dana Paramita não é só doar dinheiro. É doar a escuta, a fala, o abraço. Doar as justiças sociais que permitem todo mundo ter acessos semelhantes. Aí que entra a transformação da psiquê pelo budismo: trabalhar dentro da sociedade para que todos tenham o máximo de acessos equânimes. Aí não preciso fazer caridade”, afirma Jean.
Para ele, no entanto, doar virou alívio de consciência: “Eu tenho dinheiro e estou com certo remorso, preocupação porque o outro não tem. Para aliviar minha consciência, faço caridade. Não sei se essa caridade dialoga de verdade. Se tivéssemos os mesmos direitos e oportunidade, não precisaríamos de caridade. A caridade sempre tem uma questão de nível, sempre do de cima para o de baixo. O brasileiro gosta de fazer caridade porque aplaca a consciência, mas não gosta de justiça social.”
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“Instant karma is gonna get you”
Pode soar irônico John Lennon ter composto uma música sobre karma apenas para ser assassinado uma década depois, mas talvez sua genialidade tenha lhe trazido uma iluminação sobre o que lhe aconteceria muito antes daquele fatídico 8 de dezembro de 1980. Ídolo incontroverso, foi um dos maiores responsáveis por acelerar uma revolução através do movimento flower power. E por falar aquilo que muitos não queriam ouvir, por se expressar demais, gerou um karma para si mesmo, que culminou com sua morte, em Nova York.
Nos anos 1960, Lennon e os Beatles mergulharam na cultura indiana e aprenderam um pouco sobre as lições da vida sob a ótica do sudeste asiático durante os momentos de imersão que passaram no país. Um dos conceitos que o músico conseguiu popularizar no ocidente foi justamente o de karma, que é comumente interpretado como a herança de vidas passadas que determinam sua existência atual. Jean Tetsuji explica que não é bem assim: “As ações que realizamos aqui, as recuperamos dentro de uma contabilidade, seja nessa vida ou em uma próxima. Sempre lembrando que na próxima vida não sou eu mais, é uma outra existência. Mas, de qualquer forma, seja em uma leitura mística ou metafísica, a leitura mais real é que funciona. As minhas ações não devem gerar preocupação apenas com a minha próxima vida, mas com quem está sofrendo na realidade. A que ponto minhas ações reverbera para alguém? A ideia de karma não é de fazê-lo e pagar na próxima vida. Não é tão simples assim.”
“As minhas ações não devem gerar preocupação apenas com a minha próxima vida, mas com quem está sofrendo na realidade. A que ponto minhas ações reverbera para alguém? A ideia de karma não é de fazê-lo e pagar na próxima vida. Não é tão simples assim”
Jean Tetsuji
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Para Jean, karma “é como a minha fala, meu pensamento e minha ação repercutem na vida do outro agora. Seja uma besteira que eu fale na internet ou se eu fosse um grande economista que extrapola o trabalho alheio. Como isso repercute na vida? Karma significa unicamente ação. Não é culpa, pecado, destino, nada. É como eu beber esse copo d’água. A água vai se transformar em sangue. A gente gera karma o tempo todo. O fato de conversarmos aqui, o meu karma é de falar e o seu é de receber a escuta. O karma bom é aquilo que traz benefícios e meios hábeis para as pessoas, o ruim é aquele que causa sofrimento, seja a mim mesmo ou ao outro.”
Cofundador do Rainbow Sangha, um espaço de acolhimento para a população LGBTQI+, Jean espera tornar o grupo em uma associação formal em breve, a fim de reunir religiosos e leigos em um espaço de contribuição social dentro dos fundamentos do budismo. Junto dele estão dois integrantes de vertentes como a do budismo Zen – a qual integra a famosíssima Monja Coen – e o budismo Nichiren. Durante a pandemia, reuniram quatro psicólogos budistas para atendimentos gratuitos a quem procurasse ajuda. “É um trabalho de acolhimento solidário. Em julho, quando começamos, tivemos 13 pessoas. O encaminhamento foi tanto sob o olhar budista quanto sob o olhar clínico, até com a possibilidade de encaminhamento psiquiátrico se fosse o caso, ou de encaminhamento para tratamento hormonal. Mas essa é uma ação a parte, da qual não interferimos.”
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Orgulhoso da iniciativa, que também já dialoga com integrantes de outras doutrinas religiosas, Jean conclui dizendo que a verdadeira caridade se inspira em causas e dores. “Eu, como homem gay, cis e religioso, me perguntava como ficava esse assunto dentro do templo. E, de repente, eu deslumbrei isso de forma magnífica. A minha vontade, no futuro, é ter um templo e abrir com a bandeira arco-íris junto com o Buda e dizer: ‘hoje é nosso dia, vamos conversar a respeito’. Como os templos de São Francisco, Chicago e Nova York fazem. Tem se tornado uma dimensão de acolhimento que não esperávamos. E isso é um tipo de caridade também.”
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Gui Christ. Confira mais de seu trabalho aqui
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