stá na Constituição brasileira e também na Declaração Universal dos Direitos Humanos: todas as pessoas têm direito a terem uma moradia digna, um teto para se acolherem quando a jornada diária de trabalho acaba. Mas, sabemos que, na prática, não é assim. É só olhar para as ruas de nossas cidades e perceber quantas pessoas vivem em condições de sem-teto, ou que estão em áreas ilegais, precarizadas.
Em São Paulo, desde que a pandemia do covid-19 começou, serviços de entrega de comida para moradores de rua contabilizam cerca de 5 mil refeições por dia, de acordo com dados divulgados no último mês de maio. Não se sabe exatamente o número de pessoas nessa situação de risco, afinal é um dado que nenhum governante gosta de ter em seu currículo, mas é de se imaginar que a situação não seja boa.
Em grandes metrópoles como a capital paulista, há um movimento de reintegração de conjuntos habitacionais e comerciais abandonados, que se tornam ocupações. Através de organizações proeminentes, como o MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), pessoas de todas as idades, cores e nacionalidades vêm recuperando a esperança de um dia ter uma casa própria.
Há o estigma da ocupação e de seus moradores, que muitas vezes são tratados como invasores. A mídia em geral não ajuda e, quando há uma reintegração de posse, as cenas não são de famílias em necessidade, mas de locais destruídos, usuários de drogas e criminosos. Mas, no MSTC, a seleção de quem vai morar em uma das suas ocupações é criteriosa, e começa com as chamadas reuniões de base: “É um movimento por meio do qual damos toda a formação sobre como lutamos junto com as pessoas para a garantia de direitos. Essa base, primeiramente, vem para formações: explicar que existem três níveis de governo, que cada instância de governo tem seus programas e seus projetos destinados a vários setores (para nós, especificamente, na moradia) e também como é imprescindível a nossa participação nas conferências”, diz Carmen Silva, uma das lideranças do MSTC.
“Além disso, explicamos o que é uma conferência pública de moradia, onde vão ter as determinações e iremos apontar as deficiências de cada setor. Toda essa formação não deveria vir da gente, mas sim, dos próprios governantes. Por exemplo, explicar que é necessário ter toda documentação em dia, que o título de eleitor não serve só para você votar e que a certidão de nascimento ou de casamento são documentos muito importantes para a garantia de direitos. Todo esse papel o movimento faz, que é a importância dos grupos de base.”
Comandando cinco das ocupações mais organizadas da cidade de São Paulo, Carmen diz também que “antes de tomarmos qualquer atitude, como uma nova ocupação, apresentamos toda essa necessidade ao poder público e aos órgãos competentes. Quando temos uma reunião com o secretário de Habitação, explicamos a ele: ‘Nós temos tantas famílias demandadas de despejo ou em área de risco, que necessitam de moradia, pois não têm mais condições de pagarem aluguel’. Muitas vezes, elas estão vivendo na beira dos córregos, em situação vulnerável. Os moradores de cortiço também estão em uma área muito vulnerável da região central. É degradante você viver nessas habitações e ainda pagar um aluguel caríssimo. As famílias não aguentam: com um salário mínimo, como que pagam R$ 900 para morar com sete pessoas, dividindo a mesma pia e o banheiro com outras pessoas? Essas coabitações são extremamente vulneráveis.”
Nós visitamos a Ocupação São Francisco, no cruzamento das ruas do Ouvidor e São Francisco, na região do Anhangabaú, para conhecer alguns de seus 24 moradores, divididos nos cinco andares do prédio. Confira:
Fabiane de Fátima Araújo dos Santos, 23
“Moro aqui faz sete meses. Antes, vivia na cidade de Mauá. Vim para cá porque tive meu filho mais novo, e fiquei sem condições de pagar aluguel. Minha mãe já morava em outra ocupação do Movimento Sem-Teto do Centro, então consegui vir também.”
“Só vi pontos positivos morando aqui. Consegui dar outra estrutura de vida para meus filhos. O que eu ganhava não dava pra manter duas crianças. Agora, estou no Centro, eles têm mais opções de lazer, sobra dinheiro para eu comprar alguma coisa que eles querem. De negativo, só a visão das pessoas fora daqui.”
“Nos chamam de invasores, mas lá de fora poucas pessoas conhecem nossa realidade. E, preconceito enfrento de todas as formas. Por eu ser preta, ter dois filhos, ser mãe solteira. Aprendi a não ligar para isso. Para mim, a felicidade é ver meus filhos bem.”
“Sempre vivi sozinha com meus filhos, e aqui todo mundo se ajuda. Um vizinho que tem alguma coisa diferente compartilha com os outros, e nós recebemos doações. Aqui, são muitas pessoas que nem eu, que passaram por complicações no casamento, que tiveram algo que não deu certo na vida.”
“Não tinha um pingo de consciência antes de entrar aqui. Era uma visão completamente errada de tudo. Agora, aprendi a viver no coletivo e a lutar pelos meus direitos. Porque, mesmo sendo pobre, tenho direito à moradia, assistência social, saúde de qualidade. Aprendi a ter mais força, levantar a cabeça, não deixar ninguém me humilhar por conta de classe social.”
Josineide Santos, 37
“Meu ex-marido e eu éramos caseiros em um sítio, em São Roque, antes de vir para cá, há um ano e meio. Antes, eu já tinha morado em uma ocupação, na Rua José Bonifácio. Foi por isso que consegui voltar. Não quis ficar no interior porque é mais difícil de arranjar serviço, não te aceitam como caseira sem o homem. Sozinha, com as crianças, impossível. Agora, sou auxiliar de limpeza.”
“Gosto de morar no Centro. Eu já vivi na Zona Leste, em São Miguel Paulista, e lá era longe de tudo. Aqui tem padaria, farmácia, mercado, o Poupa Tempo é do lado, em 25 minutos estou no serviço.”
“Cheguei aqui e, em uma semana, consegui escola para meus filhos. Minha filha terminou o ensino médio, e a liderança do movimento arranjou uma bolsa de estudos na faculdade de Arquitetura da Escola da Cidade [uma das mais conceituadas da cidade e do Brasil]. Acha que eu teria condições de pagar?”
“Meus vizinhos são tranquilos, passam os dias trabalhando, é raro que eu os veja. Sentia falta de estar perto das pessoas, quando morava no sítio. Mas, aqui é um coletivo, todo mundo se junta para lavar o prédio, cada um tem o dia de fazer a limpeza. Quando fiquei sem trabalhar, tive ajuda, recebi cestas básicas, frutas, verduras, produtos de higiene.”
“Quando a gente mora em outro lugar, acha que isso aqui é outro mundo. O pessoal tem muito preconceito com quem mora em ocupação. Mas, aqui dentro, você percebe que as pessoas têm um objetivo.”
“Meu ex-marido não gostava que eu trabalhasse. Larguei o ensino no fundamental. Agora estou fazendo supletivo, estou trabalhando. Quando minha filha via a gente brigando, dizia para separar. Na minha cabeça, como eu iria viver, se eu dependia dele? Agora sei que é muito melhor estar solteira com meus filhos do que ficar escutando as coisas de homem, vivendo mal.”
“Tem um posto policial aqui do lado. Eles nos tratam super bem. Dão bom dia sempre que passamos. Falam que estão por nós, se precisarmos de alguma coisa. É bom, porque outros poderiam nos tratar que nem bicho.”
Vanderlaine Santana, 53 anos
“O Movimento é luta, e não para. Muita gente chega aqui e acha que conseguiu uma casa. Não, é uma moradia provisória, que tentamos transformar em uma moradia fixa. Quem não tem vontade de ter uma casa própria? [risos]”
“Vim para cá há 6 anos. Participei de uma reunião de base, fiquei um ano esperando surgir esse prédio. Era uma habitação comercial vazia, que ocupamos. Fui uma das primeiras a vir para cá. Não tenho a história das outras mulheres daqui, que saíram de casamento, só precisava mesmo de um lugar para morar.”
“A sociedade olha diferente para nós. Não somos como pessoas que moramos em um prédio qualquer. Temos que mostrar diariamente que somos como qualquer outra pessoa, que trabalha, que tem uma vida normal.”
“Aprendi que temos que lutar com dignidade pela nossa moradia, e perseverar. É algo constante, ir a atos, priorizar nossa moradia. Os governantes não veem que precisamos de um lar, seja quem está em ocupação, ou quem está na rua.”
Núbia Maria dos Santos Oliveira, 55 anos
“Minha história é de como outras mulheres daqui. Tinha um marido que não me deixava trabalhar. Quando eu começava, ele fazia barraco na porta das lojas. Nunca parei em lugar nenhum por conta disso.”
“Hoje, sou babá do meu neto, mas também cubro férias de outras pessoas em lojas… Peguei um pouco de experiência depois de velha [risos]. Não é bom pegar seu próprio dinheiro sem precisar de marido? Só que ele não achava isso.”
“Fiquei muito tempo pensando que não sabia fazer nada, mas depois de quebrar a cabeça com a separação, percebi que sei fazer, pelo menos, o básico. Faxina, coisas assim. Mas, o que eu queria ele não deixava…”
“Minha filha morava em ocupação, e eu não tinha onde ficar. Primeiro, fiquei com ela por um ano, e depois consegui um lugar para mim. Eu não entendia o que era uma ocupação, não sabia o que era um movimento social. Cheguei aqui, e era tudo novo, só agora que estou entendendo.”
“A luta é boa, mas muito grande. As pessoas aqui não têm moradia. Não tenho muito o que falar, apenas agradecer a Deus e ao movimento social.”
Louis Feky, 35 anos
“Eu morava na Liberdade, e depois de três meses vim para cá. Sou do Haiti, mas gosto de viajar. Passei pela República Dominicana, depois em Cuba, estava morando no Equador quando arranjei um visto brasileiro, e aí vim pra cá. São seis anos e meio fora do meu país.”
“Nossa cultura é bem diferente da vossa. Meus familiares não querem vir, mas apenas pela questão cultural. Hoje, sou cozinheiro, trabalho em um restaurante português aqui na cidade.”
“Acho muito legal estar no Brasil e entrar nessa luta por moradia, tentar conquistar a mesma coisa que vocês. Sou bem esperto, estava morando em uma república, fiquei sabendo das ocupações e ligeiro fiz minhas coisas também. Porque quem não luta está morto, e eu estou vivo. Quem não ocupa, é ocupado.”
“Não posso falar da política do Brasil, porque não posso votar, mas vejo como as coisas estão. O povo brasileiro não merece o que está acontecendo. O povo brasileiro gosta de ser feliz, mas essa pandemia mostrou que os políticos não estão tratando bem a sociedade. Mas, gostaria de ver o que vai acontecer.”
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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Gui Christ. Confira mais de seu trabalho aqui