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Por que está cada vez mais fácil praticar o ódio?

Especialistas explicam que a pandemia deixou a internet mais propícia para ofensas, mas a inteligência das plataformas também tem sua responsabilidade nisso

por Henrique Santiago Atualizado em 5 out 2021, 13h15 - Publicado em 30 set 2021 23h39
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publicação de uma foto no Instagram bastou para Stefany das Neves Silva, 27 anos, repensar sua vida. Ela imaginava que dividir um momento de descontração após surfar em uma praia reuniria não mais que meia dúzia de comentários elogiosos, mas recebeu o que jamais esperava: gordofobia.

Minutos depois de compartilhar a fotografia na rede social, Stefany recebeu uma mensagem um perfil fake que criticava o seu corpo. “Você está extremamente gorda. Seu corpo não está legal e quero dizer que você tem um longuíssimo caminho pela frente […] Olhei suas fotos hoje de você surfando e está horrível”, dizia um trecho do texto da pessoa anônima que afirmou querer o bem dela.

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(Arte/Redação)

Ela rebateu as críticas e viu uma enxurrada de outros comentários odiosos chegar em tempo real pela tela do celular. A analista de qualidade e processos até tentou não se abalar, mas questionou todo o processo de aceitação do corpo que ela construiu nos últimos anos. “Eu juro que a minha vontade foi de apagar as redes sociais, não postar foto minha em lugar nenhum. Como que uma pessoa se acha no direito de me criticar? Eu não preciso disso.  Eu pensei por um momento em parar de surfar e sumir”, recorda Stefany sobre o ocorrido, que aconteceu no mês passado.

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“Eu juro que a minha vontade foi de apagar as redes sociais, não postar foto minha em lugar nenhum. Como que uma pessoa se acha no direito de me criticar? Eu não preciso disso.  Eu pensei por um momento em parar de surfar e sumir”

Stefany das Neves Silva

Após refletir sobre o acontecimento, ela publicou um longo desabafo no mesmo Instagram e dormiu em seguida. Ao acordar, viu que a sua publicação recebeu milhares de curtidas e comentários de apoio. “Eu engordei bastante depois que saí de um relacionamento abusivo. Foi isso que me fez começar a surfar, eu queria me sentir livre e viva.”

À vontade para odiar

Vítima de discurso de ódio, Stefany até hoje desconhece quem a ofendeu gratuitamente. No entanto, ela faz parte de um grupo cada vez maior de pessoas que sofrem com a violência verbal na internet. A prática do hate speech, assim conhecido mundialmente, atinge não só pessoas gordas, como também minorias sociais: negros, LGBTQIA+, indígenas, pessoas com deficiência, entre outros. O problema pode chegar a casos igualmente graves, como a exposição de falas de cunho nacionalista branco, como a defesa do nazismo e do fascismo – e então cria-se uma bola de neve de ataques às mesmas pessoas socialmente invisibilizadas.

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(#ChegaDeHate/Grupo Abril)

As redes sociais, principalmente em meio a uma pandemia que se arrasta por mais de um ano e meio, se tornaram terreno fértil para a propagação do ódio. O psicólogo Diego Barboza procura explicar por que as pessoas têm carregado nas mãos um passe livre para descarregar esse sentimento tão negativo e potencialmente destrutivo em um período tão delicado na história da humanidade. Para ele, o ódio sempre esteve presente no ser humano, e a internet serve como ferramenta para potencializá-lo. Quando o isolamento social é uma regra para se manter vivo, a entrada no mundo virtual é a alternativa para coexistir – para alguns, em especial, ter o passe livre para dizer insultos.

“O isolamento intensificou o uso das redes sociais, sendo inclusive o único meio de contato humano de muita gente. A internet possibilita que qualquer pessoa expresse sua opinião e, mesmo quieto, sem escrever um post, um simples ‘curtir’ expressa a ratificação da opinião de outrem e isso também é opinar”

Diego Barboza, psicólogo

“Certamente o isolamento intensificou o uso das redes sociais, sendo inclusive o único meio de contato humano de muita gente. A internet possibilita que qualquer pessoa expresse sua opinião e, mesmo quieto, sem escrever um post, um simples ‘curtir’ expressa a ratificação da opinião de outrem e isso também é opinar”, declara Barboza. Ele adiciona: “Se é atualmente a única forma de comunicação, associado ao alcance de uma massa incomensurável e adicionado aos tempos desesperançosos que passamos, o resultado pode ser catastrófico para muita gente.”

Real x virtual

A facilidade de derramar a raiva vem acompanhada de uma impressão de impunidade disfarçada de liberdade de expressão, que jamais pode ferir os fundamentos assegurados na Constituição de 1988 de respeito à pessoa. De acordo com a psicóloga Milena Reis, os usuários de redes sociais tendem a criar dois mundos distintos: o real e virtual, que são separados por suas ações no tête-à-tête e na frente de um smartphone ou computador. Ela considera um erro.

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(#ChegaDeHate/Grupo Abril)

Resumidamente, Milena acredita que o ódio está dentro do ser humano, independente da situação. “A internet é o reflexo da nossa sociedade. As redes sociais trazem essa noção de sermos diferentes [do mundo lá fora] quando, na verdade, não somos”, diz.

A psicóloga ainda guarda uma previsão amarga do que ela espera para o mundo pós-pandemia, sobretudo porque repara que as vítimas são colocadas em uma caixinha de vitimistas e reprodutoras de mimimi. “Nós ouvimos que a pandemia veio para melhorar as pessoas. Eu acho que não. Elas são o que são e vão continuar assim se não observarem que precisam de mudanças.”

Diego Barboza diz ainda que os algoritmos, que resumidamente são um um conjunto de instruções usadas para a solução de problemas, podem ter um viés racista. Em 2020, o Twitter entrou em uma polêmica depois usuários notaram que o algoritmo de fotos da rede social mostra mais brancos do que negros. Da mesma maneira, influenciadores pretos brasileiros perceberam que o Instagram prioriza o engajamento de publicações com pessoas brancas, e limita o alcance de conteúdos de negros.

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“A internet é o reflexo da nossa sociedade. As redes sociais trazem essa noção de sermos diferentes [do mundo lá fora] quando, na verdade, não somos”

Milena Reis, psicóloga

O CEO da InfoPreta, empresa de tecnologia voltada para a inserção de negros, LGTBQIA+ e mulheres no mercado, Akin Abaz, aponta que as tecnologias discriminatórias possivelmente não são feitas de forma consciente. A presença massiva de homens brancos nessa área inviabiliza uma questão importante: a representatividade. 

“Se não há diversidade dentro da parte de desenvolvimento, de inteligência, essas pessoas [minorias sociais, especialmente negros] serão excluídas. Existem múltiplos olhares que podem ser analisados dentro de um algoritmo. Um exemplo de se atingir a diversidade é contratar pessoas para além do que é visto hoje, senão a entrega de conteúdo vai ser sempre a mesma”, acredita Abaz.

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(#ChegaDeHate/Grupo Abril)

O ódio traz lucros

Fernanda Bruno, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conselheira da Data Privacy Brasil, acredita que, para além do racismo, as empresas de tecnologia têm lucrado em cima do discurso de ódio. Ela explica que essas plataformas têm se empenhado em impulsionar o engajamento na rede por meio de conteúdos que geram identificação com os usuários, e assim aumentar o seu tempo online seja no Facebook, Twitter ou Instagram. Fernanda diz que ainda é cedo para saber se essas coordenadas são muito bem intencionadas ou se há um acidente no percurso que permite a entrega de vídeos, imagens e textos repletos de violência verbal.

“Existem múltiplos olhares que podem ser analisados dentro de um algoritmo. Um exemplo de se atingir a diversidade é contratar pessoas para além do que é visto hoje, senão a entrega de conteúdo vai ser sempre a mesma”

Akin Abaz, CEO da Infopreta

Em junho de 2020, mais de 1,2 mil marcas anunciaram um boicote de 30 dias ao deixarem de investir em publicidade no Facebook para alertar que a empresa melhorasse suas diretrizes de combate ao discurso de ódio. A ação ganhou o nome de Stop hate for profit (Pare de dar ódio ao lucro, em tradução livre) e trouxe avanços após a pressão, segundo líderes da campanha. Os destaques incluem esforços para banir grupos supremacistas brancos, remover conteúdos racistas e enquadrar a negação do Holocausto como hate speech. “Esse engajamento é o que vai gerar mais conteúdos, que vai gerar mais dados. Essas plataformas vivem de monetização de dados e publicidades direcionadas. O algoritmo começa a criar problemas quando os critérios para o que chamam de otimização de experiência online são completamente reduzidos a aumentar o engajamento do usuário.”

Segundo ela, as plataformas não revelam quais métricas são utilizadas para a entrega de conteúdo potencialmente carregado de raiva. O que se sabe na superfície é que as empresas grandes utilizam ao menos três direções: o histórico de navegação, publicações que mais repercutem e a similaridade entre usuários. “É um problema grave porque não só não temos acessos a esses critérios, como não podemos optar por uma experiência que não seja filtrada, que não seja recomendada”, declara Fernanda. Ela usa como exemplo a seleção feita por algoritmos de postagens que usuários de Twitter podem ver na linha do tempo. “É como se seu campo perceptivo fosse escolhido por eles.”

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(#ChegaDeHate/Grupo Abril)

O psicólogo Diego Barboza pontua que os malefícios para as vítimas de discurso de ódio são inúmeros, e ainda inclui os agressores no grupo de pessoas prejudicadas, como o auto-ódio, um mecanismo de exclusão e destruição gerado pela depreciação de quem você é – além de outros prejuízos à saúde mental, como ansiedade e depressão. O especialista acredita que o opressor geralmente é uma pessoa frustrada, “que transfere ao outro seu ódio, na tentativa de não lidar com a própria dor.”

“Precisamos sempre questionar a validação de nossas opiniões. Se conseguimos nos afastar de situações virtuais que não contribuem para o bem-estar ou o bem-estar de outras pessoas. E se mesmo sem perceber, não sou eu que alimento o sistema de exclusão ou se sou eu o opressor.”

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