Quando se é um homem-pai, um espelho imaginário se posiciona na sua frente de forma recorrente – a cada decisão, a cada bronca, a cada afago. Eu vou fazer com o meu filho o que meu pai fazia comigo ou eu vou fazer diferente? Embora ainda se trate de uma mudança tímida para um país com mais de 5 milhões de crianças que sequer têm o nome do pai na certidão de nascimento, existem cada vez mais homens dispostos a escolher o segundo caminho.
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mais de 5 milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento
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Embora novos referenciais estejam surgindo na cultura pop (passamos do pai que não sabe trocar uma fralda à escala Rodrigo Hilbert de pai completo), a conversa ainda precisa partir do básico. Em um contexto de ausência paterna, seja física ou emocional – herança de uma paternidade baseada tão somente em procriar, prover e proteger –, assumir as responsabilidades objetivas e demandas subjetivas que vêm com a consciência de que sim, o filho também é seu, continua a ser uma pendência para a maior parte dos homens.
A resistência em usufruir até mesmo dos direitos garantidos por lei demonstra isso. Realizado em sete países incluindo o Brasil, o “3° Relatório Situação da Paternidade no Mundo”, do Instituto Promundo, mostra que 82% dos pais brasileiros dizem que fariam qualquer coisa para se envolverem muito nas primeiras semanas e meses de cuidado com um filho ou filha. No entanto, apenas 32% dos trabalhadores brasileiros utilizam por completo os 5 dias de licença-paternidade legalmente previstos. Ao todo, 27% não tiram um dia sequer.
Para além de políticas públicas e econômicas que estimulem a paternidade – um homem que tem apenas 5 dias de licença remunerada para ficar próximo à família que acabou de mudar para sempre recebe indiretamente o recado de que o lugar dele não é ali — uma mudança de cultura se faz necessária. Nesse sentido, um dos primeiros passos para os pais de hoje é, justamente, sair da sombra dos pais que eles tiveram.
Consultor sênior de Programas do Promundo e pai da Laura há menos de um ano, Luciano Ramos testemunha a prática no trabalho e também vive isso na pele. “Eu não tive a presença do meu pai em todo o meu desenvolvimento, desde o meu nascimento. Essa sempre foi uma pauta difícil pra mim, e me fez não querer me conectar com a temática durante muitos anos. A naturalização e até a banalização da ausência paterna guarda em si, muitas vezes, a incapacidade que temos de lidar com toda a carga emocional que esta ausência significa. Meu pai não esteve presente no meu desenvolvimento e de minha irmã (já que somos gêmeos) por questões financeiras. A ausência dos pais pretos, em muitas situações, se conectam com o racismo estrutural que têm vários desdobramentos na vida deste homem e, por consequência, na vida de seus filhos e suas filhas. Conseguir entender isso levou muito tempo e muitas análises. Eu tento fazer diferente. Sou presente integralmente na criação da minha filha. A ausência do meu pai me fez perceber o quanto era necessário estar presente na vida dela”, diz.
“A naturalização e até a banalização da ausência paterna guarda em si a incapacidade que temos de lidar com toda a carga emocional que esta ausência significa”
Luciano Ramos
Na pesquisa “O Silêncio dos homens”, do PapodeHomem/Instituto PdH, 68% dos entrevistados declarou ter o pai como principal referência de masculinidade. Não obstante, só 1 a cada 10 já conversou com o próprio pai sobre o que é “ser homem”. Sem diálogo, os meninos crescem construindo suas masculinidades a partir da imagem que têm do pai, seja em uma dualidade de herói ou vilão ou no vácuo da ausência.
“A paternidade que eu experimentei quando era criança foi um tanto diferente, porque não fui criado pelo meu pai nem pela minha mãe. Meu pai abandonou minha mãe. Eles se divorciaram quando eu tinha 2 anos de idade e ele foi para outra cidade. Chegamos a ficar seis ou sete meses sem nenhuma notícia dele. A minha mãe, aos meus 8 anos (meu irmão tinha 6) conheceu um rapaz, meu atual padrasto, foi morar com ele. Quem nos criou foi a minha avó e meu tio, e o meu tio nunca se colocou como meu pai”, lembra-se André Nunes, pai do Jonathan e da Valentina e, junto com o marido Ângelo, criador da página Papai e Papia.
“Ele sempre se colocou como uma pessoa que estava me educando, e também nunca o vi como pai. Meu tio era uma pessoa muito severa com algumas coisas. Aos 12 anos, comecei a trabalhar com ele na metalúrgica fazendo carregamento de sucata de papelão, por exemplo. O que ficou da, entre aspas, paternidade que experimentei, foi a disciplina e as questões morais, de caráter, de honestidade. Só que todas as outras coisas eu deixo de lado, sabe? Disciplinar não é não ter tempo para absolutamente nada, nem para ser criança”.
Fundador do projeto Pais Pretos Presentes, Humberto Baltar também evidencia como a paternidade que experimentou como filho influencia na paternidade dele hoje. “Tive um pai provedor, que supriu todas as minhas necessidades materiais e me ensinou a importância dos estudos. Entretanto, na relação com meu pai, não havia carinho, ‘eu te amo’ ou conversas sobre meus medos, inseguranças e fraquezas. Entendo que esse foi o modelo de paternidade que ele recebeu. Me deu o que tinha. Mas uso essa experiência para oferecer ao meu filho um modelo de paternidade que eu considero mais completo. O Apolo tem apenas um ano e meio e já desfruta de diversas coisas que eu não tive, como pais que trocam afeto na frente dele, por exemplo. Todo dia elogio meu filho, beijo, dou um cheiro nele, digo que o amo, conto histórias, canto pra ele e brincamos juntos. Faço isso também porque sei a falta que tudo isso faz. Afinal de contas, senti essa falta”.
Iniciativas como o Pais Pretos Presentes ou o grupo de Facebook e WhatsApp chamado Paternando (e outros tantos coletivos) têm surgido nos últimos anos como maneira de estabelecer referências positivas e horizontais de paternidades responsáveis, afetuosas e possíveis. Sejam em encontros presenciais ou online, esse grupos de pais oferecem aos homens a oportunidade de conversar sobre temas urgentes de forma madura, compartilhando informações que nem sempre fazem parte dos repertórios dos homens.
“Tive um pai provedor, que supriu todas as minhas necessidades materiais e me ensinou a importância dos estudos. Entretanto, na relação com meu pai, não havia carinho”
Humberto Baltar
“Até pra ser amigo é preciso presença. Você não precisa estar junto o tempo todo, mas deve estar ali quando precisam de você. Na paternidade, não é diferente. O coletivo tem mostrado que essa presença de outros pais também tem uma atuação importantíssima. Precisamos de redes de apoio. O pai preto também precisa de escuta ativa e acolhimento. A paternidade não é só sobre os filhos. Precisamos desabafar, falar das nossas alegrias, dúvidas, dores e tristezas. Ser pai presente, ativo, participativo ou afetivo não é opção. É ser pai. No nosso contexto, a palavra ‘presente’ é sobre o paternar. A ancestralidade africana ensina que paternar transcende ter filhos. Podemos exercer esse paternar inerente a nós com amigos, parentes, filhos biológicos ou não e até mesmo com os nossos pais, que em muitos casos foram criados sem qualquer referência de afeto”.
“Perdi a conta de quantas coisas já aprendi com os irmãos e irmãs do coletivo. O impacto na vida dos membros foi tão positivo que atraiu a atenção de suas companheiras, mães, filhas e amigas, que também quiseram fazer parte do grupo. Assim nasceu o Pais e Mães Pretas Presentes, onde pretos e pretas falam de suas alegrias, dores e dúvidas sobre a parentalidade e demais questões familiares”, conta Humberto.
“A ancestralidade africana ensina que paternar transcende ter filhos. Podemos exercer esse paternar inerente a nós com amigos, parentes, filhos biológicos ou não e até mesmo com os nossos pais, que em muitos casos foram criados sem qualquer referência de afeto”
Humberto Baltar