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Elástica explica: pobreza menstrual

A falta de acesso a produtos de higiene, saneamento e água potável impedem o bem-estar de pessoas que menstruam

por Beatriz Lourenço Atualizado em 25 mar 2022, 12h53 - Publicado em 25 mar 2022 01h59
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(Arte/Redação)

alar sobre menstruação ainda é um tabu para a sociedade. Por mais que esse seja um processo natural do corpo, muitas pessoas sentem vergonha ao abordar o tema. Essa falta de diálogo é prejudicial porque aumenta o desconhecimento e, consequentemente, a falta de políticas públicas para quem tem útero – impactando negativamente milhares de pessoas. 

Um problema crescente que precisa ser tratado com prioridade é a pobreza menstrual, nome dado à dificuldade de acesso de meninas, mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero a produtos básicos para manter uma boa higiene nesse período do mês. Os absorventes descartáveis, calcinhas absorventes ou coletores são essenciais para conter o sangramento e fazer com que cada indivíduo cumpra suas tarefas diárias sem preocupação.

Os dados são alarmantes: um estudo feita pela Espro, em parceria com a Inciclo, chamada Pesquisa Novo Ciclo, mostrou que uma em cada três brasileiras de 14 a 24 anos já deixou de comprar absorventes por falta de dinheiro. E essa indisponibilidade já fez com que 32% delas deixassem de ir a alguma festa ou encontro, 20% perdessem um dia de aula e 11% faltassem ao trabalho. “Já desmarquei muitos compromissos por não ter como comprar absorventes ou ter uma quantidade limitada e precisar usá-los por muito tempo. Tinha medo de vazar e isso me impediu de ir para a escola, participar de aulas de educação física e de sair de casa”, revela Ester*.

Segundo a ginecologista Fernanda Martins, essa experiência desagradável afeta não só o cotidiano dessas pessoas, como também a saúde mental. “A perda de oportunidades leva a uma cascata de consequências, como falta de confiança, mudança de comportamento e sofrimento emocional.”

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(Arte/Redação)

Diversas causas estão ligadas a essa condição. A principal delas é a desigualdade social, que resulta na falta de renda para custear esses produtos. Isso porque a média de gasto com absorventes descartáveis por mês é de R$ 12,97. No ano, o valor sobe para R$ 144 – um montante alto para quem vive em situação de vulnerabilidade. No Brasil, sabe-se que 14,5 milhões de famílias estão na extrema pobreza, o que se traduz em 40 milhões de brasileiros vivendo com até R$ 89 por mês.

De fato, os dados da Pesquisa Novo Ciclo mostram que os grupos mais atingidos são jovens de famílias com renda total de até um salário mínimo (55%) e meninas e mulheres negras com renda de até dois salários mínimos (47%). Mas não para por aí: pessoas em situação de rua e as que estão no sistema penitenciário também são vítimas dessa falta de recursos. 

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“Algumas famílias precisam escolher se destinam o dinheiro para comer ou para comprar absorventes. Já pessoas em situação de rua não têm recursos e nem como higienizar as partes íntimas”, ressalta Helena Branco, da ONG Girl Up. “Já as mulheres em situação de privação de liberdade não ganham esses itens no cárcere, o que as deixa sem opções no momento do ciclo.” A saída, nesses casos, é improvisar: utilizar jornais, guardanapos, pedaços de pano velho, miolo de pão e ou até mesmo folhas de árvores. 

Acontece que esses substitutos são prejudiciais ao corpo, causando infecções difíceis de serem tratadas. De acordo com Fernanda, as doenças mais comuns são: candidíase, cistite, alergias e irritações na pele e na mucosa. “Esses itens são contaminados e não são apropriados para estarem em contato direto com o nosso trato genital”, explica. “Os casos mais graves levam à síndrome do choque tóxico, uma infecção que se alastra pelo corpo todo.” Apesar de rara, essa complicação pode levar ao óbito.

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“Algumas famílias precisam escolher se destinam o dinheiro para comer ou para comprar absorventes. Já pessoas em situação de rua não têm recursos e nem como higienizar as partes íntimas”

Helena Branco
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(intervenção sobre foto de cottonbro/Pexels)

Uma questão de saúde pública

“Quando um problema que pensamos ser pessoal passa a atingir uma grande quantidade de pessoas, ele é responsabilidade do poder público”, afirma Helena. Levando isso em consideração, a Organização das Nações Unidas (ONU) trata a pobreza menstrual como uma questão tanto de saúde pública quanto de direitos humanos desde 2014. 

Quando pensamos nos pilares para a dignidade menstrual, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) considera que algumas condições são extremamente necessárias: ter acesso rápido a banheiros adequados para trocar o produto menstrual utilizado para absorção do fluxo, um local para descarte dos produtos usados e sabão e água encanada para higienizar as mãos e o corpo. Mas, na prática, isso ainda está longe de ser acessível a todos.

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O relatório “Pobreza menstrual no Brasil: Desigualdades e violações de direitos”, feito pelo órgão e publicado em 2021, mostra que, no Brasil, a infraestrutura precária é um pilar que agrava a situação. Nesse caso, lembramos que cerca de 35 milhões não têm acesso à água potável e 100 milhões não têm serviço de coleta de esgotos no país, por exemplo.

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A Unicef revela que 321 mil alunas estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso; 1,24 milhão não têm acesso a papel higiênico nos banheiros das escolas e quase 652 mil não possuem acesso a pias ou lavatórios em boas condições. Em casa, a condição não melhora: 713 mil meninas não têm acesso a banheiros em seus domicílios e mais de 632 mil vivem sem acesso a sequer um banheiro de uso comum no terreno ou propriedade. 

“Jovens estudantes perdem até 45 dias de aula por ano em razão da falta de estrutura. Podemos pensar nas pessoas em idade escolar e o quanto isso se torna uma carga mental no dia a dia. Muitas ficam preocupadas ou com vergonha de manchar a roupa, por exemplo, o que impede o aprendizado e a plena realização de tarefas”, diz a ativista. 

321 mil alunas estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso1,24 milhãonão têm acesso apapel higiênico nos banheiros das escolas equase 652 milnão possuem acessoa pias ou lavatórios em boas condições

Ter iluminação nos banheiros é uma condição importante para que as pessoas possam realizar sua higiene adequadamente. No entanto, 133 mil meninas brasileiras não têm acesso a serviço de fornecimento de energia elétrica e 959 mil habitam em domicílios com abastecimento de energia classificado como ruim. Quando fazemos o recorte racial, ressaltamos que 22% delas são brancas, enquanto cerca de 76% se classificam como pretas ou pardas.

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(intervenção sobre foto de cottonbro/Pexels)

Educação sexual para reduzir o tabu

Apesar de algumas famílias conseguirem arcar com as despesas, ainda há a ideia de que os absorventes são supérfluos, isto é, não são itens de primeira necessidade. Esses casos evidenciam, portanto, a ausência de informações sobre os cuidados na menstruação, o que também alimenta o problema – virando um ciclo vicioso. 

“A educação e o estigma andam juntos. Ensinar sobre a saúde íntima é importante para criar aliados e um grupo de apoio”, explica Helena. “Entender a menstruação como algo que deve ser escondido vem desse tabu sobre o corpo feminino e essa questão é sintomática de uma sociedade misógina e machista.” Aqui, podemos dar inúmeros exemplos de como isso se aplica na prática: esconder o absorvente na roupa para ir ao banheiro; trocar a palavra menstruação por “estar mocinha”, “chico” ou “naqueles dias”; sofrer com piadas sobre estar na TPM. 

O levantamento da Pesquisa Novo Ciclo indica que 54% das jovens não recebem orientações antes da primeira menstruação – sendo que 10% não foram instruídas nem depois do primeiro ciclo. Das que receberam orientação em algum momento, 93% a tiveram das mães, e 33% apontaram que o papel coube a outros parentes próximos do gênero feminino. Apenas 4% apontaram o pai como orientador. A fonte número 1 de informações sobre o tema é a internet (91%), com destaque para as redes sociais (47%). 

“Ensinar sobre a saúde íntima é importante para criar aliados e um grupo de apoio. Entender a menstruação como algo que deve ser escondido vem desse tabu sobre o corpo feminino e essa questão é sintomática de uma sociedade misógina e machista”

Helena Branco
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“Historicamente, a menstruação foi vista de forma muito negativa. Por isso, não ter uma fonte correta de informação contribui para que essas pessoas não saibam qual é o tempo limite que se pode usar o absorvente, como fazer a higiene íntima e para quê ela serve”, diz Mariana Betioli, fundadora e CEO da Inciclo. “Se temos vergonha de falar sobre o nosso corpo, como vamos tirar nossas dúvidas ou pedir ajuda?”

Portanto, a partir do momento que entendemos a menstruação como um processo biológico, conseguimos que esse seja um direito básico para todos os corpos menstruantes e fazemos com que a sociedade civil passe a pressionar os governos para a criação de políticas públicas. Conhecer o funcionamento do ciclo também dá autonomia para que as pessoas entendam melhor sobre outros temas ligados à sexualidade, como gravidez, libido e fertilidade.

“Historicamente, a menstruação é vista de forma muito negativa. Por isso, não ter uma fonte correta de informação contribui para que essas pessoas não saibam qual é o tempo limite que se pode usar o absorvente e como fazer a higiene íntima”

Mariana Betioli
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(intervenção sobre foto monika kozub/Unsplash)

O papel dos coletores e absorventes reutilizáveis

Segundo Mariana, os coletores menstruais podem ser uma peça chave no combate à pobreza menstrual. Ela explica que por ser reutilizável, durável e ter um tempo maior de uso seguro, o coletor é, para grande parte das pessoas em situação de vulnerabilidade, uma opção viável. 

“Seu uso gera economia, reduz o risco de infecção e traz muito mais praticidade para os dias de menstruação, principalmente para quem passa muito tempo fora de casa”, afirma. “Se o copinho pode durar até três anos, podemos pensar em políticas públicas que o incluam em cestas básicas, reduzindo o custo do governo.” E é claro que a distribuição precisa acontecer junto com a orientação – afinal, não adianta ter o produto sem saber que o xixi sai de um lugar diferente do sangue. 

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(intervenção sobre foto de cottonbro/Pexels)

O que está sendo feito pelos três poderes?

Segundo o Impostômetro, criado pela Associação Comercial de São Paulo, o absorvente tem tributação média de 34,48%, o que significa que mais de um terço do valor pago vai para as taxações. Entram na soma PIS, COFINS e ICMS. A isenção vai apenas para o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). “Diversos países ao redor do mundo já isentaram essas tarifas, o que abaixa o custo para o consumidor e deixa o produto mais acessível”, diz Mariana. “A partir do momento que o poder público entender esse item como essencial, terá um subsídio para a redução de preço – é uma política pública muito possível.”

No ano passado, o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, projeto da deputada Marília Arraes (PT-PE), que constitui na estratégia para promoção da saúde e atenção à higiene íntima. No entanto, vetou o artigo que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes de baixa renda, mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema e mulheres em unidades do sistema penal.

Ele vetou, ainda, um trecho que incluía absorventes nas cestas básicas distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Apesar do texto prever que o custeio viria dos recursos destinados ao SUS, o presidente argumentou que o projeto não estabeleceu a fonte desse fundo. Após meses pressão da sociedade civil e organizações não governamentais, esses vetos foram derrubados no dia 10 de março por 64 votos a 1 no Senado e por 425 votos a 25 na Câmara dos Deputados.

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Alguns estados, por sua vez, atuam para transformar o cenário da precariedade: no Rio de Janeiro, o projeto de lei do vereador Leonel Brizola Neto (PSOL), prevê que absorventes estejam disponíveis de graça para alunas da rede municipal. Em São Paulo, o projeto Menstruação sem Tabu, das deputadas Beth Sahão (PT), Delegada Graciela (PL), Edna Macedo (Republicanos), Janaina Paschoal (PSL) e Leci Brandão (PC do B) quer distribuir absorventes em cestas básicas, escolas estaduais, locais de internação de jovens infratoras, presídios e abrigos. Já em Santa Catarina, o governador Carlos Moisés sancionou um projeto de distribuição gratuita de absorventes higiênicos para estudantes de baixa renda na rede pública estadual de ensino. Mas, ainda que haja esses avanços, a discussão ainda precisa evoluir e tomar força para que os direitos básicos de corpos menstruantes sejam garantidos.

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