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Defender a infância

Quando o expediente termina, o policial militar Fabiano Iorio tira a farda e se veste de palhaço para fazer caridade a crianças na pele do Soldado Ziza

por Artur Tavares Atualizado em 7 ago 2020, 12h52 - Publicado em 7 ago 2020 01h51
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(Clube Lambada/Ilustração)

m policial que se veste de palhaço. As mentes mais irônicas podem imaginar a cena de maneira completamente pejorativa, mas não é bem assim. Quando a farda do policial militar Fabiano Iorio vai para o armário depois de um dia de trabalho, ele se fantasia e parte para seu segundo turno, dessa vez como o Soldado Ziza. Persona criada há cinco anos, ele se dedica a ajudar crianças com doenças raras e também famílias em estado de vulnerabilidade social. É de se imaginar que a benfeitoria faz sucesso dentro da corporação, mas a verdade é que Fabiano caminha sozinho nessa trilha de caridade. O que deveria ser um exemplo a ser seguido por todos que juram manter a lei e a ordem, a ajudar o próximo, é, na verdade, uma exceção no Brasil que pede intervenção militar e faz arminha com as mãos nos cafés da manhã aos domingos.

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Descobri o trabalho de Fabiano sem querer enquanto estava navegando no Twitter. Sou dessas pessoas que perde tempo lendo comentários em perfis de pessoas famosas, um pouco para entender a temperatura dos assuntos do momento na média da sociedade. Não é saudável, eu sei, mas foi em uma dessas situações que vi mensagens de Ziza em perfis de colegas jornalistas. Embora nosso trabalho seja ouvir com atenção, muitas vezes não damos a menor bola para boas ações. No fundo, corre em nossas veias uma predileção pelo barulhento, pelo midiático, pelo “espreme que sai sangue”. Em nossas crenças tão enviesadas, é simplesmente difícil acreditar que haja por aí um policial militar se dedicando a fazer o bem hoje em dia, um preconceito tão idiota quanto todos os outros preconceitos que carregamos em nossas vidas.

Se foi duro se despir dessa concepção boba antes de enviá-lo uma mensagem, depois da nossa entrevista o difícil se tornou entender como meus colegas simplesmente não estão nem aí para uma história tão bonita. Nascido na cidade de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro, Fabiano sonhava desde criança em ser policial. Tinha em casa o exemplo do pai, servidor público da corporação, e a proibição da mãe, que não queria vê-lo de farda em um dos estados mais perigosos do país. Negro, pobre, e membro de uma congregação Batista, tinha na alma o espírito de caridade: “Vem da igreja essa atitude de realizar trabalhos voluntários. Sempre tive essa tendência a me vestir de personagens engraçados para animar as crianças, tinha esse vínculo com elas”, ele conta. “Trabalhei muito no lixão do Jardim Gramacho [por três décadas, o maior aterro sanitário da América Latina], muitas famílias viviam ali, distribuí muitas roupas e alimentos, e só ia caracterizado.”

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Fabiano não pôde seguir os passos do pai, mas encontrou no Corpo de Bombeiros uma maneira de dar vazão aos seus desejos de servir à sociedade: “Devido à minha caminhada, entendi que poderia fazer mais pelas pessoas. Quando você fala que é bombeiro, já é visto automaticamente como herói nacional” diz. Mas a vida tem caminhos misteriosos, e quando se casou com uma sargento do Exército, empacotou suas coisas e foi de mudança para Curitiba. A ideia era trabalhar com informática, sua formação superior, mas, longe da família, prestou concurso para a Polícia Militar e acabou passando.

Foi na capital paranaense que o Soldado Ziza apareceu pela primeira vez. Antes, era o Palhaço Ziza, mas Fabiano percebeu que havia espaço para se revelar como policial militar mesmo fazendo ações sociais. Entre idas e vindas em orfanatos e hospitais, conheceu um garoto chamado Breno, que acabou por mudar sua vida, há cerca de dois anos. Portador de autismo, da raríssima Síndrome de Arnold Chiari, e também de siringomielia, o menino necessita de um tratamento caríssimo para seguir sua vida: “Quando o conheci, ajudei ele em um bazar beneficente, me apaixonei pela causa. É um garoto extremamente adorável. Quis entrar de cabeça para ajudá-lo. Ele precisa fazer uma cirurgia que só é realizada em Barcelona, no Instituto Chiari, cujo custo é de cerca de R$ 140 mil, já inclusas viagem e hospedagem. Começamos a fazer cafés coloniais, jantares beneficentes, bazares diários, rifas, mas percebi que as pessoas não aderiam muito a essas campanhas. Isso porque no Brasil há muitos escândalos de pessoas usando a boa fé das outras para se beneficiar de maneira errada”, explica.

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Influenciador do bem

A solução encontrada por Fabiano foi tornar o Soldado Ziza uma personalidade das redes sociais. Abriu uma conta no Instagram e um canal no YouTube, onde disputa a atenção com celebridades das mais diversas, muitas delas preocupadas apenas com sua autoimagem e com aquilo que conseguem reverter em dinheiro para benefício próprio. Mas, assim como no mundo real, no universo virtual quem se dá bem é a blogueira que mostra o corpo para seus “seguimores”. A título de comparação, Ziza tem pouco mais de 32 mil seguidores no Insta, e 96 mil inscritos na plataforma de vídeos do Google, enquanto seu ídolo/modelo/case Felipe Neto alcança mais de 40 milhões de pessoas na internet.

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No caso de Ziza, há um documento registrado em cartório em que ele abre mão de toda a renda acumulada com suas redes sociais e com as vaquinhas que faz online. A monetização, porém, ainda é uma realidade distante. Com os views no YouTube, ainda não conseguiu passar dos 400 dólares em caixa, mas a soma é maior com quem se dispõe a participar de campanhas de arrecadação na web. Sua meta, porém, é ambiciosa: “Imagina que para salvar a vida de uma criança, precisamos de R$ 1 milhão. Com um milhão de seguidores, se cada pessoa der um real, já alcançamos a meta. É um potencial muito grande para fazer ações sociais e o bem.”

“Mas, quem está disposto a encarar isso?”, ele questiona. “As pessoas me perguntam se não tem ninguém em Curitiba que me ajude. Pra mim não tem hora, local, momento… Tem uma família de venezuelanos refugiada aqui, acabei conhecendo eles por intermédio de um grupo da Polícia Militar, e eu os ajudo até hoje com aluguel, utensílios, móveis, tudo. Um dos irmãos fez aniversário, há poucos domingos estive na casa deles. Comprei um bolo, um refrigerante, um brinquedinho, e cantamos parabéns. Poucas são as pessoas que estão dispostas a deixar a família em casa para ajudar outras.”

Em sua luta diária, Fabiano diz já ter conseguido ajudar cerca de 3 mil famílias como Soldado Ziza. Uma de suas ações mais recentes foi no interior do Paraná, na cidade de Tigabi, em que ele fez a alegria de 300 crianças no Natal: “Alugamos um carro, enchemos de brinquedos, levei a Ana e a Frozen. Foi uma alegria. São 300 crianças que nunca tiveram isso na vida, que não sabiam nem o que era brinquedo. Pra mim, isso não tem preço, não tem dinheiro que pague esse tipo de ação.” Nesses momentos, ele não esconde a indignação com o poder público: “Tiveram mães que contaram que diversos prefeitos e vereadores que passaram pela cidade jamais fizeram algo parecido com isso. São pessoas que teriam a condição de fazer tranquilamente. Eu não precisaria sair de Curitiba pra fazer isso lá. Porque, infelizmente, ainda existem pessoas que se utilizam da política para benefício próprio.”

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Mas não são as grandes ações pontuais que preenchem o coração de Ziza, e sim as pequenas atitudes do dia a dia: “Dentro da minha fé, vou dizer que é Deus quem manda essas pessoas até mim. Eu estava indo para a casa dos venezuelanos, e no meio do caminho tinha uma senhora pedindo dinheiro com duas crianças na via. Passei e senti aquele desejo no coração de brincar com as crianças. Eu ando sempre com brinquedos no porta-malas, peguei dois e fui até as meninas. Levei pirulito também. Entreguei ali para elas, fiz a alegria daquelas crianças naquele momento. Talvez eu não consiga mudar o mundo, mas naquele dia o mundo daquelas crianças foi mudado. Alguém parou e fez algo diferente por elas. É assim que acontece.”

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“Tiveram mães que contaram que diversos prefeitos e vereadores que passaram pela cidade jamais fizeram algo parecido com isso. São pessoas que teriam a condição de fazer tranquilamente. Eu não precisaria sair de Curitiba pra fazer isso lá. Porque, infelizmente, ainda existem pessoas que se utilizam da política para benefício próprio”

Em sua jornada, Ziza já conseguiu chamar a atenção de nomes como o apresentador Marcos Mion, que tem um filho autista e é um grande advogado da causa, o cantor sertanejo Gustavo Lima, e até o presidente da República Jair Bolsonaro, que o parabenizou publicamente no Twitter ainda em 2018: “Fico muito feliz em saber que essa corrente está crescendo a cada dia. É a semente da solidariedade que estamos plantando. E quanto mais pessoas vêm, mais pessoas farão o bem no futuro. Eu costumo dizer que o ser humano foi criado para ser bom. O que falta, às vezes, é um empurrãozinho”, conclui.

Polícia em tempos tão estranhos

Se os noticiários passam a imagem – nem sempre positiva – de quanto o militarismo brasileiro é unido, a questão que fica no ar durante a conversa com Fabiano é justamente sobre o porquê de ações sociais tão importantes não encontrarem espaço entre seus companheiros: “Infelizmente, estou em uma cidade em que o povo em si é considerado muito frio. Não é um povo acolhedor. Você vai perceber que quem está dentro da Polícia Militar, Civil, ou nos Bombeiros são os mesmos curitibanos. Eles não aderem muito”, explica. “Vou te dar um exemplo de como tudo isso é estranho para eles. Quando faço alguma compra para ajudar alguém, já vou vestido de palhaço. Isso causa uma estranheza gigante! Se eu pudesse filmar a reação das pessoas, seria algo para rirmos a tarde inteira. Diferente do Rio de Janeiro, que se você andar de palhaço vão vir 50 pessoas te abraçar, te jogar para o alto, te dar os parabéns. Aqui é um povo mais fechado.”

Sobre seus colegas, Ziza lembra que o Paraná tem cerca de 15 mil policiais militares, mas que “apenas um ou outro gostam de fazer ações sociais.” O caso mais bem-sucedido, ele lembra, é de um sargento que faz equoterapia com crianças com deficiência mental, um trabalho de mais de 12 anos reconhecido na Câmara dos Vereadores de Curitiba e na Assembleia Legislativa do estado, mas que também tem pouca aderência entre outros servidores: “Não sei se a instituição não quer se envolver, se não acha interessante, ou se pensa que queremos nos promover com isso. Não posso falar pela corporação.”

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Com o décimo maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, Curitiba é uma das poucas cidades do país que pode ser considerada de primeiro mundo, uma realidade muito diferente de Duque de Caxias ou da maioria dos municípios nacionais. No entanto, as mazelas que Fabiano observa em sua rotina não são estranhas: “Nas áreas periféricas, vemos problemas com saneamento, escolas. Tudo é deficitário”, enumera. “A escola hoje, para esse tipo de família… eles jogam as crianças lá dentro porque têm que trabalhar, mas não estão nem aí para o que está acontecendo com os filhos dentro da sala de aula. Eles querem que o diretor, o coordenador, os pedagogos criem os filhos deles. Por mais que precisem trabalhar, precisam dar atenção para os filhos deles.”

Sobre a situação sanitária brasileira, tão urgente em tempos de pandemia, afirma: “É lastimável. Na periferia de Curitiba, parece que nem existe. Estava escutando no noticiário que 45% das escolas brasileiras não têm condição de retornar às aulas por falta de água e saneamento. É complicado.”


“A escola hoje, para esse tipo de família… eles jogam as crianças lá dentro porque têm que trabalhar, mas não estão nem aí para o que está acontecendo com os filhos dentro da sala de aula. Eles querem que o diretor, o coordenador, os pedagogos criem os filhos deles”

No entanto, Fabiano nota que, diferente do seu estado natal, o policial no Paraná ainda é respeitado porque há baixos índices de corrupção dentro da corporação: “No Rio, quando a corrupção entrou de maneira devastadora, a Polícia Militar deixou de ser respeitada. Depois da corrupção vem o policial mau caráter, que não está nem aí para o cidadão de bem. Ele começa a ser agressivo, bruto. O cidadão passa então a não ver o policial como o herói que deveria ser. Ele vê o policial como esse agente truculento. O problema não é a farda ou a corporação, são as pessoas que vestem as fardas. Parte muito do caráter do ser humano.”

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Sem restrições, afirma também que “o pior bandido é aquele que usa a farda para prevalecer. A farda é o símbolo de heroísmo para muitas crianças e adultos. A arma, que deveria proteger a ele, às famílias e o cidadão de bem, não devem ser usadas para cometer ilícitos. Esse tipo de policial tem que ser punido severamente.”

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Tão latente, a discussão sobre a desmilitarização da polícia não passa batida nas opiniões de Fabiano: “Tem prós e contra. A questão precisa ser bem estudada, porque a polícia tem dois aspectos que funcionam, que são a hierarquia e a disciplina. Se você tira o militarismo, acaba com esses pilares. Pra onde vai a polícia? Hoje você tem dispositivos para controlar a PM e fazer com que ela realmente esteja a favor do Estado e do cidadão de bem. A polícia civil não tem esses dispositivos legais. Ela pode, por exemplo, fazer greve. A PM não pode. Existe um dispositivo legal na Constituição. Há uma linha muito tênue. Consigo ver prós e contras. Acho que temos que pensar no coletivo, na sociedade como um todo.”

Pergunto a Fabiano qual a opinião dele sobre a participação cada vez maior de militares dentro das esferas governamentais, e ele logo me diz que não gosta de tomar partido, e que luta a favor da solidariedade. Mesmo assim, lembra que “a Constituição tem dispositivos legais proibindo militares da ativa na política”, embora hajam 2.930 deles espalhados pelos três poderes. “Não vejo problemas em militares que passem para a reserva, é um direito constitucional deles. Temos muitos militares no governo, mas vejo… Não me agrada muito, porque é inconstitucional em muitos casos. Temos que primar pela legalidade dos atos, pelo que é certo. Se não é certo, eu não costumo compactuar.”

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(Diego Cagnato/Fotografia)

Então, Ziza me lembra dos meus colegas jornalistas, e de todos os meus amigos que militam mais ao lado da esquerda. “O simples fato de dizer que sou policial militar gera um desconforto muito grande nas redes sociais. Muitas pessoas dizem que ajudariam se eu não fosse PM.” Discutimos tanto a cultura do cancelamento, e esquecemos que do outro lado existem pessoas que simplesmente não pensam como nós: “Teve uma colunista da Folha de S. Paulo que disse que queria me ajudar, mas que estava confusa em relação aos meus princípios, apenas por eu ser policial militar. Ela acha que sou bolsonarista. Para mim isso não importa, quero que os dois lados se juntem para que possamos fazer a diferença.”

Sobre o assunto, ele conclui: “O fato dos militares estarem dentro do governo, e o governo cometer algumas coisas que não são legais, com pronunciamentos que vão de encontro com a democracia, com certeza reflete bastante em nós, que estamos na ponta. Tenho que me virar dobrado para cativar o cidadão de bem, porque a imagem que fica é que a qualquer momento terá um golpe. O cenário que estamos vivendo hoje é complicado. E a polarização acaba com qualquer estrutura que você pensa em fazer para ajudar pessoas.”

Para ajudar, siga o canal do Soldado Ziza no YouTube. Mas não deixe de assistir aos vídeos, porque apenas a inscrição não gera monetização. Lembre-se: faça o bem, julgue menos e não cancele ninguém.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Diego Cagnato. Confira mais de seu trabalho aqui

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