Empurrei minha alma em um buraco escuro, profundo, e segui logo atrás. Me vi rastejando para fora, enquanto rastejava para dentro. Bateu tão forte, não conseguia baixar. Enxerguei tanta coisa, até minha mente estilhaçar. Eu dropei para dentro apenas para ver em que condição a minha condição se encontrava.”
Tradução – digamos, expositiva – de alguns versos de Just Dropped In (To See What Condition My Condition Was In), canção de Mickey Newbury gravada em 1967 pelo Kenny Rogers and the First Edition, conjunto de pop rock que navegou na onda psicodélica e acabou revelando o astro da música country e futuro dono de uma cadeia de restaurantes de frango assado. Em um show solo em São Paulo, em 2011, Kenny Rogers – que nos deixou em março último, aos 81 anos –, sacou essa pérola da contracultura em meio ao seu repertório sintonizado na frequência AM das rádios country norte-americanas (e sob medida para os salões das franquias do Kenny Rogers Roasters).
–A canção era conhecida de alguns dos filhos do público que lotava o salão do extinto Via Funchal, na Vila Olímpia, por ter embalado (e imortalizado) uma cena do filme cult O Grande Lebowski (1998), na qual, sob a direção dos irmãos Cohen, Jeff Bridges fez hilária caricatura de uma viagem de LSD. “Não se escrevem mais canções como esta”, comentou Kenny, faceiro, ao fim de sua interpretação.
Talvez canções assim não sejam mais compostas como consequência da guerra às drogas, declarada pelo ex-presidente Richard Nixon em uma coletiva de imprensa em 18 de junho de 1971, na qual ele taxou especialmente o LSD como inimigo número um dos Estados Unidos. Imobilizando assim um grupo de oposição política, os hippies, que na paz e no amor combatiam a Guerra do Vietnã e não compravam o american way of life baseado na consumo e na produção.
Como o Grande Lebowski, que, no filme, conseguiu viver de acordo com seus ideais até os anos 90, “dude”. Agora, uma coisa é o indivíduo levantar bandeiras pacifistas e progressistas, exercer suas liberdades individuais e até fumar sua maconha enquanto dirige escutando Creedence Clearwater Revival. Outra é ser inimigo público do estado número um, ou melhor, “o homem mais perigoso da América”, como foi declarado, também por Nixon, Timothy Leary, um dos primeiros psicólogos a conduzir experimentos com psicodélicos com um propósito de cura espiritual profunda, nos laboratórios de uma universidade, Harvard, em parceria com Richard Alpert – pesquisa que, depois ele descobriria, foi monitorada pela CIA.
Também em 1971 ocorreu a Convenção de Substâncias Psicotrópicas da ONU, na qual o LSD foi classificado como uma substância controlada do tipo 1, interpretação que até hoje causa controvérsia entre especialistas, uma vez que os benefícios propiciados pelas drogas psicodélicas clássicas (LSD, psilocibina, mescalina e DMT) se revelam maiores que os riscos, e tais substâncias jamais geraram psicopatas, causaram dependência e/ou, diretamente, a morte de alguém. Os estudos com psicodélicos foram praticamente extintos das universidades por mais de três décadas. Mas, como diria Lebowski, essa agressão não se sustenta, cara.
Apesar da falta de investimento massiva em ciência e pesquisa no país, um time brasileiro de neurocientistas e psiquiatras – nomes como Dráulio Araújo, Eduardo Schenberg, Luís Fernando Tofoli e Sidarta Ribeiro, entre outros – está liderando um movimento mundial que é chamado de renascença psicodélica. Assim como vem acontecendo com a maconha – que, apesar de potencializar a brisa, não pode ser considerada um psicodélico – na última década, substâncias como dietilamida do ácido lisérgico (LSD), psilocibina (o princípio ativo dos chamados cogumelos mágicos), Ayahuasca (que contém DMT), mescalina e MDMA vêm sendo usadas em uma série de pesquisas reveladoras mundo afora.
“A criminalização foi usada como forma de controle político de uma oposição. Numa democracia, você não pode criminalizar uma posição, então uma manobra que se faz é criminalizar um hábito dessa oposição”
Eduardo Schenberg
“O currículo dessas substâncias foi muito manchado”, diz o pesquisador Eduardo Schenberg, doutor em neurociências e comportamento pela USP, mestre em psicobiologia pela Unifesp, com pós-doutorados em neuropsicofarmacologia e neuroimagem na Unifesp e na Imperial College London. “Passamos pela ressaca da perseguição explícita. Vimos um movimento contrário a um grupo específico que se opunha à Guerra do Vietnã e fazia uso dessas substâncias, e a criminalização foi usada como forma de controle político de uma oposição. Numa democracia, você não pode criminalizar uma posição, então uma manobra que se faz é criminalizar um hábito dessa oposição.”
Ele alerta que o primeiro passo para compreender o movimento é abrir a cabeça. “Há um tabu enorme com o termo psicodélico e do que foi o movimento hippie nos EUA. Esses tabus são percepções de um assunto sobre o qual as pessoas acham que sabem. Mais do que ignorância, se vê uma ilusão de conhecimento, que é outra forma de ignorância. A ilusão de saber que a coisa é horrorosa impede a pessoa de entender mais a fundo e até de fazer pesquisa com essas substâncias. Por décadas isso dificultou ou até mesmo impediu as pesquisas”, diz Schenberg.
Ele compara a perseguição aos hippies e ao LSD com o controle de outros grupos oprimidos socialmente nos EUA. “O ópio a gente sabe que foi usado pelos imigrantes chineses, a maconha pelos imigrantes mexicanos e a cocaína pelos negros. A criminalização dessas substâncias foi a instrumentalização de um racismo fundamental na história dos Estados Unidos. É muito difícil entender o racismo nos EUA sem entender a proibição das drogas”, faz um adendo.
Turbo neuroquímico
Membro da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), sócio-fundador da International Society for Research on Psychedelics (ISRP) e membro do corpo editorial do Journal of Psychedelic Studies, Schenberg lidera estudos de ponta na área envolvendo o uso de MDMA (princípio ativo do ecstasy) no combate ao estresse pós-traumático.
Atualmente na fase três, a última antes da aprovação no FDA (o equivalente à Anvisa nos EUA), o estudo, segundo ele, com 90% de chances de sucesso, foi desenvolvido pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos, a Maps, criada em Santa Cruz, na Califórnia, em 1986. “Estamos muito felizes de estarmos tão próximos da regulamentação do MDMA, algo pelo qual a Maps batalha há quase 35 anos”, comemora, de Los Angeles, Natalie Lyla Ginsberg, diretora de política e advocacia da organização. Passada a fase atual, de testes clínicos com veteranos de guerra que sofrem de estresse pós-traumático (condição que mata de suicídio, em média, 20 ex-combatentes norte-americanos por dia), Schenberg estima que a substância seja liberada para uso medicinal nos EUA a partir de 2022.
Com a intenção de fazer o mesmo no Brasil, o pesquisador importou o protocolo que ajudou a criar na Maps, e realizou o estudo com três vítimas de abuso sexual acometidas por estresse pós-traumático grave. “Dois voluntários melhoraram muitíssimo, num nível de sair curado, e outro nem tanto, mas com 30% de melhora, o que é proporcionalmente o índice de sucesso que pudemos observar no estudo da Maps, ambos sem nenhum risco”, aponta Schenberg. O estudo piloto foi publicado em julho na Revista Brasileira de Psiquiatria e submetido à Anvisa. “É um marco, tem um valor simbólico e um valor científico muito importantes”, comemora o pesquisador. Com a aprovação do FDA, ele estima que o medicamento seja liberado por aqui no ano seguinte.
“Estamos muito felizes de estarmos tão próximos da regulamentação do MDMA, algo pelo qual a Maps batalha há quase 35 anos”
Natalie Lyla Ginsberg
Envolvido no estudo há cinco anos, Schenberg explica que o principal entrave continuam sendo os preconceitos e tabus. “O processo de aprovação foi super prorrogado, aquela coisa de ter que entrar com recurso administrativo e explicar as regras da Anvisa para o comitê de ética. A pergunta não deve ser uma substância é ilegal ou não, mas, sim, se ela é perigosa”, expõe Schenberg, que também encontrou dificuldades em importar a substância para o Brasil. O experimento, que custou R$ 100 mil, contou com 50% de financiamento coletivo na internet e 50% de apoio da Maps.
“Noto uma total falta de investimento da indústria farmacêutica, que é o grande player do mercado, é quem coloca dinheiro, e sem dinheiro fica muito difícil desenvolver alguma coisa. O desenvolvimento de um remédio é algo muito caro, a Maps investiu mais de 20 milhões no desenvolvimento do MDMA e ainda é um estudo pequeno. Pouco dinheiro para uma indústria acostumada a investir bilhões. Mas conseguir um investimento desse valor em uma substância mal falada exige o trabalho de uma vida.”
Luís Fernando Tófoli, professor e pesquisador do departamento de psicologia médica e psiquiatria da Unicamp, acrescenta: “A burocracia impede que as pesquisas caminhem. Quando se trabalha com substâncias controladas, é difícil conseguir autorização exatamente porque elas são controladas, aí entra em um ciclo vicioso”.
No protocolo aplicado por Schenberg, a administração de MDMA está associada a um trabalho terapêutico em ambiente controlado, agindo mais no sentido de “turbinar” a experiência do paciente. Do total de 15 sessões com dois psicólogos diferentes, três, com duração entre oito e dez horas, incluem o uso da substância. Tendo os sinais vitais constantemente monitorados a cada meia-hora por um médico de plantão, o paciente é convidado a ouvir música, ficar introspectivo e relatar o que sente e pensa.
O MDMA funciona como um turbo neuroquímico, ele faz com que os neurônios liberem mais neurotransmissores, incluindo moléculas como serotonina, noradrenalina e dopamina, relacionadas ao humor, à cognição e à memória, em mecanismo bastante complexo de ação no cérebro. No nível da neuroimagem, o MDMA diminui o fluxo sanguíneo na região das amígdalas, relacionadas ao medo e a outras emoções primitivas, no centro do cérebro, e aumenta a oxigenação no córtex pré-frontal, que é a região de pensamento e raciocínio, vinculado à autoconsciência. Sob esse efeito, o paciente é capaz de acessar suas emoções com mais intensidade e menos medo, impondo menos barreiras para o terapeuta acessar. Eduardo Schenberg ainda pretende adaptar o protocolo da Maps em um estudo com profissionais da saúde vítimas de estresse pós-traumático provocado pela rotina dos hospitais públicos durante a pandemia do novo coronavírus.
“Não vamos recomendar publicamente coisas ilegais, mas posso dizer que ouvi relatos de pessoas que tiveram experiências muito positivas ajudando a lidar com ansiedade e depressão durante a pandemia”
Natalie Lyla Ginsberg
Inclusive há relatos do uso de psicodélicos contra o estresse e a depressão causados pelo isolamento social. Mas a Maps não recomenda oficialmente o uso desassistido dessas substâncias. “Fazemos pesquisas legais e terapias, então não vamos recomendar publicamente coisas ilegais, pois não queremos que ninguém vá preso ou se coloque em perigo, mas posso dizer que ouvi relatos de pessoas que tiveram experiências muito positivas ajudando a lidar com ansiedade e depressão durante a pandemia, atenuou muitas das dificuldades de estar em quarentena ou luto por gente morrendo. Ouvi que pessoas tiveram experiências intensas em trabalhos preparados com muito cuidado. Coisas muito fortes podem surgir durante uma pandemia, não é uma época qualquer. As pessoas estão dispostas a se colocarem em uma posição onde qualquer coisa pode emergir, então é importante que estejam em um lugar em que se sintam seguras.”
No entanto, Natalie reconhece que é possível se beneficiar dos efeitos dos psicodélicos – por exemplo, contra a depressão ou a ansiedade – a partir do uso recreativo das substâncias, e que muitos dos caminhos cerebrais abertos pela substância permaneceriam depois de passar o efeito. “As pessoas têm experiências reveladoras na pista de dança. Mas, embora isso seja possível, é menos provável do que quando isso ocorre em um cenário apropriado, com um terapeuta, ou até com amigos e família quando você se planeja, coloca uma venda nos olhos, uma música propícia, e mergulha para dentro. Pois geralmente em festas você está extrovertido, então é mais difícil fazer o seu trabalho”, explica Natalie. Nos estudos psicodélicos, leva-se muito em conta o set and setting (cenário e contexto), que pode ir de uma clínica totalmente equipada a um ritual xamânico, desde que com segurança.
Manifestar a alma
O LSD foi sintetizado em 1938 pelo químico suíço Albert Hofmann nos laboratórios da Sandoz, em Basel, durante um estudo amplo sobre alcalóides derivados de fungos. As propriedades psicodélicas da substância só foram descobertas cinco anos mais tarde, quando Hofmann ingeriu acidentalmente uma dose e ficou amarradão. O LSD, produzido pela Sandoz, chegou ao mercado em 1947 com o slogan: “Uma cura para tudo, de esquizofrenia a comportamento criminoso, ‘perversões sexuais’ e alcoolismo”. Desde que foi proibido, em 1968, pode ser encontrado no mercado negro em cartelas, daquelas que se põe um pedaço na língua, ou na forma líquida, a chamada gota.
O termo psicodélico – aglutinação das palavras gregas psique, que significa alma, espírito ou mente, e delein, que pode ser traduzida como manifestação, revelação – foi criado pelo psiquiatra britânico Humphry Osmond em 1956, a partir de uma correspondência na qual trocou rimas com o escritor e filósofo Aldous Huxley na tentativa de descrever os efeitos dos psicodélicos e distinguir esse tipo de substância dos estimulantes (cocaína, cafeína) e dos depressores (opiáceos, camomila, benzodiazepínicos).
“Para fazer este mundo trivial sublime, tome phanerothyme“, escreveu o autor inglês, juntando as palavras phaneroein e thymos, que no grego antigo significam, respectivamente, visível e alma. Ou alma visível. Ao que Osmond respondeu: “Para mergulhar no inferno ou soar angélico, tome uma pitada de psicodélico. Ou “mente revelada“, como ele quis dizer ao apresentar oficialmente a palavra em um encontro da Academia de Ciências de Nova York.
O psiquiatra vinha conduzindo estudos com essas substâncias ainda sem classificação desde o início dos anos 50, primeiro no St. George’s Hospital, em Londres, e depois no hospital psiquiátrico de Weyburn, no Canadá. Em 1953, enquanto estava em Los Angeles para um congresso, Osmond forneceu uma dose de mescalina ao escritor e supervisionou a experiência. Como resultado, o romancista, ensaísta, dramaturgo e poeta escreveu As Portas da Percepção (The Doors of Perception), no qual elabora e relata suas visões sob efeito da mescalina, substância extraída de diferentes espécies de cactus como peyote, San Pedro, tocha peruana e apropriada da cultura indígena do México. Doze anos mais tarde, inspirado pelo livro, um estudante de cinema chamado James Douglas Morrison iniciaria uma banda chamada The Doors.
Essa definição de abrir as portas da percepção é um efeito comum entre as substâncias psicodélicas clássicas. Que, por anos, inclusive, foram consideradas alucinógenas, rótulo que especialistas hoje rejeitam. Sob efeito dessas drogas, o indivíduo tem distorções visuais, ou as chamadas “mirações” quando de olhos fechados, mas está ciente de que aquilo é uma alteração temporária de percepção. Longe de se assemelhar à esquizofrenia, doença que tem a alucinação auditiva entre os seus sintomas, ao contrário do que muitos psiquiatras já defenderam.
A lisergia é um estado alterado de consciência no qual tendem a se manifestar conteúdos inconscientes e a se estabelecer uma relação de integração com a natureza e de unidade com o universo. São comuns relatos de efeitos como o de diluição do ego. “Tem muito a ver com essa percepção que a gente tem de que existe essa barreira entre eu e o mundo, de que há uma separação fundamental. Durante a experiência com psicodélicos, as pessoas perdem essa sensação”, explica Schenberg. “A maioria das pessoas que já tomaram psicodélicos diz que está entre as cinco melhores experiências de suas vidas”, aponta Natalie.
Essa conexão com o universo seria resultado da abertura das tais portas da percepção, o que nos permitiria transcender o eu, o que para muitos é interpretado como uma experiência mística. Inclusive existem teorias de que as frequências específicas nas quais o cérebro opera sob efeito de psicodélicos nos conectaria a outras dimensões, de que na glândula pineal ficaria terceiro o olho ou que a dimetiltriptamina, ou DMT, substância produzida em 60 espécies de plantas e, em doses mínimas, pelo corpo humano, seria liberada no ato da morte (o que explicaria relatos de experiência de quase-morte sob efeito de Ayahuasca).
A psiquiatria atual dispensa esse tipo de explicação simplista e entende a ação dos psicodélicos integrada a redes neuronais específicas que atuam, em ondas mais largas e, portanto, de menor frequência, em diversas regiões do cérebro, como se este passasse a funcionar em banda larga. “Também ocorre o desarranjo no cérebro, ele fica meio que uma bagunça, por isso dá esses efeitos de mudança de percepção. A modificação da consciência vem desse rearranjo do cérebro”, explica Schenberg. “Muitos cientistas gostam de dizer que o cérebro é o órgão mais complexo do universo. Tem mais neurônios na nossa cabeça do que estrelas na via láctea.”
Em 2016, Schenberg participou do primeiro estudo de neuroimagem do mundo capaz de mapear o cérebro sob efeito de LSD, realizado pela Imperial College London, na Inglaterra. Pelas imagens, essa maior integração entre as áreas do cérebro é visível, assim como a atividade de muito mais áreas no processamento visual, até mesmo quando a cobaia estava de olhos fechados, o que indica como ocorrem as mirações. Dr. Robin Carhart-Harris, que liderou o estudo, disse à época: “Nossos cérebros se tornam mais limitados e compartimentalizados conforme nos desenvolvemos da infância para a idade adulta, nosso pensamento pode se tornar mais rígido e focado ao amadurecermos. De muitas maneiras, o cérebro sob LSD restaura o estado cerebral de quando éramos crianças: livre e desimpedido. O que também faz sentido quando consideramos a natureza imaginativa e a hiper-emotividade da mente de uma criança.”
“Nossos cérebros se tornam mais limitados e compartimentalizados conforme nos desenvolvemos da infância para a idade adulta. De muitas maneiras, o cérebro sob LSD restaura o estado cerebral de quando éramos crianças: livre e desimpedido”
Dr. Robin Carhart-Harris
O estado entrópico, como classifica Luís Fernando Tófoli, de quebra de padronização do ego, é resultado de uma hiperconectividade cerebral e produz efeitos como sinestesia, que é perceber cheiro na imagem, cor no cheiro ou gosto no som. “Com isso, esses estados de consciência ajudam a quebrar determinados padrões de resposta que estavam muito arraigados. Por isso eles costumam demonstrar sucesso no combate à dependência química”, explica o professor, citando uma analogia comum nos estudos psicodélicos. É como se os nossos padrões de ação e pensamento fossem estradas de terra e essas substâncias agissem como neve, cobrindo as estradas e nos permitindo formar novas trilhas. Assim como o cérebro de uma criança.
Isso poderia explicar a criatividade da profícua geração de rock psicodélico dos anos 1960, que escreveu letras libertárias ou capazes de dar um nó na cabeça, tais quais os versos que abrem esta reportagem, e recriou a lisergia musicalmente, tanto pelos estados de “fritação”, como das composições de Syd Barrett na primeira fase do Pink Floyd, quanto pela sinestesia emulada por bandas como Electric Prunes. Batizado por Roky Erickson, líder do The 13th Floor Elevators, o rock psicodélico, derivado do rock de garagem e do jazz, revelou bandas como The Seeds, Vanilla Fudge, Quicksilver Messenger Service, Ultimate Spinach e West Coast Pop Experimental Band e foi incorporado por vertentes pop mais conhecidas como Byrds, Jefferson Airplane, Grateful Dead e até Beatles e Rolling Stones. Além de Jimi Hendrix que, bem, fazia um negócio totalmente próprio.
Em 1968, ao subir no palco completamente chapado, Roky Erickson foi enviado a um hospital psiquiátrico em Houston, onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia e foi involuntariamente submetido a terapia eletroconvulsiva, o que lhe deixou sequelas até a morte, no ano passado. A essa altura, Timothy Leary era um autor publicado, com livros que defendiam os estudos e os ideias psicodélicos, e havia inspirado a Liga para a Descoberta Espiritual, religião que sacramentava o LSD.
Dois anos antes, em 1966, Timothy foi condenado a 30 anos de prisão pela posse de meio baseado, por um juiz que já havia expressado incômodo com a sua obra. Ele recorreu na Suprema Corte, com o caso Leary vs. United States (1969), no qual teve a sentença anulada. Mas, com a repercussão negativa do caso diante da cobertura sensacionalista da mídia, representou um marco do fim do sonho hippie.
Casos de monitoramento e perseguição de pessoas associadas ao movimento – de líderes espirituais a roqueiros influentes –, tornaram-se comuns, o que ajudou a demonizar as substâncias psicodélicas e a vender a ideia de que produziriam viagens tão intensas das quais o sujeito jamais voltaria. Concepção com a qual Schenberg não concorda. “Não há nenhuma evidência de que possa ficar louco para sempre, é um baita exagero “, avalia ele, que também enxerga preconceito nesse tipo de visão dos psicodélicos. “As pessoas mudam a visão de mundo, a maneira de enxergar as coisas. Há pessoas que tomam psicodélico e se revelam homossexuais. Se a família for muito homofóbica, vai dizer que o indivíduo tomou e nunca mais voltou, mas aquele pode ser um dos momentos mais significativos da vida dele, quando conseguiu se aceitar, reconhecer quem é e dar vazão aos seus desejos mais profundos.”
“Há pessoas que tomam psicodélico e se revelam homossexuais. Se a família for muito homofóbica, vai dizer que o indivíduo tomou e nunca mais voltou, mas aquele pode ser um dos momentos mais significativos da vida dele, quando conseguiu dar vazão aos seus desejos mais profundos”
Eduardo Schenberg
“Nos anos 60, era muito comum o movimento do cara que tomava uma substância, largava o terninho e mudava para uma fazenda para cultivar alimento. O cara deixou de ser um escravinho do sistema, deixou de ser um engravatado que só pensa em dinheiro e sucesso, e adotou outras estéticas, outros padrões de comportamento, outros valores, outro estilo de vida. E isso tende a assustar a sociedade, o que é o reflexo de uma sociedade voltada para a produção. Mas não há elo direto de psicodélicos com psicose e transtorno mental.”
E, no ambiente médico ou laboratorial, é possível garantir a segurança dos pacientes. “Tem um padrão de segurança para seguir que já está pré-definido. A pessoa não pode identificar nenhum traço de psicose, não pode ter tido nenhum episódio, e excluímos voluntários que têm parentesco com alguém que já sofreu de esquizofrenia, qualquer tipo de psicose ou transtorno bipolar. Seguindo esse padrão, temos relato de muita segurança nesses estudos. Em todos que foram feitos neste século, ninguém ficou psicótico”, explica Tófoli.
Os psicodélicos tampouco representam um risco ao corpo, como observa Schenberg: “No geral, são muito pouco tóxicos. A morfina, que é uma droga controlada e da qual se faz uso recreativo, não sofre nenhum preconceito e é muito mais perigosa. As drogas que mais matam são por parada cardíaca ou respiratória e os psicodélicos não causam isso. Afetam principalmente o córtex e não as regiões mais profundas, de onde vêm o ritmo respiratório e as frequências cardíacas. Os psicodélicos agem em uma parte mais superficial do cérebro”, explica Schenberg. “Psicodélicos geram um aumento da neuroplasticidade e além de tudo têm efeito anti-inflamatório”, acrescenta Tófoli.
“Observamos que a imensa maioria dos usuários de psicodélicos tem uma experiência positiva. Mas tem uma minoria que não, difícil de calcular, pois faz uso escondido. As pessoas que passam mal muitas vezes escondem que fizeram uso das drogas. Sei de um caso em que um sujeito foi internado por um surto psicótico pois os médicos não sabiam que ele estava fazendo uso da substância”, relata Schenberg. Como provavelmente aconteceu com Roky Erickson.
Cura para todos os males
Ao invés de malefício, os psicodélicos vêm se revelando eficazes no tratamento de diversas condições. Se não “uma cura para tudo”, como a Sandoz anunciava o LSD, a psilocibina, presente em centenas de espécies de cogumelos (que são legais em alguns países da Europa e podem ser encontrados no Brasil junto a produtores locais), tem se mostrado uma substância promissora contra depressão e ansiedade, em inúmeros estudos realizados por institutos e universidades mundo afora, como a King’s College London e a Beckley Foundation. Um estudo conduzido pelo instituto norte-americano Usona foi classificado pelo FDA como “terapia inovadora”, assim como MDMA havia sido, e está atualmente na fase 2 de testes. Para Schenberg, a aprovação lá fora não deve sair antes de 2025.
Os principais antidepressivos no mercado hoje são chamados de inibidores seletivos da recaptação de serotonina. Os psicodélicos agem nos receptores de serotonina, mas de outras formas. Eles tendem a ativar um desses receptores, conhecido como 5HT2A. A partir da ativação desse receptor, a psilocibina vai desencadear um aumento de disparos de neurônios que leva à dessincronização cortical, o que está relacionado ao estado não-ordinário de consciência. “Isso traz uma série de efeitos, como uma alteração do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), o que está associado a quadros de melhora de depressão. Quando você toma um antidepressivo, o BDNF só vai aumentar depois de 15 dias, mas, no caso dos psicodélicos, existe essa sensação de uma melhora imediata”, conta Tófoli, que ia começar uma pesquisa envolvendo Ayahuasca, mas que foi adiada por conta da pandemia.
“Quando você toma um antidepressivo, o BDNF [fator neurotrófico derivado do cérebro] só vai aumentar depois de 15 dias, mas, no caso dos psicodélicos, existe essa sensação de uma melhora imediata”
Luis Fernando Tófoli, professor e pesquisador
“Tomar Ayahuasca parece ter um efeito muito relatado pelas pessoas como se fosse psicoterapêutico em si”, explica o professor. “Diferente dos outros psicodélicos, é como se houvesse uma determinada instância que entrasse em contato com você pelo pensamento. Você tem a noção de que tem alguém falando com você, o que é chamado nas religiões ayahuasqueiras como ‘a voz do mestre’. A pessoa vê cenas, o que pode ter efeitos terapêuticos. Um paciente viu o próprio enterro e com isso decidiu parar de fumar cigarro. Se ele viu mesmo ou foi coisa da cabeça dele não me interessa, o que importa é que ele parou de fumar.”
Usado em rituais xamânicos por tribos nativas da Amazônia há mais de seis mil anos, o Ayahuasca é um chá extraído do arbusto chacrona, que possui DMT, e do cipó jagube ou mariri, do qual advêm as betacarbolinas. Por uma ação da enzima mao (monoaminoxidase), o DMT é rapidamente degradado pelo organismo, tanto que, quando fumado ou injetado, não faz efeito por mais de 15 minutos. No entanto, as betacarbolinas extraídas do cipó conseguem inibir a ação da mao, de modo que o DMT passa agir no organismo por até quatro horas. De alguma maneira misteriosa, indígenas ancestrais iletrados compreenderam essa complexa reação química do cérebro aos ingredientes colhidos na natureza muito antes do advento da ciência.
Classificada como enteógena, o que, também do grego, significa “manifestar o divino”, a bebida induz a um estado entrópico. É procurada como forma de cura – de alcoolismo, drogadição e depressão, entre as mais variadas condições – tanto em rituais xamânicos tradicionais quanto em religiões como União do Vegetal e Santo Daime, além de várias seitas, com resultados geralmente satisfatórios. Graças a esses movimentos liderados por brancos, o Ayahuasca foi tirado da lista de drogas alucinógenas do Conselho Nacional de Política Sobre Drogas em caráter provisório em 1987, e, definitivo, só em 2006. Em 2010, teve seu uso para fins religiosos regulamentado. Isso, somado ao fato de seus ingredientes pertencerem à flora amazônica, coloca o Brasil numa posição de pioneirismo em meio à renascença psicodélica.
O aspecto espiritual enxergado nos psicodélicos clássicos, especialmente no Ayahuasca, não assusta os especialistas. “Eu acho que esse conteúdo emerge de dentro da própria pessoa, não acho que seja um Deus ou uma entidade externa. Os grupos religiosos entendem que é e eu respeito as diferentes opiniões. O efeito de apoio dos grupos, sempre espiritualizados, também são positivos“, declara Tófoli.
“Essa prática cruza várias fronteiras que colocam ciência e espiritualidade como se fossem opostos, como se o misticismo não coubesse em uma visão de mundo científica e vice-versa. O que não deixa de ser uma posição simplista de quem tem preconceito com um lado ou com o outro”
Eduardo Schenberg
Schenberg, adepto de uma visão holística de indivíduo, não exclui uma noção de espírito de sua equação. Em plena pandemia, quando ciência e religião são tratados como anuladores um do outro, o pesquisador propõe uma visão ampla, de fatores que podem se complementar, sem compartimentalizar o debate. “Essa prática cruza várias fronteiras que colocam ciência e espiritualidade como se fossem opostos, como se o misticismo não coubesse em uma visão de mundo científica e vice-versa. O que não deixa de ser uma posição simplista de quem tem preconceito com um lado ou com o outro. É uma linha de trabalho muito bonita e fascinante porque traz visões de mundo diferentes para a mesma conversa”, avalia Schenberg.
Como define Natalie Ginsberg: “Muita gente se reconecta espiritualmente após ter uma experiência psicodélica. Outros, abandonam suas religiões. O efeito comum é que as pessoas buscam caminhos menos dogmáticos, interessam-se mais no espiritual e menos na religião.”
Uma classe de medicamentos que geram bem estar, inibem o medo e ampliam a consciência, além de promoverem empatia, a quebra de padrões e paradigmas, a autoconsciência e a reconexão com o mundo natural. Seja por meio da ciência, da espiritualidade ou de ambos, talvez seja exatamente disso que a humanidade precise em um momento de tanto conflito, tanta injustiça, tanto desmatamento e tanta ignorância como o atual. Lebowski acataria, “dude”.